Nós, portugueses, sempre tivemos um certo fascínio pelo que os estrangeiros pensam e dizem sobre nós. Alimentando essa curiosidade e utilizando-a como pretexto para investigação, o Centro de Estudos Bocageanos acaba de dar à estampa “Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros – A Época de Bocage”. Uma viagem no tempo.
A obra, da responsabilidade (organização, prefácio e notas) do profícuo investigador setubalense de temáticas bocageanas Daniel Pires, reúne um conjunto de testemunhos escritos por viajantes que demandaram esta região entre 1766 e 1800, datas que se situam no período (1765-1805) em que o famoso poeta sadino viveu. Alguns desses textos tinham já sido publicados, enquanto outros são-no agora pela primeira vez, casos dos textos do arqueólogo-espião espanhol José de Cornide e o do embaixador francês Marquês de Bombelles.
Optando por uma apresentação cronológica, é possível ler oito testemunhos de personalidades de diversas nacionalidades e condições profissionais, apoiados por notas biográficas dos autores e outras explicações. Atente-se, contudo, ao facto de a condição de viajante na segunda metade do seculo XVIII ser repleta de dificuldades de toda a ordem, os caminhos inexistentes, os transportes precários e a insegurança. O relato das viagens entre Lisboa e Setúbal é um bom exemplo, com uma rota terrestre que passava por uma ligação fluvial a Coina (sede de concelho, à época) ou à Moita e que, atravessando charnecas e pinhais, seguia por Palmela. Ou, em alternativa, um caminho marítimo que tanto podia levar um como oito dias.
A leitura desta obra de cento e onze páginas é uma deliciosa viagem no tempo pelas terras de Setúbal, Palmela e Azeitão. Nas deambulações pelas terras ou nos contactos sociais. Testemunhos que relatam, ora com mais objectividade, ora com mais preconceito, os hábitos e os comportamentos dos portugueses, com a vantagem de, como Daniel Pires justamente nos chama a atenção, terem sido publicados nos países de origem dos viajantes, “onde a censura, se existia, não interferia minimamente quando se tratava de textos sobre regiões consideradas remotas”; situação que não estava minimamente ao alcance dos autores nacionais, assediados pelo Santo Ofício, Real Mesa Censória ou os seus sucessores.
Um capelão sueco, um arqueólogo-espião espanhol e um botânico alemão
De entre as visões reproduzidas nesta obra, refiro três. A de Carl Israel Ruders, capelão da legação da Suécia em Lisboa ao ano de 1798, a do espanhol José de Cornide y Saavedra, arqueólogo e intelectual de nomeada em missão de espionagem e a de Henrich Friedrich Link, botânico de renome e professor universitário.
CarI I. Ruders, que fez várias viagens a Setúbal, era servido de uma rara capacidade de observação-participante, devendo-se-lhe, aliás, uma das mais relevantes obras sobre o Portugal desta época, “Viagem em Portugal – 1798-1802” (edição da Biblioteca Nacional, 1981). Leia-se na obra agora publicada, em que se respiga o relato do sermão que o capelão protestante presenciou no adro da Igreja de Nossa Senhora do Bonfim (Setúbal). Ruders descreve o acontecimento e analisa a técnica do frade dominicano que consegue levar os fiéis a “uma salva geral de bofetadas que cada ouvinte aplicava a si próprio como complemento do sermão”. Ou o seu relato, quase hilariante, da interrupção de uma “partida” (sessão de jogo numa residência) interrompida por um sino que anunciava ir a Eucaristia ser levada a um enfermo: “e todos, a um tempo, arremessaram as suas cartas, precipitando-se para a janela e lançando-se de joelhos. Mas, em seguida, recomeçou o jogo, como se nada fosse, embora instantes depois, quando o préstito regressava, todos abandonassem de novo os seus lugares”.
Aproveitando (ou usando como fachada) a elaboração de um minucioso estudo sobre o país, titulado de “Estado de Portugal en el año de 1800”, J. Cornide escreve relatórios de avaliação militar para Manuel Godoy, governante espanhol que haveria de conquistar pelas armas a praça de Olivença, no episódio que ficou conhecido por Guerra das Laranjas. A estória que envolve o escrito de Cornide (1800) é descrita em pormenor por Daniel Pires numa das notas de apoio (pp. 105-106). Cornide procede a avaliação de Setúbal. Deixa claro que a fortaleza de São Filipe foi construída (no reinado de Filipe III) para manter as gentes da vila de Setúbal “em respeito, pois domina-a” mas que, como instrumento de defesa perante ameaça terrestre ou marítima, a sua utilidade é limitada. No seu testemunho faz-se ainda uma completa descrição dos dispositivos existentes e uma avaliação desapiedada das capacidades defensivas. Tal como do potencial económico de Setúbal, que lhe conferido pelo sal e pelos vinhos e frutos. Observa mesmo a estrutura aduaneira.
O botânico Henrich Friedrich Link procede a uma notável caracterização natural e ambiental, a que junta um interessante levantamento do movimento portuário em Setúbal e Lisboa no ano de 1796. Donde se realça o maior movimento de embarcações suecas na cidade do Sado e o muito aproximado número de dinamarquesas. Para Link “a cidade é pequena e constituída por por vielas estreitas e sujas e casas pequenas, só a praia é larga e bonita, está guarnecida com melhores casas e a beira-mar bem pavimentada. De facto a maioria dos nobres da terra reside aqui”. É também ele quem estranha o escasso número de casas comerciais numa terra com o movimento portuário da Setúbal da época.
“Setúbal, Palmela e Azeitão Vistas por Estrangeiros – A Época de Bocage” apresenta-nos ainda um prefácio e uma “bibliografia sobre estrangeiros em Portugal (1750-1800)”. Conta também com gravuras evocativas da vida na época, sendo cinco impressas a cores (uma das quais a da capa, vidé ficha técnica) e duas a preto e branco. Para consultar as publicações do Centro de Estudos Bocageanos, clique aqui.
Ficha técnica
Capa: “A Vendedora de Melancias no Largo de Setúbal”, Henry l’Evêque, Costume of Portugal; Design gráfico: Ricardo Fraga Pires; Editor Centro de Estudos Bocageanos; Depósito legal: 345141/12; ISBN: 978-989-8361-08-0; tiragem: 1000 exemplares; Impressão Rolo & Filhos II S.A.
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