Cultura

Erguer o copo saudando o António Cabrita

Pois é,  meu caro António, não é só por aí, talvez aí se esperasse mais inquietação do que por aqui, em que o tédio assombra uma sociedade que já vive entediada. Não sei onde o Steiner referia que se faziam e publicavam milhares de teses sobre o Goethe em que o conhecimento era ocioso. Nem uma faísca.

Um mal dos tempos. O maior passatempo cultural são as caixas chinesas, as marioskas.

A malta anda mais entretida em fazer listas dos cem maiores pensadores do século XX, (tanto grande pensador e o mundo não muda?) como todos os anos se fazem listas dos mais ricos do mundo ou dos cem mais influentes nas artes. Nas artes é de rebolar de riso. Vai-se ver, estão lá os que têm dinheiro para ir às compras, mesmo que sejam como o comerciante do do Brecht, que do arroz só conhecia o preço. Nos livros, mais uma vez o Steiner, as badanas adquirem inusitada importância. Lê-se uma peça de teatro de Heiner Muller, se não ler a badana, a esmagadora maioria dos leitores nem percebe a sua relação com o teatro grego. No teatro ou no cinema. Por exemplo, não me lembro de ter lido nas críticas escritas cá no burgo, nos jornais ditos de referência, ao Fala com Ela, do Almodovar, uma alusão ao Orfeu e Euridice e estava lá tudo, com um final variante. No ano passado ou no anterior, que interessa isso, uma das figuras mediáticas da nossa cultura baralhou Rimbaud e Verlaine. Erro de palmatória tão excessivo poderia ser gralha, a tradução do verso usado era tão de pé quebrado que as gralhas não são assim e aquela nem tinha perdido uma pena por maior que tivesse sido a liberdade poética na traição ao original.

O conhecimento é cada mais virtual e menos conhecimento, é mais carregar no botão. Há museus que já registam mais visitas virtuais que visitas reais, o paradigma museológico começa a aproximar-se de uma amálgama de arte, entretenimento, marketing e comércio. Está tudo dito, é o triunfo dos formatos dos shows televisivos.

Se calhar este desenrolar, pouco cuidado, da mortalha em que esta sociedade se está a enrolar é fala de animal em extinção.

Sem te pedir licença vou fazer link para o teu post. Bem gostaria de aí estar, para esse curso livre. Grandes debates em perspectiva, nada deste saber vendido em cubos de gelo que se derretem sem sabor, nem cheiro. Claro que há excepções, não são poucas, que correm como toupeiras debaixo destes desertos e saltam para a superfície quando menos se espera. É o que nos salva da extinção completa.

Esta malta de carregar no botão, mesmo os que ainda sabem distinguir entre botões, estão cada vez mais como a Alice, no país das maravilhas, quando se agarrava ao gato Cheshire para encontrar uma saída que não sabia qual era.

–Por que caminho vou agora, perguntava Alice

–Para onde queres ir? responde o gato

–Não sei, replica Alice

–Então se não sabes para onde ir, não precisas saber o caminho!

Interessa-lhes saber? Interessa-lhes o caminho para, sem saberem para onde ir, sobreviverem.

A vida não lhes interessa.

Tilinto fragorosamente um copo contigo, para acordar os que adormeceram a ler esta prosa e irem ler o teu texto.

Um grande abraço.

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