«O meu pai trabalhou toda a vida a ouvir a música de Mozart» contou Isabel Manta numa das visitas à exposição “A Máquina das Imagens”, retrospectiva de desenhos e cartoons de João Abel Manta na Citadela de Cascais. Visitar a retrospectiva de pintura de João Abel Manta na Sociedade Nacional de Belas Artes (SNBA) faz ressoar essa frase, relembrando uma afirmação de Georg Lukács a Steiner de que seria impossível Mozart ser tocado nas celebrações e nos campos de concentração nazis, o que muito admirou o ensaísta inglês que quando voltou a Londres a discutiu com músicos e musicólogos, entre eles Benjamin Britten, para a cotejar. Ao fim de uns quinze dias Britten telefona-lhe. Tinha estado a rever as obras de Mozart « Lukács, tem razão!».
Percorrer estas 250 pinturas de João Abel Manta expostas na SNBA, desde os anos 60 e 70, sobretudo as realizadas depois de pelos anos 80 ter dada por finda a sua actividade de cartoonista e ilustrador, dedicando-se exclusivamente à pintura, é um percurso de intenso prazer por uma exposição rompe as fronteiras de ser uma retrospectiva para se impor como um manifesto a favor da pintura, tal como a obra de Mozart é um permanente manifesto a favor da música.
Seja nas paisagens das terras, marítimas e urbanas, nas narrativas tanto de mitologias recriadas como inventadas para nos introduzir em reflexões filosóficas sobre os laços profundos das relações humanas e os seus relacionamentos com os universos circundantes recorrendo à sexualidade, aos afectos, aos trânsitos das idades, na muito extensa galeria de retratos de escritores, pintores, filósofos, actores, músicos toda uma plêiade de intelectuais que com ele conviveu material e imaterialmente, no intimismo com que retrata alguns sucessos da sua biografia familiar, o que de facto ressalta e deve ser sublinhado é o amor pela pintura posta em prática por mãos que conhecem em profundidade os segredos da arte de pintar, intimamente ligadas, dirigidas e orientadas por uma inteligência e uma cultura invulgares.
O que nesta exposição se torna evidente é o paradigma da arte, das artes aqui representadas pela pintura, em reavaliar as relações entre as instituições, as obras e o público. Das obras de arte recuperarem a sua função crítica social e ideológica que, no contexto cultural contemporâneo, foi rasurada no agora famoso «seja lá o que for» corporizado por artefactos da mais variada espécie de valor mais que discutível, para usar uma formulação simpática e permissiva, que só são valorados num ambiente marcado pela alienação produzida pela dissociação entre o valor monetário atribuído a esses artefactos e as suas condições materiais e sociais de produção e por o espírito crítico ter sido eliminado em favor de bulas de propaganda que movimentam a bolsa do mercado dos objectos de luxo em que esses supostos objectos de arte se inscrevem.
É uma exposição de uma obra que complementa todo um trabalho de constante pesquisa que João Abel Manta desde muito jovem iniciou nas várias áreas do design, da arquitectura e da pintura, sempre a equacionar a necessidade de reinvestir nas artes, sublinhando e aprofundando a sua autonomia relativa e o seu contributo interventor na sociedade, subtraindo-as das contaminações dos desertos da arte pela arte.
Esta retrospectiva da obra pictórica de João Abel Manta é uma grande pedrada nesse charco da arte contemporânea (1) demonstrando que à arte nada deste mundo é estranho pelo que além de o interpretar o inventa.
(1) por arte contemporânea aceite-se a definição proposta por Nathalie Heinich, em Le Paradigme de l’Art Contemporain, NRT, Éditions Gallimard, 2014
O crescimento é anémico, a inflação crescente, os riscos de recessão são muitos. Culpada a guerra!!! A maioria das pessoas debate-se para viver cada vez pior com a crise instalada, muitas em luta para sobreviver. Tudo vai mal? Não, nem tudo vai mal, pelo contrário para alguns tudo vai bem. Mesmo muitíssimo bem!!! O Journal de L’Investisseur, dá bons conselhos de fazer os melhores investimentos na bolsa, apontando para a indústria de armamento explicando pormenorizadamente como «O aumento dos riscos geopolíticos fazem da indústria do armamento um excelente investimento em 2023»:
“ A invasão chocante da Ucrânia pela Rússia revolucionou a cena geopolítica mundial. No ano anterior os Estados Unidos tinham retirado as suas tropas do Afeganistão, o resultou num forte abandamento da indústria da defesa. Entretanto agora os países desenvolvidos aumentaram rapidamente os seus orçamentos militares e de defesa. Fazem parte desses países a Alemanha e o Japão bem como os Estados-Unidos, que aumentaram as suas despesas com a defesa. O conflito ucraniano não vai acabar tão depressa e as tensões intensificam-se noutras partes do mundo, o que faz prever que o sector da defesa será muito activo nos próximos anos. Com o mercado bolsista a atravessar sérias dificuldades, as indústrias da defesa são uma oportunidade não neglicenciável neste momento. Estes oito indústrias de armamento são sólidos abrigos para enfrentar a actual tempestade das bolsa. As oito melhores acções na Defesa e no Armamento são – não pode causar espanto – norte-americanas: Lockheed, Boeing, AeroVironment, BWX Technologies, Raytheon Technologies, General Dynamics, Textron, CAE.
Mas nesta área, nós franceses não somos descartáveis. Com a EADS (aviões, misseís, espaço, helicópteros, comunicações, 11 990 milhões de euros em volukme de negócios) ;Thales (electrónica de defesa); Safran (espaço, electrónica de defesa);MBDA;Naval Group;Dassault Aviation;Ariane Group;Nexter;Arquus. EM França, 4 000 empresas trabalham para o sector da Defesa, com um volume de negócios de cerca de 20 mil milhões de euros por ano.”
Vai longa a citação mas é bem esclarecedora de como são manipulados os cordéis do comediante presidente na linha da frente da defesa dos «valores do ocidente» que são sobretudo os valores bolsistas dos complexos militares-financeiros que andavam cabisbaixos e muito murchos pós-Afeganistão, mais alguns insucessos no Médio-Oriente.
A compra e venda de armas tem um fluxo constantemente crescente e é muito mediatizado para que essa anormalidade seja aceite como uma normalidade.
Em frente marche! ao som dos clarins soprados pelos falcões norte-americanos, seus serventuários europeus com destaque para os burocratas da União Europeia e o porteiro da NATO. A venda de armas vai de vento em popa e a leitura diária dos boletins escritos pelas agências de informação que trabalham para os serviços secretos norte-americanos e britânicos, que o comediante presidente tão bem interpreta, são música celestial para os complexos militares – financeiros do ocidente, com destaque para o dos EUA, que tem um orçamento de defesa que é quase 40% do total dos gastos com armamento de todo o resto do mundo.
Neste cenário a luta pela PAZ é cada vez mais urgente e necessária. Uma luta que não pode parar e tem que se sobrepor à propaganda da guerra que, com as mais diversas variantes e das mais diversas formas, das mais directas e violentas às mais sorrateiras, nos é todos os dias vendida pela comunicação social corporativa ao serviço das oligarquias ocidentais.
A UE, para melhor travestir os interesses grandes negócios, de que é uma defensora e activa interventora, é muito activa na maquilhagem da corrupção material e imaterial que lhe está associada.
«Parábola dos Cegos», Pieter Brueghel, o Velho, 1568, Museu de Capodimonte, Nápoles, ItáliaCréditos
Hoje em dia, as pessoas já não respeitam nada. Dantes, punham-se num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a lei. A corrupção campeia na vida americana dos nossos dias. Onde não se obedece a outra lei, a corrupção é a única lei. A corrupção está a minar este país. A virtude, a honra e a lei esfumaram-se das nossas vidas
Al Capone, numa entrevista à revista Liberty, 17 de Outubro de 1931, feita pelo jornalista Cornelius Vanderbilt Jr, alguns dias antes de ser preso por fuga ao fisco.
O despudor e doblez desta sociedade sem dignidade, e sem dignidade para oferecer, têm umas regulares erupções que reagem com indignação a alguns casos que, tornados públicos, não são mais que a exibição dos vícios intrínsecos1 do capitalismo, mormente depois das portas escancaradas por Thatcher e Reagan, capatazes medíocres caninamente cumpridores dos desígnios do grande capital, até aos nossos dias em que a financeirização da economia possibilita que empresas de investimentos, que não estão submetidas a qualquer regulamentação, tenham o poder de influenciar as políticas de muitos países mesmo os mais poderosos que, aliás, estão entregues às suas directivas. Em que emergiram grandes empresas tecnológicas, algumas com capitalizações superiores ao PIB dos países até do G7, que viajam entre as malhas das leis recuperando direitos típicos do feudalismo, em que o traço mais comum é a destruição sistemática de direitos e conquistas sociais, económicas e políticas em séculos de duras lutas empreendidas pelos explorados de todo o mundo, o que se acentuou depois da queda do Muro de Berlim.
Nos últimos tempos são tantos os exemplos, que se podem escolher quase ao acaso. Por cá temos os casos da indemnização a Alexandra Reis a subsidiar-lhe o seu desejo de abraçar novos desafios profissionais, do interrompido trânsito de Rita Alves do sector público para o privado à velocidade de um Fórmula 1, na Europa o Catargate, anos depois de se ter decidido que a bola do mundial iria rolar nos estádios construídos por mão-de-obra praticamente escrava que foi túmulo para muitos, na omnipresente Ucrânia com as purgas de uma selecção de corruptos para a generalizada e conhecida corrupção da elite dirigente não ver interrompido o seu curso normal, agora ao som das lagartas dos Leopard e Abrams que lhes garantem mais uns sopros de vida.
O afã das indignações, condenações ou aplauso deste seleccionado rol de casos nas instituições democráticas é intenso. A sua maior repercussão são as comissões de inquérito da Assembleia da República enquanto armas de arremesso pela oposição e de defesa por quem ocupa o poder, muitas vezes com cumplicidades escusas. Atente-se na comissão de inquérito à TAP, limitada aos tempos mais próximos, tendo sido excluída a possibilidade de se questionar a sua privatização pelo governo Passos Coelho/Portas, que de facto abriu as comportas que desaguam na situação actual. Para a comunicação social e redes sociais essa sucessão de acontecimentos são territórios de lutas para ganhos de audiências, explorando com maior ou menor subtileza os populismos, numa permanente corrosão da democracia.
O processo é simples, linear e bem conhecido da física. O excesso de iluminação a incidir na trajectória de um átomo deforma essa trajectória. Quando se esmiúça o caso, de facto escandaloso, da indemnização concedida a Alexandra Reis, obscurece-se a vulgaridade das indemnizações, honorários, bónus, prémios, dividendos e outras oferendas feitas aos detentores do capital e seus serventuários, que ao longo de dezenas de anos são prática comum que distorce a distribuição da riqueza, em que os mais ricos ficam sempre mais ricos e os pobres e as classes médias cada vez mais despojadas. Essa a lógica inoxidável do capitalismo.
«O afã das indignações, condenações ou aplauso deste seleccionado rol de casos nas instituições democráticas é intenso. A sua maior repercussão são as comissões de inquérito da Assembleia da República enquanto armas de arremesso pela oposição e de defesa por quem ocupa o poder, muitas vezes com cumplicidades escusas.»
A mesma pauta é aplicada quando afanosamente se coloca no centro do alvo das atenções Rita Marques, que mais não fez que seguir o exemplo de um seu antecessor nos governos PSD/CDS, e a prática corriqueira do trânsito entre o aparelho de Estado e as maiores empresas privadas, que garantem apoio variável em conformidade com as suas conveniências aos partidos ditos do regime e aos que a ele se candidatam, que deixaram de ser instrumentos ao serviço dos interesses dos eleitores para se transformarem numa finalidade em si-próprios, pelo que mantém sempre em bom funcionamento essa porta giratória. A virtude da focagem intensa neste caso, aliás como em todos os outros casos, é enfraquecer a memória ou mesmo atirar para debaixo do tapete os escândalos ominosos das privatizações, a socialização dos prejuízos e privatização dos lucros, bem patenteadas nos apoios concedidos à banca, as múltiplas regalias directas e indirectas às grandes empresas, o tráfico de patacas e outras divisas de Soares, Almeida Santos, Melancia & Companhia, as negociatas malsãs dos governos de Cavaco Silva e sua devassa corte, Dias Loureiro, Oliveira e Costa, Duarte Lima & Companhia, as trafulhices de Passos Coelho, Portas, Relvas, Moedas & Companhia.
O Catargate é uma erupção do vulcão das perversões nunca adormecidas da União Europeia, em que as práticas de lobismo são a normalidade que condiciona toda a acção legislativa, influenciada pelos grupos organizados de pressão dos grandes grupos económicos. São mais de dez mil em plena e frenética actividade, em favor do objectivo de os seus interesses ficarem intocados e serem ampliados. Os êxitos da algazarra desencadeada pelo Catargate são vários, com a curiosidade primeira de já em nada influenciarem o evento que os provocou, o Campeonato do Mundo do Futebol de estádios construídos por mão-de-obra ao nível da escravidão. A segunda, por o Catar ser país com a terceira maior reserva de gás mundial, depois da Rússia e do Irão, estar a negociar contratos de longo prazo para fornecimento desse combustível fóssil a países da União Europeia (UE), em particular a Alemanha, o que de algum modo colide com os interesses dos EUA, que adquiriram uma posição dominante depois das sanções à Rússia e de terem explodido o NordStream 2, e que este tardio escândalo de algum modo obstaculiza.
A terceira e mais significativa é ter praticamente apagado dos radares o negócio bilionário das vacinas, tratado directamente entre Ursula von der Leyen e o CEO da Pfizer, em que a Provedora de Justiça da Europa foi fintada pela presidente da Comissão Europeia, uma perita nessas artimanhas com longo treino adquirido na sua passagem pelo governo da Alemanha. A UE, para melhor travestir os interesses grandes negócios, de que é uma defensora e activa interventora, é muito activa na maquilhagem da corrupção material e imaterial que lhe está associada e é evidenciada pelas aceleradas circulações entre os seus burocratas, do topo à base, e o grande capital. Entre milhares de exemplos, destaque para o caso bem conhecido de Durão Barroso, um homem sem qualquer qualidade que a Goldman Sachs recrutou. Presume-se que, no futuro, a banca venha a ser superada pelos fundos de investimento, como a Blackrock e Vanguard, agora predominantes no governo do senil Biden, que até tem dificuldades em ler os teletextos e responder às perguntas encomendadas aos jornalistas acreditados pela Casa Branca, que superaram a banca, sobretudo a já referida Goldman Sachs prevalecente nas presidências Clinton, Obama,Trump, que, apesar das diferenças entre eles, a serviam devotadamente. Na União Europeia mudam-se os tempos, mas não as vontades, pelo que os oligarcas ocidentais podem continuar confiantes no trabalho das sucessivas comissões europeias.
A Ucrânia é a grande oportunidade da Comissão Europeia, dando cobertura e aprovando o quadro político, social e económico imposto nesse país. De modo sorrateiro, antecipar e oficializar o que gostariam que fossem as suas práticas ordinárias, algumas já no terreno, muitas ainda embrionárias, de normalização dos processos de excepção numa sequência autoritária e securitária para cumprir os desígnios do capitalismo, tornando a carta dos Direitos Fundamentais da UE num rol de meras intenções como se comprovou durante a pandemia, impondo «medidas de contingência para garantir a livre circulação, bem como a disponibilidade de bens e serviços essenciais durante uma crise», que violaram os direitos dos trabalhadores e das populações. Ora, quem define o que é ou não é crise é a Comissão Europeia com o suplemento de aparecer como a protectora das populações das crises que provoca ou que são importadas. É o melhor dos mundos para desinvestir nos serviços que são a coluna vertebral das políticas sociais públicas, saúde, educação, segurança social, privatizar o que ainda não foi privatizado, impor leis de excepção que logo entram no quadro legal normal e corroem direitos e liberdades conquistadas em dezenas de anos de luta. Uma situação que se vai consolidando com alguma lentidão para o gosto da voracidade do grande capital, como se ouviu em Davos.
«A Ucrânia é a grande oportunidade da Comissão Europeia, dando cobertura e aprovando o quadro político, social e económico imposto nesse país (…).»
É neste ponto que entra quase milagrosamente a Ucrânia, invadida pela Rússia para travar o genocídio das populações russófonas em marcha desde 2014. País em crise pela guerra que está a viver, aproveita a crise para legislar, cortando os já escassos direitos e liberdades que ainda subsistiam depois do golpe de estado de Maidan, o que Ursula von der Leyen elogia numa entrevista que deu em Maio para a Time, sublinhando: «com uma enorme coragem, os ucranianos estão a lutar pelos nossos valores e princípios democráticos». A recente reunião em Kiev, mais do que tratar da adesão desse país à UE, foi a exibição do comprazimento pelos comissários europeus por esse estado de sítio. A corrupção foi aceite desde que bem enquadrada. Nada melhor do que negociar com um governo presidido por um notório corrupto, detentor de várias propriedades de luxo no ocidente e contas offshore2 de que não se conhece o estado actual, que fez umas ligeiras, e sem grandes consequências, limpezas para Europa e EUA verem e aplaudirem, a par da comédia em que os oligarcas ucranianos entram por uma porta e saem empreendedores pela outra, para confraternizarem com os oligarcas ocidentais que há muito têm o empreendedorismo como emblema.
Devem ter ficado embevecidos com a velocidade com que mais de metade das terras muitíssimo férteis da Ucrânia foram vendidas em saldos à Blackrock e Monsanto; como as entidades públicas tem sido desmanteladas e privatizadas; como as novas leis laborais arrasaram os direitos dos trabalhadores, atirando os sindicatos para uma vida vegetativa; em que a liberdade de informar já nem é meramente formal, tendo sido despojada das falácias da imprensa ocidental e dos subterfúgios dos critérios jornalísticos para, em diversos tons de voz, fotocopiarem as narrativas oficiais; em que os partidos permitidos são os que estão conluiados com o governo e ao serviço das multinacionais e dos oligarcas agora travestidos de empreendedores.
«É o melhor dos mundos para desinvestir nos serviços que são a coluna vertebral das políticas sociais públicas, saúde, educação, segurança social, privatizar o que ainda não foi privatizado, impor leis de excepção que logo entram no quadro legal normal e corroem direitos e liberdades conquistadas em dezenas de anos de luta.»
Um florilégio que Ursula von der Leyen, Charles Michel e os restantes comparsas consideraram positivo porque, de facto, ainda sem o poder claramente manifestar, corresponde aos desígnios dos seus mandantes e bem sabem que o capital está cada vez mais ansioso por impor a sua ditadura.
Zelensky, agradecido e obrigado à senhora Von der Leyen, devia numa próxima visita fazer-lhe uma surpresa, levando-a a visitar uma rua que desemboque na avenida Stepan Bandera, que decidiu renomear com o nome do avô da presidente da Comissão Europeia, distinto oficial das SS que por lá andou a chacinar judeus, eslavos, polacos e comunistas de braço dado com os facínoras nazis ucranianos agora erigidos heróis nacionais.
Estes últimos sucessos em terras ucranianas têm o mesmo efeito dos sucessos anteriormente referidos. Há um traço comum entre todos eles, muitos outros poderiam ser relatados, em que a questão nuclear não é a verdade que fica sepultada, mais que revelada na multiplicidade de opiniões sobre cada um dos assuntos, mas porque se tornam, num determinado período provisório e efémero, um acontecimento que paradoxalmente se situa e desliga temporalmente das situações em que sucedeu, empolado pelo seu uso político mediático imediato, destruindo a memória dos sucessos com a mesma tipologia que o antecederam e preparando a destruição da sua memória, que será consumida nas fogueiras dos acontecimentos que se irão verificar, inevitáveis no estado de sítio político, social e ético inerente a esta sociedade.
É um processo em contínuo que garante a manutenção do ideário neoliberal para lá das crises e dos seus arranjos para imediata sobrevivência.
É um terreno adubado para todos os populismos, em que, sobretudo, a direita e a extrema-direita navegam de vento em popa.
Razão tinha Al Capone, a virtude, a honra e a lei estão a esfumar-se nas nossas vidas desde sempre vitimadas pelos vícios intrínsecos do capitalismo de onde a vergonha foi apagada. Numa carta que Marx enviou a Arnold Ruge , em março de 1843, sobre o que estava a acontecer numa Alemanha corroída pelos escândalos de corrupção, referia que «longe de sentir o orgulho nacional, sem dúvida que experimento a vergonha nacional» para acrescentar «a vergonha é revolucionária (…)se um povo inteiro tivesse vergonha, seria como um leão pronto a saltar». A questão actual é que a vergonha apagou-se e os escândalos são instrumentalizados por políticos em que a corrupção material e imaterial é indissociável das suas práticas.
1.Condição natural de certas coisas que as torna mais suscetíveis a se destruir ou avariar, sem que seja necessária a intervenção de qualquer causa externa.
2. O Consórcio de Jornalistas de Investigação, para respaldo de uma suposta independência, só investigava muito discriminadamente para benefício de alguns em detrimento de outros, os Panama Papers atingiram umas offshores enquanto engordaram outras, calou-se e está bem calado em relação a Zelensky e seus comparsas, nem se prevê que sobre esse tema o açaimo lhes seja retirado no médio prazo.
Espanta-se todo o mundo e ninguém que a grande notícia nas artes em 2022 sejam os 16,6 mil milhões de euros de vendas, pelas três maiores leiloeiras do mundo. Todo o mundo fica boquiaberto com os valores astronómicos do mercado das artes. Ninguém fica deslumbrado com as obras de arte que nesse mesmo ano de 2022 se expuseram nas inúmeras galerias, fundações de artes, feiras, bienais, toda a constelação de espaços onde estacionam os variegados objectos, instalações, performances e etecetera a que se cola um selo certificador pela tropa fandanga de comissários, curadores e outros bichos móis que operaram nos últimos decénios, a total dissociação entre o valor atribuído a esses objectos e as condições materiais e sociais da sua produção. Depois das vanguardas artísticas dos princípios do séc XX terem entrado em falência, o valor de uso da arte degradou-se até hoje se confinar no seu valor de troca, em que o dinheiro é a forma e o fim e os objectos das artes, qualquer que seja a sua forma de representação, acabam por corporizar um acabado exemplo do feitichismo da mercadoria.
Actualmente, as colecções de arte distinguem-se não pelo valor estético das obras que as compõem mas pela sua rentabilidade e pelos encaixes que proporcionam aos seus detentores. São um veículo de reconhecimento social para os seus proprietários mesmo que nada entendam de estética ou tenham algum prazer visual na apreciação das obras. Para eles as obras de arte, com a vantagem única de serem objectos não consumíveis, são o adubo do seu narcisismo sem nunca as dissociarem do seu valor especulativo. Nos nossos dias adquirir obras de arte é um processo em que se conjugam a distinção social e a apropriação e financeirização dos valores da cultura pelos homens de negócios em paralelo com a demissão dos Estados em estabelecer políticas culturais, entregando-as aos mercados que não conhecem outra hierarquia cultural que não seja a do que é vendável.
As artes foram subtraídas da sua função crítica, do seu valor social por um processo mercantil que destruiu a sua relativa autonomia sujeitando os artistas ao calculismo bastardo da turbamulta dos «encarregados de uma subtil actividade de manipulação na gestão da produção cultural» como Pierre Bourdieu lucidamente analisou, que estão sempre entre «dois eventos promocionais em que a arte é, sempre e só mercadoria e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades » (José Luís Porfírio) numa sucessão acelerada de modas e humores, em que as artes se dissociam da vida numa vertiginosa actividade tautológica estético-mercantil.
Blanchot definiu com clareza a situação actual em que «é secretamente dramático saber que a cultura não pode fazer mais do que desdobrar-se gloriosamente no vazio contra o qual nos protege dissimulando-o». Nas artes visuais já nem sequer o camuflam, fazem parte desse vazio, as excepções só confirmam a regra. Deixaram de radiografar o mundo como o fizeram durante séculos, e num curto lapso de tempo de o interpretar e integrar como o tentaram realizar as vanguardas artísticas dos inícios do séc. XX, construtivismo e futurismo soviéticos, surrealismo e dadaísmo, de formas diversas e muito distintas. O fim das vanguardas de algum modo representou o fim das artes visuais, registando-se um regresso ao dadaísmo não como protesto contra um mundo sem dignidade nem dignidade para oferecer mas para seu uso publicitário em grande ostentação do kitsch no frenesi do ritmo das modas, que acabam celebrados no mercado dos objectos de luxo.
A urgência é reinvestir estética e politicamente a arte, salvando-a das areias movediças do deserto social desta sociedade.
(publicado em Avante! N º 2564, 19701/2023)
(1) Andy Warhol é o exemplo mais acabado de como o mercado se apoderou das artes visuais destruindo o seu valor estético e crítico, submetendo-o às vulgaridades do kitsch e da moda que determinam de forma opaca o seu valor no mercado. Andy Warhol, um artista banal e insignificante, é o autor de obras medíocres hipervalorizadas, o que é bem demonstrado pelo valor de 35 milhões de euros porque foi leiloado o seu autoretrato. Warhol é um feirante que descaradamente proclama que «o que interessa é ser célebre nem que seja por quinze minutos»(…), «que a melhor obra de arte é um bom negócio». Para aí chegar é o próprio Warhol que explica a importância da auto-promoção, em que nada deve ser deixado ao acaso e que implica um árduo trabalho de “management” artístico tanto ou mais fatigante que o comercial, em que o trabalho criativo é o que menos importa. Comporta-se como um pobre diabo que faz tudo para aparecer nas colunas sociais ao lado dos poderosos. Leiam o que ele escreveu em The Philosophy of Andy Warhol. Penguin Books, 1975
Um dos primeiros gestos do homem, quando se começou a conhecer como homem, foi gravar a sua presença num suporte físico. A natureza destruiu a maioria dessas marcas, outras resistiram de que são exemplo as gravuras de Foz Coa. Milhares de anos decorreram até os métodos de gravação se sofisticarem e a gravura ganhar alforria instituindo-se como uma das principais áreas das artes visuais, apurando-se em técnicas que se especializaram em várias disciplinas que tanto se autonomizaram como se hibridizaram, com a vantagem e a virtude das gravuras se reproduzirem em séries determinadas pelos artistas, dando um enorme contributo para a democratização das artes.
O poder de atracção que a gravura exerceu em vários artistas fez com que alguns a elegessem enquanto o foco principal da sua prática artística, ainda que não descurassem outras experiências que acabavam por contribuir para o seu enriquecimento formal, induzindo mesmo a introdução de novas técnicas para melhor explorarem a criatividade.
Portugal tem alguns artistas que optaram em quase exclusivo pelas técnicas da gravura ou para quem a gravura foi preponderante enquanto meio principal para expressarem o seu universo estético e imaginativo.
Gil Teixeira Lopes é um desses artistas que tem uma marca muito pessoal, de uma raríssima inventiva, reconhecida internacionalmente onde foi multiplamente premiado nas mais importantes exposições de gravura em todo o mundo. Nenhuma técnica de gravação lhe era estranha e o seu contributo para a sua evolução é inestimável. Como foi inestimável o seu labor de professor da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa introduzindo inumeráveis de alunos na aptidão instrumental enquanto suporte da expressão artística em que pedagogicamente os induzia.
São centenas as suas gravuras e milhares as provas em que se reproduziram. Em todas podemos descobrir o artista que as produziu, até pelo seu extraordinário apuramento técnico só ao alcance de alguns. Em todas nos deslumbramos com as imagens que traduzem a inquietação que impulsionava uma inesgotável imaginação e o seu poder fecundamente inovador.
Gil Teixeira Lopes, embora tenha na gravura a sua mais ampla e mais extensa obra artística nunca deixou de pintar e foi ainda atraído pela escultura. Toda a sua obra é sempre um original mesmo quando recupera uma ideia já com anos ou de apenas horas, para a acrescentar, modificar, alterar.
A sua paixão pela arte e pelo trabalho em projectos artísticos só sofreu pausas quando, em 1971, começou a sofrer gravemente de doenças do coração cuja primeira manifestação mais aguda, alguns anos mais tarde, foi uma longa e quase fatal paragem cardíaca. Essas saltos no escuro foram sendo resolvidos, provisoriamente resolvidos em quatro intervenções cirúrgicas que acabaram numa última com um transplante de coração. Entre essas mortes quase anunciadas, Gil Teixeira Lopes renascia com uma indómita vontade de se dedicar à sua arte com um vigor e uma assinalável produtividade. Era a arte que lhe insuflava vida. Era a arte que o fazia renascer. Era a arte que lhe despertava os sentidos, lhe iluminava e alicerçava os caminhos que transpunha para as chapas da gravura, para as telas, para os bronzes.
Em 10 de Novembro, aos 86 anos, sucumbe este grande artista para quem a arte foi a força nuclear que o ligou intensamente ao mundo e à vida. Deixa-nos uma obra extensa, multiforme e de enorme valor estético que merecia ser recuperada numa exposição que a celebrasse
Ana Sá Lopes escreve um texto no Público “A Coragem de Arménio Carlos e a marca de Paulo Raimundo” que é uma análise “queridinha” do Partido Comunista Português para de forma sorna e habilidosa abrir uma fresta da porta metendo os dois pés para não a deixar abrir, mas com os pés bem ocultos.
Se por um lado reconhece a Paulo Raimundo capacidades sublinhando « a qualidade é a abertura que mostrou para tentar que cheguem ao partido novos militantes e conseguir que regressem parte daqueles que abandonaram o PCP, que em várias vagas foram denominados “críticos”» esquece, se calhar não sabe mas se sabe, ainda que de forma vaga e indirecta, incorre deliberadamente no vício de por a tónica em meias-verdades. Nunca o PCP deixou à porta camaradas que se afastaram e acabaram por regressar ou até só se aproximar de forma mais ou menos significativa. O que se fica sem se saber é qual é a constelação em que brilham os “críticos” de Ana Sá Lopes, porque os críticos de Paulo Raimundo são, em primeiro lugar e de certeza, todos os militantes do PCP que a vários níveis dos colectivos partidários expressam as suas opiniões de acordo ou em desacordo com as posições públicas do PCP. Os críticos do Paulo Raimundo são os muitos camaradas militantes ou que deixaram de ser militantes mas que continuam de algum modo a rever-se nas posições do PCP, não em todas mas essa é a normalidade militante e simpatizante. Não é certamente aquele pelotão de reserva nas caves em que a comunicação social os vai ressuscitar para debitar um argumentário falacioso que, se posto alguma vez em prática, tenderia a fazer o PCP perder todos os princípios nas trilhas abertas por esse mundo fora com os resultados que se conhecem por exemplo em França, Itália e Espanha, para generalizado gaúdio, por vezes camuflado por algumas lágrimas de crocodilo.
A Ucrânia não podia falhar nessa crónica, aliás estava enunciada no título em que era referida a coragem de Arménio Carlos, pelo que escreve: «Arménio Carlos regressou à sua condição de militante de base activo e é hoje claramente a única voz crítica audível entre os militantes comunistas que exerceram funções de relevo. E para isso é preciso coragem. Ao identificar a questão da Ucrânia como uma matéria que afasta o PCP das pessoas comuns, Arménio está a perceber “o chão da fábrica”, como se diz na gíria dos sindicalistas operários.»Na referida entrevista o que Arménio Carlos diz é na generalidade correcto : «Continuo expressar, porque aquilo que eu sinto, aquilo que me dói, aquilo que me custa, é que na sociedade portuguesa, com esta situação, o Partido Comunista continua a ser queimado em lume brando (…) Porque os adversários do PCP já perceberam que, tendo o PCP uma visão correcta sobre aquilo que, em termos globais, se está a passar na Ucrânia e no mundo e aquilo que pode vir a acontecer nos próximos tempos, já perceberam que há ali uma pequena nuance. Então exploram até ao limite. Houve invasão ou não houve? Há quantos meses nós andamos a ouvir essa pergunta? E vamos continuar nos próximos tempos a falar novamente: houve ou não houve invasão? E as coisas continuam. Toda a discussão é descentrada, porque deixa de se discutir aquilo que é a questão de fundo, que é a ingerência dos Estados Unidos já há muitos anos a esta parte e tudo aquilo que está subjacente à sua intervenção, para se discutir e concentrar as atenções em que o PCP continua a não responder à questão da invasão.» Só que, com a experiência que acumulou, tem a obrigação de antecipar que nessas afirmações as anasálopes só descobrem uma que seria desmontada se tivesse dito que o PCP há muitos anos está a ser queimado em lume brando pelos media e que a Ucrânia, como muitos outros sucessos, são mero pretexto para aumentar a chama. Mesmo aceitando que só agora o lume é brando, não tivesse aproveitado a oportunidade para denunciar a comunicação social que, com base nessa ausência, deturpa aleivosamente as posições do PCP. Não o fez, embora subscrevendo as posições do PCP, nós sabemos, eles também sabem que ele sabe que se o tivesse feito teria perdido protagonismo, a sua suposta coragem lá ia borda fora, as manchetes jornalísticas eram outras, o acento tónico também seria outro, a entrevista perderia fulgor.
A Ucrânia não poderia falhar!!! Diz o Paulo Raimundo que a posição do PCP é complexa. É complexa, mas o que a torna ainda mais complexa é a artilharia que sobre ela é apontada pela comunicação social mesmo que o faça de forma desigual. Há que distinguir os estipendiados aos ditames da ordem unipolar imposta pelos EUA dos que acabam por para ela contribuir por miopias de vários calibres. Na ausência de melhor argumento a Ana Sá Lopes e mais alguns acabam por colocar a tónica no reconhecer se a Ucrânia foi ou não foi invadida pela Rússia e se a Rússia é o país agressor. Para eles essa é a pedra de toque que apaga quaisquer outros argumentos. O último parágrafo da redatora principal da Política do Público é típico : «Apesar das pequenas mudanças discursivas, é muito provável que o PCP não corrija a sua posição sobre a Ucrânia, como aconselha Arménio Carlos. Conseguir que Paulo Raimundo pronunciasse a palavra “invasão” em vez de “intervenção militar” pode ser o mais fácil. Mas que ninguém espere grande autocrítica». Que grande autocrítica é desejada por essa gente? Que o PCP deixe de lutar pela paz ? Que o PCP alinhe com a narrativa ocidental? Que o PCP se perfile, ainda que de modo enviesado, ao lado do imperialismo dos EUA? O que poderia ser bem mais fácil e decente é que é mais difícil, seria esperar que o corpo redatorial do Público, pelo menos alguns, fizessem uma crítica ao seu director e aos seus editorais que além de medíocres veiculam, sempre que tem essa oportunidade, o mais primário ódio anticomunista. Ou que pelo menos façam uma vaga autocrítica à decadência editorial do jornal que continua a viver das mãos largas dos Azevedos que o mantém apesar de ser um “perdócio” para usar adjectivação do patriarca Belmiro. Todos sabemos que é preciso fazer pela vida, pela vidinha, como a minuciosa formiguinha bossa-nova do Alexandre O’Neill «de patinhas no chão/ formiguinha ao trabalho/ e ao tostão», mas enfim…algo mais se devia exigir a alguns jornalistas que por lá ainda subsistem.
O fundamental da posição do PCP sobre a guerra em curso na Ucrânia não se altera com adjectivações. Por isso os seus detratores tanto se agarram a palavras como invasão e agressão. Poderia tê-lo feito? Poderia e, em nossa opinião, até deveria. A semântica é importante, um filão fácil de explorar e porque o que se iria verificar e era expectável, é o apontar o dedo, sublinhar a traço grosso o seu não uso, aproveitado oportunisticamente para ser um processo de ocultação de quem está alinhado, quando não mesmo vendido, ao imperialismo dos EUA, à ordem unipolar que impõem e querem continuar a impor a todo o mundo, a começar pelos países amigos e a acabar nos que contrariam os seus desígnios. Ao não inscrever nos seus comunicados e intervenções as palavras “invasão” e “agressão” abre campo a essas especulações, a esses sofismas que nunca referem que esta guerra começa em 2014, depois de um golpe de estado em que as populações do Donbas de Lugansk foram invadidas e vitimas de uma brutal agressão pelo poder central ucraniano, cada vez mais nazificado. Muito menos referem as constantes provocações feitas usando Ucrânia como marioneta bem amestrada.
A generalizada mistificação das narrativas ocidentais tem raízes mais fundas. Ocultam que o que está de facto em causa é a implosão da globalização do capital que foi acumulando crises – económicas, sociais, financeiras, sanitárias, ecológicas – que se foram sucedendo até ao estado actual de permanente crise que empurrou o mundo para uma série de guerras de que a Ucrânia é mais um episódio, o seu episódio mais recente e mais grave, em que o verdadeiro confronto é entre múltiplos centros em que se defrontam uma ordem unipolar internacional em decadência, protagonizada e comandada pelos EUA/NATO apoiada pela chamada comunidade internacional, UE, Japão, Austrália, Canadá e uma nova ordem multipolar, em que os principais actores são a China, Rússia e países que fazem parte e estão a aderir aos BRICS. É esta reorganização dos poderes que se assiste já há mais de uma dezena de anos e que se foi agravando e tem actualmente o seu cume na guerra que se trava em território ucraniano.
No plano comunicacional está posta em marcha uma gigantesca máquina de lavagem aos cérebros que com maiores ou menores histerismos, com o uso de algumas poucas verdades mas sobretudo por um exército de meias-verdades e descomunais mentiras, destila uma generalizada histeria alimentada, por jornalistas mercenários e intelectuais vendidos ao sistema que tudo fazem para asfixiar o pensamento crítico e trazer para o seu campo muitos indecisos. Qualquer tentativa de explicar e compreender o estado de sítio actual é imediatamente desqualificada, ou mesmo denunciada, como pró-russa ou cripto-russa, acusada de procurar circunstâncias atenuantes para a agressão russa.
A mentira por detrás do texto de Ana Sá Lopes, de outros textos de teor similar, é que finge que seria suficiente reconhecer a responsabilidade da Rússia e de Putin pela eclosão da guerra e condenar a agressão para que fossem aceites os argumentos das forças sociais e políticas que lutam pela paz, que condenam a invasão e a agressão mesmo que não a nomeiem. Tremendo cinismo e hipocrisia. Não é suficiente exigir um cessar-fogo e negociações de paz. Não é suficiente denunciar o regime absolutista do capitalismo russo. Não basta apoiar todos aqueles que na própria Rússia se opõem à guerra, correndo o risco da sua liberdade e das suas vidas. Não, nada é suficiente, porque o que está por detrás dos cortinados da sua argumentação e de argumentações do mesmo jaez, é que tudo se concentra na guerra em território ucraniano para que se faça um pesado silêncio sobre as estratégias e manobras do imperialismo americano e seus sequazes, tanto na Europa como no Indo-Pacífico. Esse é que é o nó-górdio desta guerra, das que as antecederam desde a queda do Muro de Berlim e de todas as que estão em curso e são silenciadas mais as que estão a ser constantemente enunciadas.
Infelizmente, uma parte da esquerda que afirma ser radical participa à sua maneira neste “estado de guerra” que está a apoderar-se das mentes das pessoas.
Este ano comemora-se o centenário de Jorge Vieira, cem anos que se cumprem hoje dia 16 de Novembro.
Na história das artes visuais em Portugal Jorge Vieira é o pioneiro da arte moderna na escultura, o mais marcante escultor do séc. XX. Afirmações tão definitivas são sempre questionáveis se não fossem uma das incontornáveis certezas da arte contemporânea portuguesa.
Embora prémio de escultura na I e II Exposições de Artes Plásticas organizada pela Fundação Gulbenkian, a iniciar uma acção marcante nas artes em Portugal, Jorge Vieira não obtém bolsa da Fundação, vai para Slade School de Londres a expensas próprias durante um ano, trabalhar com Henry Moore e Reg Butler. Em 1953 participa e é um dos premiados, entre cento e quarenta concorrentes seleccionados entre os mais de 2500 que concorreram no concurso internacional para o Monumento ao Prisioneiro Político Desconhecido. Registe-se que vinte e quatro artistas portugueses, alguns de reconhecida celebridade, foram recusados.
Apesar desse êxito, durante muitos anos Jorge Vieira não foi nem respeitado nem encorajado em Portugal como deveria, uma distância entre o artista e a sua pátria em que está bem acompanhado, mas que no seu caso era mais profunda por ser homem de intransigente verticalidade, que não pactuava com a ausência de liberdade, por ela lutava das mais diversas formas com um empenhamento político que lhe valeu ser afastado do ensino e de outras instituições do Estado, não pactuava com a mediocridade, nunca deu um passo nos caminhos mais ou menos oblíquos da auto-promoção distanciando-se, até por vezes com acinte para não dar margem a qualquer dúvida, da critica de arte, dos fazedores de modas, dos mentores do mercado. Um homem dessa têmpera, só podia ser como era: um homem socialmente empenhado, um artista inquieto, atento, acutilante. Mas a isto, que por si só já é raro, Jorge Vieira acrescentava a centelha de um génio com a vibração metálica do sol, uma força telúrica, uma ironia feroz que estilhaçava o senso comum, um olhar olímpico que radio-fotografava o universo, as especiarias com que traçou um percurso ímpar.
O seu percurso, a sua obra escultórica é rara e singular. O seu real imaginário atravessa o surrealismo, o abstracionismo, o realismo e os primitivos da África Negra, dos Caldeus, dos Hititas, das Ciclades, em que se isso tudo é reconhecível tudo isso desconstrói com uma liberdade de tal modo livre na criação das formas que a sua obra é inigualável e inclassificável. Da terra cota ao ferro, das pequenas peças às de grande dimensão, como o Homem-Sol no Parque das Nações e outras em Beja, Grândola e Almada, para referir as mais conhecidas, é um imenso Olimpo de figurações, mesmo as mais abstratizantes, que celebram a vida no que ela tem de mais eterno: a ritualidade pagã da alegria de viver, o celebrar a terra na sua contínua transformação, a liberdade no que tem de mais absoluto, o mais vibrante e delicado erotismo. Essa recolha, esse cruzar de conhecimentos é transmitido pelas suas mãos inteligentes que conheciam os segredos mais íntimos dos materiais e eram movidas por uma criatividade e uma imaginação que corriam como um rio sem margens.
A representação tridimensional do corpo, tema central na obra de Jorge Vieira, tanto de corpos humanos, com destaque para a mulher, como zoológicos, com destaque para o touro, adquirem sempre novas anatomias, equilíbrios e dinâmicas extraordinárias. São pequenos e grandes deuses feitos por um homem-artista humano demasiado humano que tempestuava o quotidiano com a sua esfuziante criatividade, sempre inovador, sempre atento, sempre inigualável, que esteve sempre com o seu tempo e para lá do seu tempo a questioná-lo com intransigência artística, social e politica, abrindo as fronteiras do futuro.
–Assinalando o Centenário de Jorge Vieira em Beja no Centro de Arqueologia e Artes uma exposição sobre “O Touro na Obra de Jorge Vieira”, até março. Aproveitar para visitar o Museu Jorge Vieira instalado na antiga casa do Governador, no Castelo de Beja.
Um dos temas ultimamente em destaque são as eleições intercalares nos EUA, como se todo o mundo e ninguém estivesse dependente do seu resultado e como se fosse substancialmente decisivo os democratas suplantarem os republicanos ou vice-versa.
Reprodução da colagem de John Heartfield, «How to make dollars» Créditos/ autor do artigo
Acomunicação social, a tradicional e a veiculada pelas redes sociais, é uma cloaca a céu aberto onde os poderes dominantes escoam a propaganda para condicionar a opinião pública. Quotidianamente alinham-se exemplos, tanto dos sucessos nacionais como internacionais, para não haver fissuras nem incertezas. Um dos temas ultimamente em destaque são as eleições intercalares nos EUA, como se todo o mundo e ninguém estivesse dependente do seu resultado e como se fosse substancialmente decisivo os democratas suplantarem os republicanos ou vice-versa, nunca se referindo que tanto uns como outros obedecem aos interesses conjunturais dos poderosos poderes económicos do complexo militar, financeiro e tecnológico que são quem de facto determina os vencedores.
Teresa de Sousa, uma das mais assanhadas jornalistas porta-voz em Portugal da «democracia» coca-cola do «mercado livre», anda a escrevinhar uns Diários de Houston no Público em que relata alguns episódios das lutas eleitorais em curso nos EUA, como se fossem cruciais para alterar o que é essencial e imutável nas políticas económicas neoliberais do «mercado livre», o tal em que as empresas podem cobrar o quiserem porque o governo se exonera de regular o que quer que seja.
«Qual a “magia” de Obama? A mesma com que obteve um prémio Nobel da Paz, para depois bombardear quatro vezes mais países que Bush Filho, o que invadiu o Iraque, e lançar seis vezes mais bombas.»
Claro que não tem uma palavra sobre o «mercado livre» daquela «democracia» que põe em prática uma política económica de que os trabalhadores são excluídos, em que os seus direitos conquistados em anos de duras lutas se degradam cada vez mais. «Mercado livre» em que o governo se demite de intervir na economia, que desmantelou a regulamentação anti-monopólios e em que quem domina e traça os planos económicos é Wall Street, favorecendo os financeirizados grandes monopólios. Utilize-se como exemplo um desses textos em que escreve uma diatribe em louvor de Obama, que, segundo ela, entrou na campanha eleitoral em curso nos EUA para «exercer a sua magia» usando «as suas qualidades de oratória intactas». Qual a «magia» de Obama? A mesma com que obteve um prémio Nobel da Paz, para depois bombardear quatro vezes mais países que Bush Filho, o que invadiu o Iraque, e lançar seis vezes mais bombas.
A «magia» de Obama, que, com as suas «qualidades de retórica intactas», prometeu antes de ser eleito aumentar o salário mínimo e apoiar a sindicalização. Assim que se sentou na cadeira do poder, rapidamente anunciou que a única coisa que não podia fazer era aumentar o salário mínimo e que estimular a sindicalização era um mal para o «mercado livre» porque sindicalizar o trabalho iria incentivar os trabalhadores a reivindicarem melhores condições de trabalho e melhores salários. A «magia» da retórica de Obama focou-se em agradecer e apoiar os seus doadores, amplamente maioritários em Wall Street, quando a economia dos EUA já era sobretudo de capital fictício. Não perdeu tempo a reunir-se com os banqueiros de Wall Street para lhes garantir que não se deviam preocupar com os eleitores das classes desfavorecidas que nele tinham votado. Ele, Obama, estava ali para os meter na ordem. Ele, Obama, estava de caneta em punho na Sala Oval da Casa Branca para que a Reserva Federal germinasse a maior quantidade de crédito da história da humanidade, tudo a correr para os bolsos de uma minoria muito minoritária da população. Nada para a economia, nada para os salários, tudo para manter bem altos os valores dos títulos-lixo, tão altos que não pudessem cair e para que se gerasse o maior boom obrigacionista da história. Ele, o democrata Obama igual aos republicanos Bush, pai e filho, continuava a obra do democrata Clinton, que desarmou a lei anti-trusts de Sherman, 1890, e Clayton, 1914, que foram assertivamente postas em prática por Roosevelt para combater a Grande Depressão.
«Não espanta, nem causa alguma admiração que nesta «democracia» de combates wrestling entre dois partidos, nos tempos actuais o Partido Democrata esteja, em políticas económicas e financeiras, à direita do Partido Republicano. Lá chegará o dia em que o Partido Republicano volte a estar à direita do Partido Democrata, tudo depende dos interesses económicos que lhes dão apoio variável.»
São esses dignos representantes da política sempre a favorecer o grande capital que esta escrevente aplaude a quatro mãos. É uma recruta da tropa peralvilha que subverteu o jornalismo da chamada comunidade internacional, onde se acoitam os antigos impérios coloniais, o actual império dos EUA e mais uns quantos colonizados que ainda não se libertaram dessas tutelas, para o transformarem numa farsa de propaganda ao serviço do imperialismo neoliberal.
Agora estão do lado dos democratas, de Biden e restante trupe onde também têm lugar destacados neocons republicanos, que continuam essas políticas económicas e financeiras que, até mais que as políticas pró-empresariais e pró-financeiras dos republicanos – ainda que polvilhadas com os perigosos arroubos proto-fascistas de Trump e seguidores –, estão a desmantelar todo um legado de protecção da economia, legado anti-monopolista e de contenção dos impactos da financeirização, posto em prática nos anos de New Deal. Não espanta, nem causa alguma admiração que nesta «democracia» de combates wrestling entre dois partidos, nos tempos actuais o Partido Democrata esteja, em políticas económicas e financeiras, à direita do Partido Republicano. Lá chegará o dia em que o Partido Republicano volte a estar à direita do Partido Democrata, tudo depende dos interesses económicos que lhes dão apoio variável. A cartilha das guerras, golpes de Estado, revoltas coloridas e outras técnicas de destabilizar é igualmente lida pelos dois partidos, são parte integrante de um arsenal explanado em 1992 no Defense Planning Guidance do neocon Paul Wolfowitz, documento em que se estabelece uma nova estratégia dos EUA após a desagregação da União Soviética, que tem sido aplicado, retocado e melhorado pelos seus seguidores republicanos e democratas, durante todos estes anos, e que é a raiz da doutrina de uma «nova ordem mundial sustentada e comandada pelos EUA» enquanto única superpotência que se predispõe a fazer alianças conjunturais conforme os conflitos, para que a sua hegemonia não seja posta em causa, pelo que deve contrariar e bloquear qualquer eventual competidor, nomeadamente «as nações industriais desenvolvidas». A União Europeia, particularmente a Alemanha, o seu motor, e o Japão que se cuidem! Aliás, a UE é singularmente referida: «ainda que os Estados Unidos apoiem o projecto de integração europeia, devemos estar atentos e prevenir a emergência de um sistema de segurança puramente europeu que mine a NATO e a sua estrutura de comando militar».
«É notável o autismo que conduz a UE, por arrasto toda a Europa, para a irrelevância económica, já que a política balança entre a subserviência indisfarçável e fracos arremedos logo metidos na ordem, para tudo desaguar na obediência servil aos ditames dos que estão dispostos a tudo para impedir qualquer alteração ao ordenamento neoliberal»
Para lá dos sucessos de muitas batalhas, a guerra em curso em que a Ucrânia é palco é bem ilustrativa desse desígnio. É o palco de uma guerra entre os EUA/NATO e a Rússia, em que os EUA defendem a ordem unipolar que impuseram depois da queda do Muro de Berlim e que aproveitam para enfraquecer mais rapidamente a Europa e a sua «nação industrial mais desenvolvida», pondo-a bem atrelada a reboque dos seus interesses. Os autocratas da EU, destaque para Ursula von der Leyen, Josep Borrell e Charles Michel, governantes de muitos países, realce para a fiel aliada Grã-Bretanha, Polónia e estados bálticos, são as suas destacadas marionetas. É notável o autismo que conduz a UE, por arrasto toda a Europa, para a irrelevância económica, já que a política balança entre a subserviência indisfarçável e fracos arremedos logo metidos na ordem, para tudo desaguar na obediência servil aos ditames dos que estão dispostos a tudo para impedir qualquer alteração ao ordenamento neoliberal, sempre defendido com a faca nos dentes de uma política de guerra, como se tem estado a assistir desde há dezenas de anos e que agora subiu um patamar na guerra dos EUA/NATO por procuração na Ucrânia.
Um dos pilares deste estado de sítio é uma poderosa máquina de desinformação e propaganda que se apoderou praticamente da totalidade dos meios de informação na chamada comunidade internacional, rebuçada de independente, que, tal como as redes sociais, é propriedade de plutocratas internacionais e nacionais onde ecoam, com maior ou menor relevância, as notícias que, directa ou indirectamente, antecipam, justificam e sustentam as manobras do império, das mais brutais às mais brandas, das mais agressivas às mais diplomáticas. Esses exércitos de mercenários mascarados de jornalistas são os alcoviteiros de um universo dominado e controlado pelo 1% da humanidade que detém poder económico e financeiro igual aos outros 75%. Com esta desigualdade, a democracia é uma impossibilidade, por maiores que sejam os contorcionismos com que lantejoulam a liberdade, as liberdades. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais e essa dura realidade é escamoteada pelo terrorismo informativo de que somos alvo. É uma campanha tóxica sistemática e diária promovida pelas oligarquias que controlam o universo através dos seus serventuários.
«Com esta desigualdade, a democracia é uma impossibilidade, por maiores que sejam os contorcionismos com que lantejoulam a liberdade, as liberdades. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais e essa dura realidade é escamoteada pelo terrorismo informativo de que somos alvo.»
O desnudar desse estado de sítio tem sido feito por vários intelectuais e académicos, sendo justo destacar Noam Chomsky1, que colocam em causa as razões políticas e culturais dessa espiral crescente de desinformação e manipulação que corrói mesmo a esquerda, como ele denuncia: «Não me interessa escrever sobre a Fox News. É muito fácil. Prefiro falar dos intelectuais progressistas que se autodenominam corajosos que pretendem (ou acreditam) criticar o poder, defender a verdade e a justiça. São os guardiões da fé. Fixam os seus limites. Determinam até onde podem ir. Repetem “vejam como sou corajoso!” mas ninguém pode ultrapassar por um milímetro que seja o que dizem. Os mais instruídos entre eles são os mais implacáveis defensores do sistema.»
Um dos grandes trunfos dos oligarcas e dos plutocratas ao seu serviço é terem conseguido que mesmo as elites progressistas tenham entrado para os círculos do poder, deixando à porta quaisquer imperativos morais, como Edward Said denunciou2: «A meus olhos nada é mais repreensível que esta disposição de fugir, esta deserção tão característica de uma posição de difícil princípio que se pensa pertinentemente justa. Este medo de parecer muito político e reivindicativo, esta necessidade de se ser aprovado por quem detém o poder; este desejo de manter uma reputação de objectividade e de moderação com a esperança de ser solicitado, consultado e de se sentar num qualquer prestigioso comité, com o objectivo de se manter no meio das correntes dominantes e de receber em troca uns favores, um diploma, uma espórtula, uma embaixada.» Este é por excelência o modo corruptor dominante que neutraliza, desarma, mata qualquer vida intelectual, torna-se uma prática normalizada que é veiculada diariamente pela comunicação social estipendiada, seus funcionários e comentadores contratados. As excepções, sempre à beira do abismo, são cada vez mais raras.
Para as classes dominantes, para a economia neoliberal, para as multinacionais e fundos abutres a democracia é um eufemismo e a difusão intensiva das suas regras uma urgência que têm com bastante sucesso posto em prática.
1.Leia-se Noam Chomsky, Propaganda e Opinião Pública, Campo da Comunicação, 2002; A Manipulação dos Media, Inquérito, 2003; Mídia, Propaganda Política e Manipulação, Martins Fontes, 2021.
2.Edward Said, Des Intellectuels et du Pouvoir, Seuil, 1996, p. 116-117.
A construção desta fina teia de aranha visa a despolitização efectiva do mundo contemporâneo, que a alienação seja aceite enquanto normalidade, que as lutas sociais simulem mudar tudo para não mudar nada.
La Trahison des Images, René Magritte, 1929, LACMA , Museu de Arte do Condado de Los Angeles
As Realidades (fábula), de Louis Aragon
Era uma vez uma realidade com suas ovelhas de lã real a filha do rei passou por ali E as ovelhas baliam que linda que está A re a re a realidade.
Na noite era uma vez uma realidade que sofria de insónia Então chegava a madrinha fada E realmente levava-a pela mão a re a re a realidade.
No trono havia uma vez um velho rei que se aborrecia e pela noite perdia o seu manto e por rainha puseram-lhe ao lado a re a re a realidade
CAUDA: dade dade a reali dade dade a realidade A real a real idade idade dá a reali ali a re a realidade era uma vez a REALIDADE.
Diariamente somos confrontados com a realidade, com as realidades, como políticos, economistas e empreendedores preferem dizer, que acabam por tecer uma teia de aranha intimidativa onde nos querem apanhar num tempo em que cada vez mais devemos desconfiar da realidade, das realidades, como nos são apresentadas para nelas acreditarmos, para por elas sermos constrangidos, a elas não podermos escapar.
São inúmeras as realidades que nos são impingidas, que não passam de ficções, que, de tão repetidas, deixam de ser escrutinadas e entram nos glossários da comunicação social controlada directa ou indirectamente pelo império, dispensando verificações e certificações dos variados e enviesados polígrafos. Estamos cercados por uma opinião dominante sustentada em realidades ancoradas no senso comum, pelo que escapam a qualquer análise racional, com o objectivo de subjectivamente direccionar as apreciações críticas não conformes com o pensamento preponderante e as narrativas que diariamente, hora a hora, são construídas e vendidas como verdade, subvertendo a consigna de Lénine que só a verdade é revolucionária, porque a verdade foi substituída pela realidade, pelas realidades.
«São inúmeras as realidades que nos são impingidas, que não passam de ficções, que, de tão repetidas, deixam de ser escrutinadas e entram nos glossários da comunicação social controlada directa ou indirectamente pelo império, dispensando verificações e certificações dos variados e enviesados polígrafos.»
Realidade, realidades que se impõem como uma evidência não passível de qualquer debate, dogmas que se querem impossíveis de ultrapassar. Um muro resistente a todos os idealismos, a todas as ideologias militantes porque, segundo os seus próceres, as realidades da economia mundial, os veredictos dos mercados financeiros e dos seus braços armados, nomeadamente FMI, Banco Mundial, empresas de notação, etc., é que determinam a pulsação da vida concreta, a vida autêntica em que não há lugar para as pessoas, pelo que as relações sociais e políticas estão subordinadas ao determinismo desumanizado da realidade.
O seu alfa e ómega é o TINA (There Is No Alternative) de Margaret Thatcher quando vendia, com os seus dotes de feirante do capitalismo, que não haveria alternativa ao neoliberalismo, às leis do mercado, à globalização, um totalitarismo muito do agrado dos democratas liberais e iliberais acantonados no centro-direita, direita e extrema-direita, que estão a conquistar espaço político mundo fora, principalmente na Europa, o que nos EUA e outros países anglo-saxónicos é de há muito tempo um facto mascarado por regulares combates de wrestling entre dois partidos que prosseguem no essencial os mesmos objectivos e que procura ser modelo universal para o império de ilusões em que as elites progressistas se afundam. Por cá, encontram-se acantonados na Iniciativa Liberal, Chega , CDS e no PSD, mas também no PS, onde a sua tendência mais adossada à direita contamina o todo.
«(…) as realidades da economia mundial, os veredictos dos mercados financeiros e dos seus braços armados, nomeadamente FMI, Banco Mundial, empresas de notação, etc., é que determinam a pulsação da vida concreta, a vida autêntica em que não há lugar para as pessoas, pelo que as relações sociais e políticas estão subordinadas ao determinismo desumanizado da realidade.»
A economia, que deixou de ser uma ciência que devia promover o bem-estar das pessoas, tem um papel central na definição da realidade, é o centro das discussões sobre a realidade o seu presente e o seu futuro. É o seu guardião, o seu garante. O que não deixa de ser curioso quando é fácil constatar que enquanto firma esse seu saber é incapaz não só de compreender o que acontece como de prever o que irá acontecer, navegando à vista pelas crises do capitalismo que se vão sucedendo em ciclos cada vez mais breves até hoje ser uma crise contínua e permanente.
Apesar de serem fáceis de enumerar os desastres económicos, as bolhas que rebentam sucessivamente estoirando a realidade para a substituir por outra que já tem no seu bojo um eventual e garantido desastre, essa realidade, essas realidades condenadas às crises que, como Marx demonstra em O Capital, representam os sintomas inevitáveis do aprofundamento das contradições entre o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social e das relações sociais de produção e distribuição capitalistas, determinando os limites para o desenvolvimento da produção capitalista, evidenciando seu carácter enquanto modo de produção histórico e transitório, mantém inalterado e sem qualquer ruptura um discurso económico sobre a realidade como se o universo estivesse para sempre condenado a uma patologia incurável com o saber económico prevalecente, cada vez mais sofisticado e, paradoxal mas não inesperadamente, mais impotente.
Essa real realidade, passe o pleonasmo, que qualquer marxista sabe ler e combater, prossegue indiferente o seu percurso de enunciar a economia como o saber da realidade, mau grado as evidências dos factos desmentirem persistentemente esse conhecimento, o que não tem produzido nenhuma disrupção grave ao longo dos séculos, se exceptuarmos a Comuna de Paris e a Revolução de Outubro que interromperam a praxis dessa ideologia desastrosa e o curso criminal.
Desde que a economia se consolidou como ciência, elaborou e continua a elaborar a realidade absorvendo crises e mesmo desastres, até o capitalismo actual ter uma imagem consistente e hegemónica que funciona como um imperativo de submissão que tece uma refinada teia de aranha onde quer prender toda a humanidade para não ser concebível qualquer corte ou rotura numa hipotética relação ontológica entre o capitalismo e a existência humana, o que é uma impossibilidade absoluta que a esquerda consequente, a que não abdica de princípios nem abandona o terreno das lutas anti-capitalistas, sabe ser uma falácia pelo que insiste no carácter contingente da realidade histórica do capitalismo e não dá por eterna a sua dominação mesmo quando plasma a imagem de uma ditadura imperial económica indiscutível que resolve gestionariamente os seus impasses.
O grande final desejado para essa ópera, simultaneamente bufa e trágica, seria deixar de pensar que é possível sequer pensar que uma sociedade outra é possível. Um objectivo desde sempre perseguido pelos mentores, com mais ou menos tiques democráticos, do totalitarismo capitalista, o que se tornou mais visível depois do fim da primeira grande experiência histórica do socialismo. Gente para quem não é suportável a hipótese de que o que foi possível um dia será novamente possível, com outra forma e noutro contexto. Para a esquerda, para as esquerdas o drama é a sua fragmentação, muitas por se terem traído há muito tempo, outras por claudicarem autofagicamente ficando presas fáceis da teia de aranha da realidade, das realidades que o neoliberalismo tece para tentar apoderar-se da totalidade dos bens humanos, particularmente a cultura, a arte, a educação e dos direitos sociais, económicos e políticos conquistados em séculos de duras lutas, para os transformar em mercadorias.
«O grande final dessa ópera, simultaneamente bufa e trágica, seria deixar de pensar que é possível sequer pensar que uma sociedade outra é possível. Um objectivo desde sempre perseguido pelos mentores, com mais ou menos tiques democráticos, do totalitarismo capitalista, o que se tornou mais visível depois do fim da primeira grande experiência histórica do socialismo.»
Esta é a realidade que nos é subjectivamente imposta hora a hora, minuto a minuto, utilizando sofismas que de tanto repetidos passam por verdades indiscutíveis, que não são mais que falcatruas incrustadas nos textos noticiosos ou opinativos para lhes dar credibilidade e conferir espessura. Alguns têm uso diário, são parte indissociável da construção do real concreto autêntico que nos querem impor pelas realidades da economia mundial pastoreada actualmentepelo império norte-americano que se ergueu sobre brutais sofrimentos e aventuras sangrentas plantadas por todo o mundo.
Um desses embuste é o da «comunidade internacional». Refere-se «comunidade internacional» como se isto representasse um consenso da esmagadora maioria dos países do mundo. Nada de mais falso. «Comunidade internacional» reporta-se aos EUA, Canadá, países europeus, Japão e Austrália, cerca de 15% da humanidade, que normalmente coincidem em impor as regras com que os EUA pretendem continuar a explorar o mundo tripudiando o direito internacional, que até lhes é favorável, mas que consideram insuficiente para que o seu domínio permaneça. Agora, quando a ordem unipolar que impõem é colocada em causa e o poder do império se está a degradar sem grandes hipóteses de recuperação, tornam-se ainda mais violentos impondo guerras em que se envolvem directa ou indirectamente, tentando golpes de Estado, destabilizando países, impondo sanções, toda uma panóplia de acções em que procuram adiar a sua decadência.
«Refere-se “comunidade internacional” como se isto representasse um consenso entre a esmagadora maioria dos países do mundo. Nada de mais falso. “Comunidade internacional” reporta-se aos EUA, Canadá, países europeus, Japão e Austrália, cerca de 15% da humanidade, que normalmente coincidem em impor as regras com que os EUA pretendem continuar a explorar o mundo (…)»
Outra impostura é o G7, apresentado como os sete países mais industrializados do mundo e os economicamente mais ricos. Quem são os países do G7? Os EUA, a Alemanha, a França, o Canadá, a Itália, o Japão e o Reino Unido. A liderança indiscutida é a dos EUA, que comandam esse pequeno grupo de países, impondo estratégias económicas, políticas e militares. A curiosidade é que pelos números do FMI e do BM [Banco Mundial], no ano 2020, com ligeiríssimas alterações nos cinco anos anteriores, o G7 não reúne nem os países mais ricos nem os mais industrializados.
Considerando o PIB nominal os sete países mais ricos são por esta ordem, EUA, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, Índia, França, se for o PIB per capita nenhum país do G7 figura, são o Qatar, Luxemburgo, Singapura, Kuweit, Suíça, Emiratos Árabes Unidos, Brunei. Pelo PPC (Paridade do Poder de Compra que relaciona o poder aquisitivo da pessoa com o custo de vida do local) a ordem é China, EUA, Índia, Japão, Alemanha, Rússia, Indonésia. Se olhamos para o quadro dos países mais industrializados temos, China, EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, Rússia, Coreia do Sul.
Quando repetidamente se ouve ou lê G7 não é esta verdade que se percepciona. De facto o G7 é um grupo de países ocidentais, de democracias capitalistas, de maioria branca, pertencentes à NATO, só o Japão é excepção. É um grupo de países liderado pelos Estados Unidos, que impõem o seu ponto de vista, com a garantia de ser aprovado por unanimidade, estabelecendo regras e políticas internacionais que o beneficia em detrimento de outros países, até de países integrantes do G7.
«A curiosidade é que pelos números do FMI e do BM, no ano 2020, com ligeiríssimas alterações nos cinco anos anteriores, o G7 não reúne nem os países mais ricos nem os mais industrializados.»
É a nova ordem internacional baseada em regras, que subverte o direito inscrito na Carta das Nações Unidas, tende a converter a ONU numa instituição periférica, menorizando-a desde que não se submeta às exigências dessas regras que foram traçadas e impostas pelos think tanks neocons que de facto comandam a Casa Branca, qualquer que seja o seu ocupante, seguida pelos seu rebanho de países amestrados, com destaque para os autocratas de Bruxelas que nem sequer foram eleitos.
Outra falsidade é a NATO ser uma aliança defensiva! A NATO, que nos últimos anos bombardeou sistematicamente a Jugoslávia, com destaque para Belgrado, que participou na invasão do Afeganistão, que apoiou com ardor as guerras contra o Iraque, a Síria e a Líbia, treinando, financiando e armando os grupos mercenários dos fundamentalistas do Estado Islâmico, sempre de mão dada com os terroristas.
A NATO, que a mando dos EUA, que é de facto quem a comanda, cerca e despeja bombas em qualquer país que se escape ou pretenda escapar às regras do império, obedecendo caninamente ao seu dono pela voz do amanuense de serviço, ameaçando a torto e a direito quem não se submeta aos seus ditames dos EUA, com o descaramento de invocar o direito internacional que a NATO manda sistemática e despudoradamente para as urtigas. Nada disto é denunciado. Até se fantasia noticiosamente que é uma organização em que se debatem ideias e tem autonomia, o que é, se não fosse sinistra, uma das comédias mais hilariantes que nos é vendida.
As contrafacções em que essa realidade se funda e que caldeia são mais que muitas. Os três exemplos referidos fazem parte da grinalda de oxímoros, tais como «economia social de mercado», «desenvolvimento capitalista sustentável», «economia capitalista verde», «direitos humanos», «valores civilizacionais», «regras democráticas», «mundo ocidental civilizado». Muitos outros poderiam ser referidos, que martelam a realidade, são mutações de um vírus difundido urbi et orbi para sustentar e autenticar a grande mentira da realidade da sociedade capitalista que nos é mercadejada, sem um segundo de pausa, por uma poderosíssima máquina de propaganda mascarada de comunicação social independente, intermediada por inúmeras instituições internacionais, das mais secretas às mais visíveis, com variadas e coloridas designações nas suas extensões e as derivas nacionais.
«(…) são mutações de um vírus difundido urbi et orbi para sustentar e autenticar a grande mentira da realidade da sociedade capitalista que nos é mercadejada, sem um segundo de pausa, por uma poderosíssima máquina de propaganda mascarada de comunicação social independente (…)»
A construção desta fina, por vezes inextricável, teia de aranha, quase invisível por ser tão visível, como a célebre carta do conto de Edgar Allan Poe tão obviamente à vista de toda a gente que ninguém a via, é elaborada com os fios de uma corrupção material e imaterial sistémica, generalizada, que visa a despolitização efectiva do mundo contemporâneo, que a alienação se espalhe tentacularmente e seja aceite enquanto normalidade, que as lutas sociais simulem mudar tudo para não mudar nada, por mais bem intencionadas e radicais que sejam, que a liberdade seja a das liberdades oferecidas pelos mercados, que as palavras de ordem revolucionárias se transformem em slogans para que a linguagem humanista seja absorvida pela linguagem técnica, que o mundo seja aplainado perdendo particularismos e diversidades para se aculturar nos transes insípidos do sentimentalismo telenovelesco deste capitalismo em estado terminal que promove o genocídio político, social e cultural. Um mundo em que, como disse Óscar Wilde, «a coerência é a virtude dos imbecis».
Citando Aldous Huxley do Admirável Mundo Novo, esta realidade, estas realidades pretendem impor «a ditadura perfeita que terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura onde, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão». Contra elas há que recordar e sublinhar que as lutas sociais, económicas, políticas e culturais têm que sempre fazer parte de um projecto mais profundo e radical de transformação da sociedade, impossível de concretizar sem uma sólida organização que tenha o seu pensamento próprio e autónomo enraízado no conhecimento histórico acumulado. Não perceber isto é suicidar a esquerda, as esquerdas.
Ao contrário do que nos querem fazer acreditar os fascistas, a extrema-direita europeia nunca foi isolada. Deram-lhe sempre corda por saberem que contam com eles na primeira linha do combate às esquerdas consequentes.
CréditosGiuseppe Lami / EPA
Vive-se um tempo em que há um substancial ressurgimento reaccionário que se verifica e consolida com os avanços da direita e extrema-direita por toda a Europa. Não são os fascismos clássicos, apesar das referências explícitas e nostálgicas aos regimes dos anos vinte e trinta do séc. XX, em que as referências mais explícitas são metidas nas gavetas durante os períodos eleitorais, mantendo todo o seu travejamento principal: autoritarismo, limitação das liberdades democráticas, nacionalismos reaccionários variáveis de país para país mas de raiz comum, xenofobias e racismos variados apontados a grupos e comunidades específicas.
Esses fascismos em marcha acelerada na Europa, classificados de ultra-direita para legitimarem a sua integração nos jogos demo-liberais tornando-os aceitáveis, distinguem-se dos seus antepassados por dispensarem tropas de choque, substituírem as camisas castanhas, negras, azuis e verdes por vestimentas ditadas pela moda, não proporem genocídios em massa ainda que tenham um discurso revisionista sobre os que foram praticados, moderarem alguns dos seus tiques totalitários, enquanto lhes for conveniente, almofadando os combates com que deveriam ser enfrentados, escusarem-se a prosseguir políticas económicas corporativistas em favor do aprofundamento das políticas económicas neoliberais com colorações nacionais que aliás o têm, embora mal guardado e mal oculto, nos seus subterrâneos.1
«Metropolis», de Georges Grosz Créditos
Neofascismo que se apresenta, como sempre o fez, com uma paleta variada de tipologias interventivas, dos tiques mais trauliteiros aos mais fragantes de que, por cá, os melhores exemplares são o Chega e a Iniciativa Liberal, à semelhança do que acontece, por exemplo, em Itália, com os Irmãos Itália, Força Itália e a Liga. São os neofascismos que se têm espalhado por todo o planeta como uma epidemia bem alimentada pelos diversos formatos de uma desenfreada especulação financeira, pela ordem unipolar comandada pelos EUA/NATO e seus satélites, e toda uma bem oleada máquina de condicionar a informação com relevo para a comunicação social estipendiada e os meios universitários vendidos ao pensamento dominante a produzirem toda uma enorme variedade de opinantes com assento garantido na imprensa, rádio, televisão e nas redes sociais.
Na Europa, partidos assumidamente herdeiros dos fascismos históricos assumem o poder, como agora em Itália, ou estão com larga representação no poder influenciando-o decisivamente, como na Suécia, depois das últimas eleições, o que já era regular na Polónia, Hungria, Eslováquia, Eslovénia, dirigidos por partidos que não se assumem como fascistas mas que homenageiam e exaltam o fascismo e condenam a resistência antifascista tal como sucede nos países do báltico, Letónia, Lituânia, Estónia, onde a ultra-direita tem forte influência no poder.
A realidade é que o fascismo ocupa de facto um vasto território europeu e tem registado avanços importantes em França, Espanha, Alemanha, Áustria, Croácia, o que deveria ser um fortíssimo sinal de alarme, sobretudo quando a direita, mesmo a mais moderada, se tem demonstrado disposta a fazer acordos e partilhar o poder com os neofascistas, fazendo as mais cínicas e hipócritas declarações políticas lavando-o e branqueando-o, mesmo quando os partidos com quem se dispõem a fazer acordos não o neguem, ou neguem o nome e não as práticas.
Para os partidos ditos do centro, centro-direita e direita, dispostos a todos os acordos com os fascistas qualquer que seja a sua origem e destino, enfaticamente ocultando-os sob a designação de ultra-direita, a democracia sempre foi instrumental, tem uma malha larga é um albergue espanhol como se pode verificar na composição do Partido Popular Europeu amplamente maioritário nos areópagos e nos burocratas de Bruxelas.
«A realidade é que o fascismo ocupa de facto um vasto território europeu e tem registado avanços importantes em França, Espanha, Alemanha, Áustria, Croácia, o que deveria ser um fortíssimo sinal de alarme (…)»
O que lhes interessa é que as elites da sua corte mantenham a hegemonia, os autocratas não aviltem a sua maquilhagem liberal, os capitais fluam e que se cumpram os acordos mais vantajosos para o grande capital, que a Europa se mantenha submissa e a prestar vassalagem aos EUA e à ordem unipolar que o império decadente quer continuar a impor. Se o neofascismo assalta a Europa foi porque lhe abriram as portas e as esquerdas, de forma diversa, claudicaram ou se ausentaram.
Ao contrário do que nos querem fazer acreditar os fascistas, a extrema-direita europeia nunca foi isolada, deram-lhe sempre corda por saberem, até bem demais, que contam com eles na primeira linha do combate às esquerdas consequentes, as que não dão por eterno o princípio da dominação capitalista por mais consistente e hegemónica que se apresente mesmo que essa seja a sua imagem actual. Desde que a extrema-direita se comprometa com os ditames nucleares das políticas impostas pelos EUA/NATO à Europa, aliás, nunca negaram esse compromisso, as suas outras opções políticas são questões subsidiárias do grande jogo geoestratégico que nos dias de hoje está a viver lances impactantes.
São várias as falácias que os demo-liberais serventuários das imposições imperiais unipolares andam a vender nos media. A primeira é que a extrema-direita tem sido apartada na Europa, um desiderato que, na opinião deles, se mostrou ineficaz, como se algum dia os fascistas tivessem sido afastados da vida política e dos processos eleitorais. Por cá, de forma enviesada, foi o argumento usado pelo líder parlamentar do PSD a querer obrigar os deputados do seu grupo parlamentar a votar num deputado do Chega para vice-presidente da Assembleia da República, o que só iluminou a vontade do presidente do seu partido ir para a cama com os lusos fascistas se isso for necessário para chegar ao poder, um amor de perdição que tem procurado a todo o custo ocultar.
A segunda falácia é que havendo uma forte vontade popular a exprimir o seu apoio à extrema direita há que aceitar e acreditar na daí decorrente normalização do fascismo. Esquecem o que Manuel Loff já evidenciou: «descrever a chegada da ultra-direita ao poder como uma normal consequência do jogo eleitoral — exactamente como se diz, e mal, sobre a chegada de Mussolini ou Hitler ao poder — desvaloriza o que é óbvio: ela nunca reúne maiorias absolutas no campo eleitoral, e muito menos as consegue no campo social, pelo que só ganha a batalha pelo poder impondo-se no interior de grandes frentes de direita nas quais os partidos tradicionais têm hoje, como vemos, um papel crescentemente subalterno».
Na prática, aceitar como normal a ideologia fascista é extremamente curioso numa situação em que a direita, o centro-direita, o centro-esquerda e mesmo muita esquerda estão desideologizados, centram a sua acção no jogo eleitoral, na conquista do voto e nos apoios que os grupos económicos lhes concedem variavelmente.
O que se oculta é que só chegámos a essa situação por uma prolongada, crescente e eficaz sabotagem intelectual das massas empreendida pelos meios de comunicação social, os tradicionais e os modernos digitais, na sua esmagadora maioria controlados pela plutocracia, em que a informação se constrói com verdades, meias-verdades e mentiras, é sobretudo propaganda o que se já era há muitos anos percepcionável ainda se tornou mais visível com a guerra da Ucrânia, pela degradação da actividades culturais submetidas à lógica cultural do que é vendável, maioritariamente produzidas e comercializadas pelas indústrias culturais norte-americanas ou por elas padronizado, em que a cultura abandonou o campo do enriquecimento intelectual substituindo-o por um entretenimento pronto a usar e a esquecer, pela degradação das instituições públicas favorecendo as privadas, factores que provocaram um cerco e um ataque eficaz à percepção crítica do mundo envolvente, originando um mundo em que os indivíduos são cada vez mais acríticos, autistas e despolitizados, um mundo alienado em que o objectivo é que a alienação seja a norma universal subjectivamente aceite.
«Na prática, aceitar como normal a ideologia fascista é extremamente curioso numa situação em que a direita, o centro-direita, o centro-esquerda e mesmo muita esquerda estão desideologizados, centram a sua acção no jogo eleitoral, na conquista do voto e nos apoios que os grupos económicos lhes concedem variavelmente.»
O objectivo a médio prazo é destruir as esquerdas que historicamente nunca desarmaram nas suas lutas contra a exploração capitalista, nas suas formas arcaicas ou mais actuais, a longo prazo, apagar as lutas de classe. Tem tido alguns êxitos com outras esquerdas que se dividem entre as que abdicaram do seu passado social-democrata em que, sem ingenuidades, simulavam acreditar que no jogo eleitoral era possível encerrar uma luta de classes pacífica, pelo que acabaram por meter e fechar a sete chaves o socialismo nas gavetas e mesmo cometer as maiores perversões consubstanciadas nas terceiras-vias, e as que, impulsionadas por um colorido optimismo, acreditam que, milagrosamente, as novas lutas ditas fracturantes gerariam entropias que dispensavam a luta de classes pelo que havia um caminho possível para um capitalismo esclarecido e que as crises capitalistas se poderiam resolver gestionariamente.
Esquerdas que se esqueceram de uma trave-mestra do pensamento de Marx, de que o capitalismo se funda numa lógica de «contradições absolutas» que estão na natureza da acumulação do capital. Que essas contradições produzem periodicamente crises que reclamam vidas e criam miséria.
É ao que estamos a assistir de maneira acelerada nos últimos anos desde a crise dos subprime em 2008, a salvação com dinheiros públicos dos bancos privados, a pandemia, as sucessivas guerras, desde a imposta à Jugoslávia até à mais mediática na Ucrânia que tem servido de biombo às que continuam em curso na Líbia, Síria, Iémen e em países africanos muitos onde o Estado Islâmico continua bem presente, às políticas securitárias nos EUA e de sanções que espalham um pouco por todo o mundo que tente não se submeter às suas regras, que subvertem sistematicamente o direito internacional e que são as regras de sobrevivência de um império em decadência, possuidor de um poderoso arsenal militar disseminado pelo universo.
«O objectivo a médio prazo é destruir as esquerdas que historicamente nunca desarmaram nas suas lutas contra a exploração capitalista, nas suas formas arcaicas ou mais actuais, a longo prazo, apagar as lutas de classe.»
As crises periódicas são, nos nossos dias, uma crise permanente de sucessivos sobressaltos que se repercutem por todo o universo, em que a luta de classes se torna mais dura, áspera e complexa, em que há que enfrentar com determinação esta vaga fascista que se pretende institucionalizar, o que muitos partidos políticos, do centro à direita, aceitam como uma nova normalidade.
As esquerdas, algumas esquerdas, cobardemente e por oportunismo, julgam poder sobreviver beneficiadas pelo seu servilismo ao grande capital, que praticam com afinco quando estão no poder. Outras andam em acústicos e coloridos zigue-zagues de marketing político, beneficiando da cobertura mediática que lhes é concedida, o que lhes assegura e mede a influência, diluindo a luta de classes nas lutas ditas fracturantes, que são importantes na alteração das atitudes sociais, mas iludem a possibilidade de radicais mudanças sociais.
A esquerda, as esquerdas, têm que se redescobrir. Umas acertando o norte na bússola que nunca perderam. Outras encontrando as saídas nos labirintos em que se perderam. Todas têm que ter a consciência nítida que no horizonte as nuvens acumulam-se, estão a desabar, prenunciam um futuro imediato pior que será bem pior se as forças de esquerda persistirem em desarmar-se ideologicamente, quando a defesa da democracia, dos direitos sociais, económicos e políticos exigem maior firmeza e as lutas por esses direitos e pela democracia tem que alargar os seus campos de acção e até encontrar novos instrumentos contra o cerco, que lhes é imposto pelas forças dominantes, aos mais diversos níveis.
1.Leia-se com proveito O Neoliberalismo não é um Slogan, João Rodrigues, Tinta da China, Maio 2022
A miserável queima de cem milhões de livros na Ucrânia emparceira com outras fogueiras célebres. É isso que, queiram ou não os seus promotores, o pavilhão da Ucrânia na Feira de Lisboa acaba por celebrar.
Lucio Massari (Bolonha, 1569-1633), «São Paulo, em Éfeso, exorta a queimar os livros heréticos», c. 1612. Óleo sobre tela, 193 x 277,5 cm. A obra integrou a colecção da Casa dos Príncipes de Liechtenstein de 1811 a 2008, quando foi leiloada pela Christie’s. Desde 2008 na Galeria Fondantico, de Tiziana Sassòli, em BolonhaCréditos/ Finnestre sull’arte
A estranheza desta edição da Feira do Livro de Lisboa é a de celebração de Fahrenheit 451, a temperatura do fogo a que ardem os livros, a temperatura com que foram incinerados cem milhões de livros sacrificados pelo actual governo ucraniano numa pira purificadora cujas chamas iluminam e continuarão a iluminar o teleponto onde diariamente o seu presidente, fazendo uso dos seus dotes histriónicos, quer fazer convencer os milhões de espectadores, que em todo o mundo são submetidos à audição dessas conversas em família, de uma realidade que a realidade vai desmentindo, sem que os jornalistas e editorialistas que as divulgam e que se deveriam obrigar a um mínimo de sentido crítico as questionem, por mais ridículas e inverosímeis que sejam.
Nada de novo, a não ser a intensidade de uma propaganda que não tem comparação nem quaisquer precedentes em nenhuma outra época da história e até ridiculariza e torna rudimentar o número realizado por Colin Powell no Conselho de Segurança da ONU a exibir provas factuais das fábricas de armas de destruição maciça que não existiam no Iraque de Saddam Hussein.
O efeito pretendido pelo comediante presidente, ao diariamente simbolicamente se vitimizar como se fosse a incarnação da Ucrânia, enquanto apresenta vitórias significativas sobre o seu bárbaro invasor capaz de atrocidades e brutalidades inomináveis sobre os virtuosos e indefesos ucranianos, tem-lhe rendido os dividendos de um apoio militar, económico e moral praticamente ilimitado que lhe entra pelas portas que os EUA/NATO e a Europa lhe escancararam e que continua a alimentar a corrupção endémica da Ucrânia, como se vai percebendo por um contrabando de armas que já não é possível ocultar.
A máquina de propaganda contínua é tão activa e eficaz que nenhum detalhe é desdenhado, como é bem exemplificado pela reportagem fotográfica da Vogue, em que o casal Zelensky assegura um futuro no mundo dos famosos e do mercado de luxo, qualquer que seja o desfecho da guerra da Ucrânia, o que também terá efeitos positivos em volume que certamente será ocultado nas contas em paraísos fiscais que o presidente já possuía antes da guerra eclodir ou outras que venha a abrir.
A guerra, com o seu rol de crueldades e barbaridades, sempre reprováveis qualquer que seja o ângulo porque seja analisada e cujo desencadear é inapelavelmente condenável, por mais complexo que seja o contexto histórico em que se desamarra, acaba por se tornar um trunfo de raro quilate para alguns, com Zelensky na linha da frente.
O fulgor das chamas em que se queimaram cem milhões de livros ilumina o terror instalado, os crimes e violações dos direitos humanos sem que isso arranhe os chamados valores civilizacionais do ocidente que a ele fica cego, surdo e mudo. Ilumina as proibições de todos os partidos políticos, alguns bem próximos de outros partidos até no poder em países apoiantes da Ucrânia, reduzindo a cinzas qualquer resquício de solidariedade com os militantes desses partidos, como os portugueses tiveram a oportunidade de ver na pessoa do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, que, sem querer saber mesmo dos que com ele comungam dos mesmos princípios, reafirmou o «apoio humanitário, económico, político e financeiro» de Portugal à Ucrânia, assegurando que se vai manter «esta ligação» sem esclarecer mas fazendo temer que Portugal acrescente mais uns milhões aos 250 milhões doados, que além de bem falta fazerem aos portugueses e aos serviços públicos coloca, se calculado em percentagem do PIB, o nosso país como um dos principais doadores, o que foi aplaudido pelo PS, PSD, IL, Chega e Livre, registe-se para memória futura.
Nada como engraxar com graxa da melhor qualidade os sapatos de Biden e Blinken, embora ninguém perceba que resultados positivos daí possam advir além de uma inflação galopante e uma crise económica anunciada. Esfarrapada e bem esfarrapada está a bandeira da miséria moral em que se queiram embrulhar.
«Ilumina as proibições de todos os partidos políticos, alguns bem próximos de outros partidos até no poder em países apoiantes da Ucrânia, reduzindo a cinzas qualquer resquício de solidariedade com os militantes desses partidos, como os portugueses tiveram a oportunidade de ver na pessoa do seu ministro dos Negócios Estrangeiros (…)»
Iluminada por essas chamas está também a total supressão da liberdade de opinião e de expressão da opinião, a suspeição generalizada, a sucessão de purgas de pessoas tidas como fiéis servidoras do país, desencadeando uma caça às bruxas com a obsessiva suspeição de colaboracionismo com as forças pró-russas que os Serviços de Segurança da Ucrânia (SBU), bem conhecidos pelos seus métodos discricionários e brutais, que até antes da guerra foram objecto de crítica nos EUA e países ocidentais, perseguem sem um segundo de pausa.
Iluminado pelas chamas em que se queimaram cem milhões de livros está agora o pavilhão da Ucrânia, que à cultura diz nada mas é convidada especial da Feira do Livro de Lisboa que se entrincheira na solidariedade com o povo ucraniano a qual, se parece uma atitude justa, acaba por ser, neste caso, um hino ao cinismo e à hipocrisia.
Num evento como a Feira do Livro, os irracionais e brutos atentados à cultura que todos os dias se perpetuam na Ucrânia não podem ser atirados para debaixo das cinzas de cem milhões de livros nem para a destruição de esculturas celebrando escritores russos e soviéticos, alguns destes nascidos na Ucrânia. A justa condenação da invasão e da guerra não pode nem deve abrir a porta do esquecimento para a destruição da cultura, para a cada vez maior aculturação com o desabrido culto da personalidade do Servo do Povo, para a enorme corrupção que campeia pelo país, nem para políticas discricionárias que têm por objectivo final suprir qualquer dissidência, espalhar o terror e o medo para submeter a mente das pessoas.
A miserável queima de livros na Ucrânia emparceira com outras fogueiras célebres em que livros foram consumidos como no incêndio da Biblioteca de Alexandria pelos romanos em 48 a.C.; a de livros islâmicos ordenada pelo cardeal Cisneros em Granada, em 1501; dos manuscritos aztecas em 1560, pelos invasores espanhóis; pelos nazis em várias cidades alemãs, em 1933; dos livros marxistas na década de 50 por McCarthy; pela queima de livros considerados subversivos por Pinochet, em 1973; os livros ímpios que o Estado Islâmico descobriu em 2015 na Biblioteca de Mossul. A lista podia ser mais longa, mas é a bastante e suficiente para colocar Zelensky em lugar destacado entre essa estirpe de gente que odeia a cultura. É isso que, mal ou bem, o pavilhão da Ucrânia na Feira de Lisboa, queiram ou não queiram os seus promotores, acaba por celebrar.
Lá estarão bem altas as chamas da queima dos milhões de livros para iluminar no pavilhão da convidada Ucrânia, o narcisismo de Zelensky a vitimizar-se para fazer pagar ainda mais cara a sua futura participação numa Vogue qualquer.
Pobre povo ucraniano cercado pelo terror da guerra que a Rússia há seis meses impôs e pelo terror de Estado que desde 2014 se vem agravando com o beneplácito do Ocidente.
Com o neoliberalismo capitalista a servir doses rituais de violência, a verdadeira catástrofe é o imobilismo: impõe-se a obrigação militante de combater as turbulências das falácias que o sistema moribundo manipula sem parar.
Imagem de «Ghosts» (1934), de George Grosz Créditos
Ursula von Leyen foi perorar ao Parlamento ucraniano expurgado de todos os partidos de oposição ao nazi-fascistas no poder, o que para ela e por extensão a Comissão Europeia a que preside deve ser um exemplo de democracia, para lembrar que é necessário que a Ucrânia acelere os procedimentos contra corrupção. Uma grossa piada, um grotesco número de rasca comédia não só pela composição dos parlamentares, mas por se conhecerem as íntimas relações da máfia dos oligarcas ucranianos com o poder, a começar pelo seu presidente, o pinóquio Zelensky. Ainda que hoje, até nos anos mais próximos por um calculismo sem um pingo de ética, se desconheçam o estado das contas nos paraísos fiscais de toda essa gentalha, pode-se presumir que, com esta guerra e a cornucópia de maravedis todos os dias despejada à ordem de Kiev, devem estar a aceleradamente engordar, a que não deve ser alheio, entre outras fontes de rapinagem, o denunciado contrabando de armas, noticiado por jornais completamente alinhados com a narrativa ocidental, que alguns dizem afectar um terço das enviadas. A senhora Ursula von Leyen afivela a máscara de um inexpugnável ar sério para dar estes conselhos numa charla a um parlamento que só representa a clique mais radical que assaltou o poder na Ucrânia e que, ao sabor das conveniências, ela deve considerar representativo e democrático.
«A presidente da Comissão Europeia, esse órgão de autocratas da UE que nem sequer se maquilha com batons eleitorais, remete, com o maior cinismo, a defesa do Estado de direito democrático para o caixote de lixo, subvertendo os residuais princípios democráticos que a UE tanto aclama, colocando-os na prateleira dos bens que se negoceiam ao sabor das conveniências.»
Fê-lo com o mesmo ar conspícuo, até contra a opinião expressa de alguns dos seus vice-presidentes, com que anunciou libertar para a Polónia 36 mil milhões de euros do programa de combate aos efeitos da pandemia sem que esse país tenha dado um único passo para que o poder judicial deixe de estar subordinado ao poder político, o que era e é apontado como uma gravíssima violação do Estado de direito, isto mesmo quando se sabe, até bem demais, que o direito, mesmo no mais democrático dos países, é um valor variável e é sempre o direito do mais forte à liberdade. A presidente da Comissão Europeia, esse órgão de autocratas da UE que nem sequer se maquilha com batons eleitorais, remete, com o maior cinismo, a defesa do Estado de direito democrático para o caixote de lixo, subvertendo os residuais princípios democráticos que a UE tanto aclama, colocando-os na prateleira dos bens que se negoceiam ao sabor das conveniências. Ursula von Leyen não é uma ocidental voz solitária, está bem acompanhada pelos seus pares que, em manada nos mais diversos fóruns ou nos encontros de geometrias variáveis em que se têm desdobrado para espelhar uma unidade sempre à beira de fissurar, têm revelado o pior do relativismo em política.
Tudo isto acontece enquanto a Europa vai sucumbindo económica, militar e politicamente, ficando cada vez mais dependente dos EUA, que vão adiando a sua decadência principalmente com os compromissos que a UE assume, fazendo exercícios de respiração assistida a um dólar cada vez mais frágil, contribuindo para os crescentes lucros do complexo industrial-militar-económico e financeiro do império, salvando da falência a indústria do fracking, o processo mais poluente de extracção de gás e petróleo, que vai vender à Europa a preços quatro ou cinco vezes superiores aos actuais, o que compromete quaisquer hipóteses de crescimento económico e atira para as calendas a tão acarinhada descarbonização com a prevista reactivação de centrais eléctricas a carvão e outros itens que estão a estilhaçar a fé na economia verde e na luta contra as alterações climáticas. Estes são entre outros os sinais que se acumulam no incerto horizonte da Europa.
«Tudo isto acontece enquanto a Europa vai sucumbindo económica, militar e politicamente, ficando cada vez mais dependente dos EUA, que vão adiando a sua decadência principalmente com os compromissos que a UE assume, fazendo exercícios de respiração assistida a um dólar cada vez mais frágil»
Uma Europa, unida como nunca na defesa dos valores atlanticamente partilhados, que é a mesma que alinha na imposição de sanções urbi et orbi decididas pelos EUA para sustentar as normas do excepcionalismo ocidental que, variando e adequando-se aos ventos da história, tem de forma brutal explorado colonialmente o resto do mundo desde o séc. XVI e que, num arremedo desse seu brutal passado, quer continuar a subverter o direito internacional e o conceito básico e elementar de igualdade entre países e povos. Europa de facto mais submissa e subordinada aos interesses imperialistas dos EUA e do seu braço armado, a NATO. NATO a que presumivelmente se vai agregar a Suécia e a Finlândia, que, para a integrarem, abandonam o seu estatuto de refúgio para perseguidos políticos de outros países ditatoriais ou de democracias iliberais, provando que Georges Orwell tinha toda a razão quando escreveu que «ninguém precisa viver num país totalitário para ser corrompido pelo totalitarismo».
Um futuro senão de nuvens negras de cinzento muito escuro que sobrevoam os países da União Europeia que cederam a sua soberania social, económica, militar e política a um grupo de medíocres e não eleitos autocratas que pontapeiam os valores democráticos que tanto proclamam para inglês ver, já sem se preocuparem com as aparências das públicas virtudes vícios privados. Georges Orwell escreveu: «vivemos numa das piores ditaduras impostas ao homem, todavia esta se dissimula utilizando o pseudónimo “Democracia”», num tempo em que a corrupção das liberdades e da democracia eram enunciadas e as dissidências, sátiras, investigações jornalísticas sérias ainda eram permitidas pelos poderes dominantes.
«Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais a quem, nas mais liberais sociedades, é oferecida a possibilidade de votar regularmente em quem os vai explorar durante um período em que se remetem ao vazio submisso dos que se deixam enrolar pelos malabarismos da propaganda, que é sempre o que vence se isso for permitido.»
Desconhecia a impetuosa concentração dos meios de comunicação social e a escravidão digital de hoje. Desconhecia o actual jornalismo, mero rufar dos tambores do proselitismo do pensamento dominante, e o jornalismo de investigação, ser residual, só muito raramente não serve os desígnios de quem está de facto nos comandos da sociedade neoliberal puxando os cordéis às suas marionetas a partir de Davos, Bilderberg e outros fóruns onde se estabelecem as fronteiras do mainstream, para que todas as falsificações sejam aceitáveis, vertidas em moldes de controle social que se quer voluntário, viciante, envolto em ilusões de liberdade pessoal, para que a vigente exploração neoliberal com contornos neo-feudais continue o seu percurso triunfante num mundo cada vez mais desigual, em que 1% dos mais ricos tem uma riqueza igual a 70% do resto da população e continuam acumular riqueza a velocidades cada vez mais aceleradas. Nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais a quem, nas mais liberais sociedades, é oferecida a possibilidade de votar regularmente em quem os vai explorar durante um período em que se remetem ao vazio submisso dos que se deixam enrolar pelos malabarismos da propaganda, que é sempre o que vence se isso for permitido. Um sofisticado processo em que se descartam os impulsos autoritárias das antigas ditaduras substituídos por um fluxo constante de informação que gera uma aparência de liberdade cada vez mais controlada pelos algoritmos do universo digital, das redes sociais, das cada vez mais presentes ferramentas informáticas, em que se vai sabendo o que sucede, depois de muito filtrado e manipulado para que se corra atrás da informação sem alcançar saber nem obter conhecimento. O alvo é degradar a autonomia do ser humano para destruir o sujeito crítico e torná-lo num indivíduo autista, consumidor e indiferente à dimensão política da existência. A vida social é esvaziada, o que reprime a variedade humana, para que se torne mais pobre, menos pensante, mais previsível.
No campo político faz-se a apologia de uma democracia que se confunde com os partidos quanto menos a realidade partidária corresponde ao ideal democrático, por uma crescente indiferenciação ideológica e programática em que a representatividade se mede pelos resultados da competição eleitoral, em que as convicções, os ideais, as ideias se reduzem à conquista de votos a qualquer preço. Em que os partidos deixaram de ser instrumentos ao serviço dos interesses dos eleitores, são uma finalidade em si-próprios, prolongamentos do aparelho de Estado, representando os interesses económicos instalados que lhes dão apoio variável1. Assente nesses pilares, o neoliberalismo capitalista tecno-feudal impõe um estado de sítio de violência ritual, política e ideológica que intenta desenraizar qualquer humanismo, exilar os humanos de si-próprios.
«No campo político faz-se a apologia de uma democracia que se confunde com os partidos quanto menos a realidade partidária corresponde ao ideal democrático, por uma crescente indiferenciação ideológica e programática em que a representatividade se mede pelos resultados da competição eleitoral, em que as convicções, os ideais, as ideias se reduzem à conquista de votos a qualquer preço.»
Estes cenários são escuros e catastróficos? São, claro que são, mas a verdadeira catástrofe é o imobilismo. É não perceber que o conceito de progresso assenta na ideia de catástrofe. É deixar as coisas como estão 2. Olhe-se para o Angelus Novus de Paul Klee 3, descrito por Walter Benjamin, em que o Anjo empurrado pelos ventos da história deixa atrás de si os escombros do mundo em que vive e é empurrado pelo vendaval do progresso que o arrasta para o futuro. É esse o nosso mundo, em que temos que ser firmemente dialécticos para aproveitar nas velas os ventos da história, em que as velas são os conceitos mas em que não basta saber içá-las. Tem é que saber como as içar para viajar num mar povoado de escolhos sem ter nenhuma certeza mas também sem nunca perder o Norte 4.
Como alguém já referiu, vive-se o momento Moby Dick do neoliberalismo capitalista tecno-feudal, em que se revisitam quase diariamente versões actualizadas da Lição de Anatomia de Rembrant, dissecando o cadáver das crises, qualquer que seja o formato em que se apresentem, possam ou não eclodir em guerras, que a comunicação estipendiada nos vende em folhetins nas suas variantes pós-moderna e performativa. Um oceano de turbulentas vagas informativas que procuram condicionar a opinião pública registando as acções do capitão Ahab dos EUA/NATO e seus subservientes sequazes. Temos que avançar contra as alterosas vagas por onde estamos a ser arrastados pela baleia branca arpoada e sem hipóteses de sobrevivência que vai continuando a vitimar Ahab e os tripulantes do Pequod, enquanto nós, sem sabermos quando esta jornada termina temos que ser como Ismael, o sobrevivente da Moby Dick de Melville, com a obrigação militante de combater, sem ter tempo nem espaço para descanso, as turbulências das falácias, das ficções, das fraudes, das farsas que o sistema moribundo manipula sem parar.
Uma luta multifacetada de avanços e recuos, luta que se trava todos os dias, hora a hora, palmo a palmo, com uma duração incerta mas que nos lembra e demonstra que a luta de classes continua a movimentar a vida e a preparar o salto de tigre no céu livre da história 5, com a certeza de que a utopia não é o desejo do impossível mas daquilo que ainda não foi possível realizar.
1.Excelente e recente exemplo é o 40.º Congresso do PSD/PPD, que entronizou como seu chefe Luís Montenegro, com discursos de um vazio ideológico total embrulhado em frases-chavão, em que o único objectivo perceptível é a conquista de votos a qualquer preço para regressar ao poder ao serviço dos interesses económicos instalados. Congresso em linha com os anteriores a esse e de outros partidos, em que a contabilidade dos votos é o doping de banais semânticas. A comunicação social dominante, jornalistas, directores de informação, editores e comentadores políticos espremem esse vazio para encontrar novidades nas coisas velhas e relhas, atinarem diferenças que, no essencial, em nada diferenciam entre si esses partidos. É a mediocridade instalada, vendida em folhetins diários numa sucessão de lugares-comuns.
2.«o conceito de “progresso” tem de assentar na ideia da catástrofe. Que as coisas continuem como estão é isso a catástrofe. Ela não é aquilo que a cada momento temos à frente, mas aquilo que já foi. Assim em Strinberg (A Estrada de Damasco?): o inferno não é nada que tenhamos à frente – é esta vida aqui em baixo» (Walter Benjamin, Questões Epistemológicas, Teoria do Progresso, in As Passagens de Paris, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, edição e tradução de João Barrento, Assírio & Alvim, 2019, p. 603).
3.«Há um quadro de Paul Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter este aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de factos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Este vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até ao céu. Aquilo a que chamamos progresso é este vendaval. (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História, Tese IX, in O Anjo da História, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, edição e tradução de João Barrento, Assírio & Alvim, 2010, p. 13, 14).
4.«ser dialéctico é ter nas velas o vento da história. As velas são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. Decisiva é a arte de as saber içar». (Walter Benjamin, Questões Epistemológicas, Teoria do Progresso, ed. cit., p. 603.)
5.A história é objecto de uma construção cujo lugar é constituído não por um tempo vazio e homogéneo, mas um tempo preenchido pelo Agora (Jetztzeit). Assim, para Robespierre a Roma antiga era um passado carregado de Agora, que ele arrancou ao contínuo da história. E a Revolução Francesa foi entendida como uma Roma que regressa. Ele citava a velha Roma tal como a moda cita um traje antigo. A moda fareja o actual onde quer que se mova a selva do outrora. Ela é o salto de tigre para o passado. Acontece que ele se dá numa arena onde quem comanda é a classe dominante. O mesmo salto, mas sob o céu livre da história, é o salto dialéctico com que Marx definiu a revolução. (Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História, Tese XIV, in O Anjo da História, ed. cit., p. 17, 18).
Sem ter a coragem de o assumir frontalmente, Pacheco Pereira considera que a Europa detém uma cultura única que lhe dá o direito e até a missão, comandada pelos cruzados dos EUA/NATO, de dirigir o mundo conforme a sua vontade.
«A Parábola dos cegos» (1568), de Pieter Brueghel, dito o Velho (c. 1525-1599)CréditosPieter Brueghel
O texto de José Pacheco Pereira intitulado «A “paz” para uma guerra abstracta, sem invasores e invadidos», publicado no sábado, dia 25, no jornal Público é must de sofismas para de forma encapotada e cavilosa se colocar fratalmente, nada como lá estar sem ser visto, na primeira linha dos defensores da ordem unipolar imposta pelos EUA e o seu braço armado NATO, que desde há dezenas de anos tripudia o direito internacional, impondo as suas regras assumidas como os valores ocidentais, os do Ocidente que desde o séc. XVII exploram as matérias-primas e humanas do resto do mundo em seu proveito.
Pacheco Pereira tem o desplante de a dado passo escrever: «Confesso que não entendo, ou entendo bem demais, a começar pela fórmula de abertura “Independentemente de opiniões diversas sobre os desenvolvimentos no plano internacional”. O que é que isto significa a não ser tornar a guerra, que se pretende condenar em termos genéricos, uma completa abstracção?»
Quem o lê é percebe bem demais que quem considera a guerra, que na Ucrânia se iniciou em 2014, uma completa abstracção, contra todas as brutalidades daí decorrentes e outras actividades com ela correlacionadas, como a Ucrânia se ter tornado campo de treino das milícias nazi-fascistas da Europa, EUA e Canadá, é o Pacheco Pereira que esteve oito anos em cerrado silêncio completamente surdo, cego e mudo contra todas as evidências que o Conselho Português para a Paz e Cooperação, e já agora o PCP, iam denunciando, a par de outras guerras e outros atentados contra a Paz que sucediam no mundo.
Não é um acaso, como não é um acaso o autor escrever «ou se se quiser, do “imperialismo americano”», entre aspas evidentemente, porque para ele esse imperialismo é justificável e irrefutável, deve ser aceite como guardião dos chamados valores ocidentais recorrendo a sanções, golpes de estado, sabotagens para subverter o direito soberano dos povos se libertarem das suas garras e, sempre que esse arsenal se mostrar insuficiente, impô-lo à mão armada fomentando guerras de forma directa ou indirecta, como é o caso actual da Ucrânia.
Isso para Pacheco Pereira é justificável porque o essencial é que o «se se quiser “imperialismo americano”» continue a ser o grande defensor da cidadela que ele habita com a janela escancarada para os poderes da burguesia que bem sabem que ele lá estará sempre para os defender e justificar mesmo quando os critica, nos vários órgãos de comunicação social em que abundantemente debita.
«(…) para ele esse imperialismo é justificável e irrefutável, deve ser aceite como guardião dos chamados valores ocidentais recorrendo a sanções, golpes de estado, sabotagens para subverter o direito soberano dos povos se libertarem das suas garras e, sempre que esse arsenal se mostrar insuficiente, impô-lo à mão armada fomentando guerras de forma directa ou indirecta, como é o caso actual da Ucrânia.»
Pacheco Pereira é, nesse seu Portugal, três sílabas de plástico, que é mais barato, como escreveu O’Neill, o mais acabado exemplo de intelectual orgânico. Nessa função tem escrito ultimamente até coisas inesperadas e interessantes, a par de textos como este último, um contínuo de escritos paradoxalmente em contradição com uma ideia que importou de França e que em certa altura andou a propalar, a da morte dos intelectuais universais, que desmente com contumácia quando continua com as suas copiosas teorizações a desempenhar um papel que dizia estar extinto, com pontos de vista sobre a história em que se assume como um gestor de existências, uma forma de enganar o público bem denunciada por Pierre Bourdieu, mas também por Derrida.
São as contradições das teias de aranha em que estão presos os intelectuais orgânicos. Como Gramsci extensamente teorizou e demonstrou, numa sociedade de classes não existem intelectuais completamente autónomos em relação à estrutura social. Nas relações de produção hegemónica das diferentes etapas do desenvolvimento histórico, as sociedades criam para si uma ou mais camadas de intelectuais que lhes proporcionam homogeneidade e consciência da sua própria função no campo político, social e económico. Esses intelectuais têm uma ligação vital com a classe que lhes deu origem. Para esse teórico marxista, a formação de uma massa de intelectuais não se justifica, apenas, pelas necessidades da produção económica, por meio de formação de técnicos, mas pelas necessidades políticas do grupo dominante. A relação dos intelectuais com o mundo da produção não é, como a dos grupos fundamentais, imediata. É mediatizada pelo conjunto das superestruturas das quais o intelectual é funcionário. Gramsci observa que em nenhum momento do desenvolvimento histórico real foi elaborada uma quantidade tão grande de intelectuais como na moderna sociedade burguesa. Um facto que se tornou mais óbvio nos nossos tempos com a proliferação de think tanks, gabinetes estratégicos, laboratórios de ideias, etc., etc., que se multiplicam mais que espécies invasoras.
«Como Gramsci extensamente teorizou e demonstrou, numa sociedade de classes não existem intelectuais completamente autónomos em relação à estrutura social. Nas relações de produção hegemónica das diferentes etapas do desenvolvimento histórico, as sociedades criam para si uma ou mais camadas de intelectuais que lhes proporcionam homogeneidade e consciência da sua própria função no campo político, social e económico.»
Mais que muitos outros e melhor que muitos outros, Pacheco Pereira enquadra-se nesta definição gramsciana. Os seus textos surpreendentes e mesmo surpreendentemente relevantes devem ser lidos com essa lupa. Mas há sempre um momento em que tem a necessidade de ocupar lugar de destaque na defesa dos valores da sociedade de que faz parte e o sustenta. Nunca a trairá. Empenhado na defesa da ordem unipolar, «se se quiser, do “imperialismo americano”», como se isso não fosse o que tem comandado o mundo nos últimos decénios, não seja a mão visível e invisível dos conflitos armados, das «guerras na Ucrânia, no Iémen, na Síria, na Líbia ou no Iraque, entre outros conflitos que flagelam o mundo» e «da situação na Palestina ou no Sara Ocidental», como refere o comunicado que apelava à manifestação pela Paz que tanto incomoda Pacheco Pereira.
Para ele só há uma guerra, a que sucede no território da Ucrânia, que é de facto uma guerra entre os EUA/NATO e a Rússia, por interposta Ucrânia, uma guerra que se iniciou em 2014 e culminou com a invasão da Rússia ao território ucraniano, o que ele oculta para justificar a arenga. Não deixa de ser curioso, embora seja bastante revelador, que um historiador abdique de contextualizações para alinhar no mais rasca e barato argumento de haver um país invasor e um país invadido, como se isso fosse um jogo de matraquilhos. Igualmente revelador é o facto de Pacheco Pereira denunciar que «o nome “Ucrânia” está lá no apelo, numa lista que mistura Palestina, Saara Ocidental, Iémen, Síria, Líbia e Iraque, onde a actual guerra é nomeada de passagem e sem relevo, como se fosse uma entre muitas comparáveis na sua dimensão e actualidade»
As outras guerras referidas no comunicado, no Iémen, na Síria, na Líbia ou no Iraque, com mortes, devastações, refugiados, crises humanitárias incomparavelmente maiores que as que se registam na Ucrânia, para ele são cousas menores. Em relação à Palestina e ao Saara, nunca falou abertamente de uma das maiores injustiças da história moderna, pelo que faz uma miserável desvalorização do direito à auto-determinação desses povos e da importância da sua luta no contexto da paz.
Percebe-se, encara essas guerras e o direito à auto-determinação desses povos com a lógica do homem branco que Aimée Cesaire tinha denunciado: «sim, valeria a pena estudar, clinicamente, no detalhe, as trajectórias de Hitler e do hitlerismo e revelar ao burguês do século XX, muito distinto, muito humanista, muito cristão, que ele carrega um Hitler que se ignora, que Hitler mora nele, que Hitler é seu demónio, que se ele o vitupera é por falta de lógica, e que, no fundo, o que ele não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem, não é a humilhação do homem em si, é o crime contra o homem branco, e de ter aplicado à Europa procedimentos colonialistas que até agora eram exclusividade dos árabes da Argélia, dos collies da Índia e dos negros da África.»
«Não deixa de ser curioso, embora seja bastante revelador, que um historiador abdique de contextualizações para alinhar no mais rasca e barato argumento de haver um país invasor e um país invadido, como se isso fosse um jogo de matraquilhos.»
Pacheco Pereira de forma subliminar, sem ter a coragem de o assumir frontalmente, considera que a Europa detém uma cultura única que lhe dá o direito e até a missão, comandada pelos cruzados dos EUA/NATO, de dirigir o mundo conforme a sua vontade. A tralha do seu texto são encadernados sofismas em que a Paz, desde que não seja a Pax Americana, não interessa, pelo que mistura alhos com bugalhos com grande à vontade, num texto minado de tretas, em que a memória histórica é bombardeada com napalm, em que a questão central é combatida como se o autor do texto fosse ideologicamente detergentado para que se fique pela superfície das coisas e o alvo imediato, a luta pela Paz, se esvazie de significado.
Acaba o texto com o desafio de uma coboiada, propondo um duelo ao sol nos ecrãs televisivos, um dos aquários onde deposita regularmente os seus pensamentos. Arma-se em Shane, mas como não passa do excêntrico Lee Clayton, se, ao contrário do filme de Arthur Penn conseguir sobreviver, pode esperar solitariamente sentado por seriedade intelectual, ninguém irá responder ao desafio.
Começa a ser grotesca a contrafacção que hora a hora, minuto a minuto nos é vendida sobre a guerra na Ucrânia com a entronização do seu oportunista presidente, mesmo com as mais bimbas imagens, e a sua corte de oligarcas que, por um milagre mais perfumado que o das rosas, foram beatificados no papel espessamente couché da Forbes como multimilionários. São as vantagens e o preço de servir de mula a uma guerra entre dois impérios capitalistas, os EUA e a Rússia.
Vários e múltiplos são os episódios detergentados pela comunicação social mercenária, um paradigma do servilismo ao império em que muitos dos seus escreventes são pagos, directa ou indirectamente pela CIA, como documentos desclassificados manifestam, que sem revelar nomes revelam a quantidade, nos anos setenta eram mais de oitocentos os que figuravam na folha de pagamentos, a que há que acrescentar todos os colaboradores dessa prestimosa agência que agora são comentadores residentes.
Hoje o Público, esse jornal dito de referência que só continua a existir porque os azevedos empenharam-se de pais para filhos, em investir a fundo perdido na propaganda comunicacional, noticia em duas páginas a pré-publicação do tosco panegírico Vlodymyr Zelensky: Biografia, um relato de uma rasca moralidade, parcialidade e manipulação da vida do presidente da Ucrânia que todos os dias, nas nossas televisões e outras mundo fora, faz conversas em família em que lê, com os seus dotes de comediante, os teletextos que as agências de informação ao serviço dos EUA/NATO impingem contribuindo para a desinformação em curso e para a sua farsa de estadista. O livro é uma das peças do triunfo da vigarice intelectual para dulcificar a imagem de Zelensky e de um país dominado pelos oligarcas seus comparsas que vão enchendo as suas e as dele contas offshore, as que foram conhecidas na investigação dos Pandora Papers e outras ainda com paradeiro desconhecido, em que a interferência e o comando de forças externas é a normal anormalidade de um estado que é dos mais corruptos do mundo, onde a corrupção continua a prosperar, que tem um sistema eleitoral de que são excluídos dezenas de milhares de cidadãos, onde o apartheid se tornou lei, onde as milícias armadas nazi-fascistas foram legalizadas, onde foi e é feita a reabilitação histórica de líderes nazis, que é desde 2014 o campo de treino dos fascistas europeus, norte-americanos e canadianos, onde prospera a perseguição, o medo, o assassinato político e a ilegalização dos partidos políticos que se opõem ao poder instituído submetido às potências do circulo imperialista, em que as forças de segurança e os militares se dão ao desplante de publicarem vídeos das torturas que infligem aos seus adversários sejam ucranianos ou soldados russos. Com um descaramento que não conhece alguma fronteira Sergiuu Rudenko escreve uma pseudo biografia de Zelensky atribuindo-lhe excelsas qualidades bem maiores do que aquele que conseguia transformar água em vinho, limpando a imagem de arrivista sem escrúpulos patente num filme que até de algum modo pretendia elogiá-lo e foi exibido por cá em dois canais televisivos. Para esse biógrafo assoldadado a Ucrânia é uma variante de paraíso terrestre atacado pelas forças do mal, a que seu presidente resiste com a heroicidade de um super homem dos Monty Python.
Na operação de branqueamento e de lavagem em curso vale tudo, a começar pela imagem de uma guerra em que de um lado só há civis mortos e torturados e do outro bárbaros soldados que não conseguem acertar num único soldado inimigo, só em mulheres e crianças, nem em alvos militares só escolas, creches, hospitais e e edifícios residenciais. Em que o que ainda há poucos anos eram descritos como brutais milícias nazi-fascistas agora são endeusados como cruzados dos valores ocidentais. Quando na realidade a Ucrânia consegue ser pior que a Rússia de Putin, o que não é fácil e em nada justifica a invasão e esta guerra. Guerra que para o Ocidente que a alimenta é um pesado fardo económico e militar, mas que interessa sobremaneira aos EUA que como usualmente tripudiam o direito internacional impondo a sua lei utilizando as sanções, para no imediato conseguirem que a sua indústria de fracking, o mais poluente modo de produzir gás e petróleo, que estava à beira da falência colocando em risco o sistema bancário que a tinha financiado, os vá vender à Europa a preços três vezes superiores aos actuais, sem contar com as instalações logísticas necessárias para os processar. É um procedimento de a curto prazo atrasarem a sua decadência, continuando a fazer pagar aos países amigos, inimigos e assim-assim parte do seu crescente e impagável défice sem ir à ruína. Os autocratas imbecilizados da Comissão Europeia, que de macroeconomia nada sabem, nem percebem que isso vai impossibilitar o desenvolvimento europeu, colocando-o na dependência dos EUA. Só mesmo falta, como Michael Hudson ironizou, desistirem do euro e adoptarem o dólar. Essa é só uma parte dos grandes benefícios económicos-financeiros, os outros, até mais visíveis, são os das indústrias armamentistas, do complexo militar-industrial-económico-financeiro e tecnológico que dá corda à vez a democratas e republicanos.
Dando páginas a livros deste jaez na molhada de notícias fraudadas que de um dia para o outro alteram a realidade, o jornalismo mercenário sobrevive fazendo-se pagar directa e indirectamente ou costurando pro bono a sua sobrevivência contribuindo para a normalização do nazi-fascismo que está em marcha na tentativa de esmagar qualquer hipótese de resistência ao capitalismo neoliberal. Os sinais multiplicam-se das notícias aos comentários de uma tropa fandanga de estrategas, politólogos, biógrafos, think-tanks, nas mais miseráveis e desbragadas manobras de uma vasta acção psicológica para validar, como alguém já referiu, o actual momento Moby Dick do neoliberalismo capitalista tecno-feudal, em que se revisitam quase diariamente versões actualizadas da Lição de Anatomia de Rembrant dissecando o cadáver da desta guerra mundial ainda que territorialmente localizada, que a comunicação estipendiada nos vende em folhetins na sua variante pós-moderna e performativa. Um oceano de turbulentas vagas informativas pra condicionarem a opinião pública registando as acções do capitão Ahab dos EUA/NATO e seus subservientes mordomos, muito empenhados em arpoar a baleia branca que sem hipótese de sobrevivência vai continuando a vitimar Ahab e os tripulantes do Pequod, enquanto nós, como Ismael, o sobrevivente da Moby Dick de Melville, temos a obrigação militante de combater, sem ter tempo nem espaço para descanso, os ventos das falácias, das ficções, das fraudes, das farsas que o sistema moribundo manipula sem parar.
Todos os dias os canais televisivos exibem um anúncio da Unicef, tem sido utilizado com o mesmo fim por outras empresas, que alerta para a situação das crianças na Ucrânia, solicitando apoio. Nada mais justo e correcto. As crianças são as mais frágeis vitimas emocionais das barbaridades da guerra a que são sujeitas. São as suas mais indefesas vítimas e os choques psicológicos que sofreram e sofrem mesmo quando subtraídas às mais violentas imagens tendo sido refugiadas noutros lugares não se apagam. As marcas de todas as situações que viveram, de que tenham maior ou menor memória em função da sua idade, vão acompanhá-las ao longo da vida. O trabalho que a Unicef desenvolve na Ucrânia inscreve-se no trabalho que ao longo dos anos tem realizado em mais de 190 países, para salvar a vida de crianças, defender os seus direitos, apoiando-as da infância à adolescência. Faz bem a Unicef em chamar a atenção para a situação actual da Ucrânia. Faz bem, fazendo mal porque a situação das crianças na Ucrânia está muito longe de ser nos dias de hoje a mais alarmante, a mais grave vivida pelas crianças noutras partes do mundo, o que é reconhecido pela própria Unicef quando traça o quadro catastrófico vivido no Iemen, em que neste momento 12 milhões de crianças, mais que a população de Portugal, precisam de assistência humanitária. Em que uma criança em cada dez minutos morre à fome ou por doenças que podem ser prevenidas, em que cerca de 2 milhões de crianças (com menos de 5 anos) sofrem de subnutrição aguda grave; 37% das crianças com menos de 1 ano não estão vacinadas; 2 milhões de crianças não têm acesso a educação; existe quase um milhão de casos suspeitos de cólera. A Unicef está no Iemen a fazer um trabalho de grande envergadura em condições extremamente adversas. O que é estranho é que sendo as condições de vidas das crianças iemenitas muitíssimo mais calamitosa que a das crianças ucranianas nunca tenhamos visto um anúncio, nem sequer semanal ou mensal, sobre essa situação enquanto o das crianças ucranianas é várias vezes exibido diariamente. É evidente que deve ser exibido, mas acentua a diferença de tratamento mediático entre uma e outras o que não é caso isolado, lembrem-se as crianças no Iraque, as que sobreviveram às quinhentas mil assassinadas pelos EUA que Madeleine Allbright justificava como danos colaterais, às da Síria sujeitas às violências do Daesh – Estado Islâmico, noutras partes do mundo como se pode ler nos relatórios da Unicef. A diferença, a diferença abismal está no tratamento mediático desses relatórios, em linha com a tremenda diferença com que os media corporativos tratam os problemas dos refugiados conforme a sua origem. A diferença, em relação à Unicef está no desvelo, não o desvelo de tratamento físico, mas o desvelo colocado pelos muitos anúncios que chamam e bem a atenção para um caso específico enquanto outros, até mais graves e impondo cuidados mais urgentes e imediatos não merecem ser publicitados, ficam na nuvem do olvido, entregues à boa consciência de relatórios que poucos lêem. Diferença que se fará sentir no volume de donativos, isso a Unicef não ignora, não pode ignorar.
Pano de fundo o mesmo problema de sempre: o eurocentrismo imposto pelos países mais ricos que construíram a sua riqueza, o seu progresso pelo domínio que o Ocidente exerce desde o séc. XVI explorando brutalmente o resto do universo, as suas riquezas em matérias-primas a sua mão de obra, durante séculos escravizada. Exploração que lhe possibilitou ser arauto de valores civilizacionais que continua a negar aos outros e que sempre manifestou em alta grita, das mais variadas formas cínicas e hipócritas. Lembre-se o que Aimé Cesaire, esse extraordinário poeta negro e introdutor com Leopold Senghor do conceito de negritude, escreveu sobre o Holocausto: «basicamente o que o burguês não perdoa a Hitler não é o crime em si, o crime contra o homem…é o crime contra o homem branco!». Ao olharmos para o anúncio da Unicef sobre as crianças ucranianas e pensarmos nos milhões de crianças que em todo o mundo estão a sofrer violências, iguais, maiores ou menores, sem direito a uma imagem publicitária nos media a actualidade de Aimé Cesaire é flagrante, devía-se sentir alguma vergonha, mesmo sem se extrapolar e inscrever esse anúncio de apelo suavemente emotivo, na desinformação diária dos enviados especiais que só estão de um lado a fazer perguntas capciosas; nas conversas em família de Zelensky a ler pior ou melhor os teletextos que alguém escreve com objectivos precisos; os números de stand-up comedy dos informes da Casa Branca, aos tempos de antena conferidos à propaganda fascista feita por presidentes ou não de associações ucranianas ou de uma embaixadora que goza de imunidade diplomática e a explora perante a passividade de um governo que parece desconhecer a pouca soberania que ainda pode exercer. Em relação à Unicef que tem uma vocação universal e que desde a sua fundação tem enfrentado e superado inúmeras dificuldades para cumprir o seu mais que meritório trabalho, não se entende esta tónica quando tão ou mais graves e emergentes situações enfrentam noutras partes do mundo. O mínimo exigível era uma chamada de atenção para elas.
Não se entende em que se possa criticar a posição do PCP sobre a invasão e guerra na Ucrânia. https://www.pcp.pt/pcp-apela-promocao-de-iniciativas-de-dialogo-paz-na-europa. Condenar esta guerra não é incompatível com a simultânea condenação do comportamento dos EUA e da UE desde a queda do muro de Berlim. Nenhuma guerra é inevitável em qualquer realidade social, em que como de resto em qualquer outra, não há determinismos. Ao contrário de muito pensamento viciado quer impingir, e que vai do mais linear e vulgar anti-comunismo da extrema-direita e direita o que é de esperar, ao de socialistas, sociais-democratas e radicais pequeno-burgueses entrincheirados em verdades, meias-verdades e mentiras, usado para denegrir a posição de condenação da guerra e do imperialismo feita pelo PCP, a posição do partido está em linha com os mais variados sectores anti- imperialistas em todo o mundo. Alguém de esquerda pode discordar desta análise? : «A actual situação e seus desenvolvimentos recentes são inseparáveis de décadas de política de tensão e crescente confrontação dos EUA e da NATO contra a Federação Russa, nos planos militar, económico e político, em que avulta o contínuo alargamento da NATO e o sistemático avanço da instalação de meios e contingentes militares deste bloco político-militar cada vez mais próximo das fronteiras da Federação Russa.»? Isto não justifica a invasão e a guerra da Ucrânia como o PCP tem repetidamente condenado, que se distingue de quem também a condena mas é incapaz de ultrapassar as fronteiras das vagas conversas de palavras enroladas que não bastam para deter as organizações militaristas tanto da EUA/NATO, com a Europa a reboque, como da Rússia, nesta guerra que é mais um episódio da guerra mais funda e generalizada, que se tem desenvolvido em vários planos desde a queda do Muro de Berlim, para impor um mundo unipolar que viola sistematicamente a Carta das Nações Unidas e o direito internacional e que está agora a fissurar.
Cada vez mais é menos possível a capacidade para se ficar impassível com o desequilíbrio mediático no tratamento deste assunto, tanto nos media como nas redes sociais, em que se assiste ao derrapar de muita gente que se diz de esquerda. O único caminho para quem é de esquerda é um lúcido não-alinhamento que se distinga dos alinhamentos acríticos para um lado ou para outro. Nem é concebível nem aceitável que alguém que se diz de esquerda alinhe em vagos e patéticos humanismos para se arrumar num desses lados ou se escude em argumentos insustentáveis justificativos desta cinicamente chamada «operação militar especial» para, até disfarçadamente, alinhar com o outro.
A cuidadosa, fundamentada e corajosa posição do PCP tem sido terreno aberto para a mais viciosa campanha anti-comunista. É um dos mais grotescos espectáculos a que se tem assistido nos últimos anos, agora catalisados por esta guerra. Felizmente entre essa turba multa, em que os detratores se misturam acríticamente ou fazendo críticas falaciosas, há algumas vozes desassombradas que se destacam nesse panorama inquietante em que nos deparamos com muita gente que merece consideração mas que enfileira com esse tom generalizado, alinhando sofismas sobre sofismas para desculparem a sua posição que trucida sem vergonha as posições do PCP, reafirmadas por Jerónimo de Sousa no comício realizado no Campo Pequeno: « O PCP não apoia a guerra. Dizer o contrário é uma vergonhosa calúnia. O PCP tem um património inigualável na luta pela paz. O PCP não tem nada a ver com o governo russo e o seu presidente. A opção de classe do PCP é oposta à das forças políticas que governam a Rússia capitalista e dos seus grupos económicos (…) Em nome da guerra está em curso a mais desbragada intolerância e difusão de ódio fascizante, a criminalização do pensamento e de toda e qualquer opinião que questione a ditadura do pensamento único, a instituição da censura, o condicionamento do acesso à informação a limitação de liberdades, direitos e garantias.»
Uma dessas lúcidas e corajosas excepções, num território que não é o dos militantes do PCP e seus companheiros de estrada, é Carmo Afonso, que se auto intitula “social-democrata da velha guarda” e que em relação à guerra escreve: « É preciso atender às vozes que dizem que os recentes avanços da NATO, em direção à Rússia, concretizados na adesão de novos países vizinhos, contrariaram entendimentos vigentes e que seguravam a paz» e em relação ao PCP: «Tristes tempos em que uma guerra é pretexto para diminuir uma força política que tem estado no lado certo das lutas que os portugueses travaram. É sobretudo um partido dos trabalhadores (…) Pode dar-se o caso de os portugueses já não precisarem da luta. Mas, voltando ao que faz sentido, é mais certo que estejam a ser distraídos por quem quer acabar com ela»(…) «As posições assumidas pelo PCP foram o pretexto para uma manifestação de anticomunismo digna da Guerra Fria, período em que os anticomunistas afirmam que o partido está. O regresso à história está ao virar da esquina». Será que quem se diz de esquerda não percebe o que esta “social-democrata dos bons velhos tempos” lucidamente entende, continuando a insistir na mentira sobre o apoio do PCP à invasão de Putin, uns sem se aperceberem mas outros compreendendo bem, que a propaganda em curso está objectivamente ao serviço do neoliberalismo armado e fazem-no atacando o PCP.
Por toda a Europa os sinais de fascização são evidentes. Como dizia um personagem do filme de João César Monteiro, Le Bassin de John Wayne «hoje, os novos fascistas apresentam-se como democratas». O que ficou bem manifesto no número mediático protagonizado pelo comediante presidente, na sua digressão instrumentalizadora dos vários parlamentos, no parlamento grego que o Syriza afirmou ser «uma provocação com um apelo claro à normalização do fascismo» e que mereceu mesmo a crítica dos partidos gregos equiparados ao PS e PSD que a classificaram de «vergonha histórica» Uma cena que à posteriori, só dá razão ao PCP ao votar contra um convite formal ao presidente Zelensky para intervir no parlamento português, por videoconferência, que foi aprovada na passada quarta-feira pela Assembleia da República.
Putin é um crápula e a sua guerra é infame. Os apoiantes de Putin são abjetos. Mas são tanto como aqueles que se sentam nas cimeiras da NATO e se dizem democratas e defensores dos direitos humanos. Não há distinções nem gradações entre uns e outros. A guerra na Ucrânia é um bárbaro espetáculo de perdas humanas por conveniência do imperialismo russo em que a Ucrânia é uma marioneta dos EUA/NATO. O único caminho de quem é de esquerda é ser contra o expansionismo russo e o do EUA/NATO com a UE a reboque.
Quem em Lisboa quiser comer a qualquer hora pode escolher um dos espaços icónicos da capital que há mais de cinquenta anos serve refeições fora de horas durante 20 horas em cada dia: o Galeto. É uma das mais de setecentas obras de arquitectura, escolas, moradias, edifícios, fábricas, lojas de comércios diversos, da dupla de arquitectos Vitor Palla e Bento de Almeida, marcantes no Movimento Moderno da Arquitectura. A última obra de Vitor Palla em colaboração com o escultor Jorge Vieira é o Memorial Mausoléu às Vitimas do Tarrafal, no cemitério do Alto de São João.
Militante do PCP desde os anos quarenta, quando integrou o MUD Juvenil e fez parte das comissões de organização das Exposições Gerais de Artes Plásticas que, nas décadas de 40 e 50, desempenharam importante papel na resistência cultural ao fascismo, Vitor Palla tinha múltiplos e bem escorados talentos que deixaram forte marca na cultura nacional.
Como arquitecto, com o seu parceiro de sempre Joaquim Bento de Almeida, dos muitos e marcantes projectos que realizaram sobressaem pela diferença que marcaram na época os snack-bares. Lugares para rápidas refeições onde as mesas desapareceram e foram substituídas por balcões extensos desenhados para ter função dupla. Do lado do cliente, havia uma prateleira para pousar o chapéu e outros pertences, do lado do empregado existia um espaço para manusear uma série de alimentos e condimentos. Eram espaços inovadores que de algum modo estavam em oposição ao café das tertúlias, onde as pessoas se sentavam demoradamente. O primeiro que desenharam, foi o Bar Expresso Terminus segue-se o Pique-Nique no Rossio, em que integram um painel de Júlio Pomar e apuram o desenho do balcão para melhorar e ampliar as suas funcionalidades com uma preocupação que vai ao ponto de desenharem todos os pormenores de cada projecto, do mobiliário aos suportes dos galheteiros, sempre com um grande e cada vez maior rigor ergonómico, bem visível no Galeto.
A arquitectura, o design e a pintura eram as suas actividades principais, mas estavam longe de esgotar a transbordante imaginação, o talento, a fúria de modernidade de Vitor Palla. Na principio da década de 50, com José Cardoso Pires inicia a primeira colecção de livros de bolso em Portugal para a editorial Gleba, “Os Livros das Três Abelhas”, onde se editaram grandes autores nacionais e estrangeiros e que ainda hoje continua surpreender pela diversidade e qualidade das suas capas, inicialmente todas de Vitor Palla, que
também foi tradutor de algumas das obras editadas. A sua ligação à literatura faz com que seja um dos impulsionadores em Portugal do romance policial e ele próprio escreve contos policiais que foram distinguidos na Black Mask, quando ainda era uma prestigiada revista onde escreviam entre outros Raymond Chandler e Dashiell Hammett.
É ainda Vitor Palla que recupera a revista Arquitectura de que é director a partir de 1952 e onde publicou importantes textos teóricos e de crítica.
Arquitecto, designer de equipamento e gráfico, pintor, a sua vastíssima obra fica ainda notabilizada na fotografia com cerca de duzentas fotos que, com o arquitecto Costa Martins seu camarada do PCP,
escolheram entre mais de seis mil, que reuniram num livro Lisboa – Cidade Triste e Alegre, notabilíssimo não só pelas fotos e grafismo como pelos poemas inéditos escritos por Armindo Rodrigues, Alexandre O’Neill, David Mourão-Ferreira, Eugénio de Andrade, Jorge de Sena, José Gomes Ferreira e um texto de Rodrigues Miguéis, um livro que pertence hoje ao cânone mundial dos livros de fotografia.
Victor Palla, de que este ano se comemora o centenário, é um homem que estava sempre uns passos à frente do seu tempo por mais que o tempo persistisse a correr atrás dele.
Hoje o director de o Público publicou um artigo em que atira para o caixote do lixo todos os ilusionismos que têm usado para se fingir independente travestindo o seu reaccionarismo estrutural. Disso ninguém já deveria ter alguma dúvida lendo-o ou ouvindo as suas trôpegas intervenções na televisão, onde por vezes o farsola lá tentava vender gato por lebre sem conseguir de facto solapar que faz parte da camarilha de cruzados do pensamento único, que se quer impor como dominante, alinhados nos pelotões de analistas, especialistas, pivôs, entrevistadores, pseudo-jornalistas e mesmo mentirosos profissionais, de cores diferentes mas todos com o mesmo paladar, que germinam como venenosos cogumelos na comunicação social nacional e internacional intoxicando a opinião pública para que deixe de ser possível pensar, num controlo avassalador que arrasa de vez a capacidade crítica de quem quer que seja atirando quem tenha a veleidade de o fazer mesmo da maneira mais limitada, mesmo só colocando dúvidas, para as colónias penitenciárias em que se exterminam quaisquer liberdades democráticas com as ferramentas dos mecanismos em que a realidade é triturada para que os povos fiquem incapazes de perceber os reais fogos políticos, substituindo-os pelos fogos fátuos em que o império dominante retira proveitos com o empobrecimento moral, intelectual e económico dessa situação, em que o neoliberalismo como sistema económico-político de abrangência global é suportado pela formatação da uma opinião única sobre o funcionamento da sociedade.
O Público, como outros meios de comunicação social nacionais, faz à nossa e periférica escala, parte desse gigantesco aparelho globalizado. Não pode perder ocasião para calçar saltos altos, de se por em bicos de pés, para os grandes patrões mundiais do sistema perceberem que estão dentro do redil e merecem que de quando em quando um afago que ressarcise o zelo. É nesse quadro que se deve ler este artigo que é um bom justificativo e justifica bem porque é que o capital continua a investir a fundo perdido nos media – a Sonae ganhou alguma vez dinheiro com o Público por mais ginástica contabilística que faça? quantos jornais não são deficitários apesar das entradas de capital, das preferências não inocentes das inserções publicitárias e da redução das despesas nomeadamente com os despedimentos efectuados? – na propaganda em que se tornou a comunicação social em que se paga largamente aos torquemadas que garantem que nada descarrila, sejam indigentes mentais ou tenham um pouco mais de sofisticação como os manueiscarvalhos, sem que seja necessário exagerar porque as suas qualidades policiescas não exigem grandes argúcias. Melhores ou piores, são os cães de fila da tirania da comunicação social como lhes chamou Ramonet, os seus mercenários de serviço que escrevem quilómetros de textos manipuladores largamente estudados e denunciados por Chomsky. Um dos truques dessa gente para se fingir democrática, é de quando em quando deixar publicar nas páginas que controlam críticas aos poderes de que são serventuários. Desta vez, no Público, o artigo de Boaventura Sousa Santos logo colocado no pelourinho para execução sumária. Dias antes os generais Raul Cunha, Carlos Branco e Agostinho Costa tinham sido objecto de infames calúnias no Expresso, uma das vozes do grupo Bilderberg através do grupo Impresa em Portugal, só por fazerem análises de indole de estratégia militar sobre a condenável guerra que decorre na Ucrânia depois da invasão russa, que não eram coincidentes com o que a propaganda em grande alarido queria impor. As mensagens mais primárias, com as mais duvidosas origens até na sua formulação, usam colossais meios de difusão e quem ousar uma dúvida é logo cremado pelos censores, os sempre de serviço e os que surgem a retalho sobretudo nas redes sociais.
São truques mas para que a ilusão seja a realidade estão muito bem montados e bem explicados nos manuais da CIA, que aprenderam e aprofundaram as teorias de Goebels, que deve dar voltas e reviravoltas roxo de inveja no inferno em que de estar a arder, e banaliza o Grande Irmão de Georges Orwell.
O objectivo deste bombardeio, com a mais densa desinformação e propaganda, é que os mais avisados fiquem paralisados pela dúvida já que a maioria está pronta a se deixar iludir por esses fogos reais de desinformação que têm a enorme virtude de fazer de fachada para uma cerrada censura sem recurso a lápis azuis o que é melhor conseguido quando pelo meio de um quadro impecável e uniformemente pintado introduzem uns calculados riscos para induzir um falso efeito de abertura e liberdade. Nas últimas dezenas de anos o pluralismo informativo é uma das farsas desta sociedade mais bem montada. A malha tem-se apertado sufocando a tão apregoada independência de informação, que quanto mais é alardeada menos existe. Um recente estudo do ISCTE elaborava uma estatística centrada na quantidade de comentadores de direita e esquerda nos últimos anos nos media nacionais e mesmo com um critério de esquerda de larguíssima malha, que até considera Sérgio Sousa Pinto ou Francisco Assis como de esquerda só porque estão inscritos no PS, muitos outros exemplos seguem o mesmo critério, demonstrava como a direita era cada vez mais dominante na comunicação social. O pluralismo e a independência de informação é cada vez mais atirado para as urtigas, até com grande complacência do chamado serviço publico como é visto com clareza pelos comentadores a que recorre e que não foge ao padrão dos media privados.
Se lançarmos um olhar mais universal não sabemos se a CIA, que nos anos cinquenta tinha na sua folha de pagamentos directos mais de 700 jornalistas em todo o mundo e mais uns milhares pagos indirectamente por várias prebendas, as maneiras de pagamento são as mais diversas na sua maioria procuram camuflar a sua origem, em que moldes a continua essa prática. Pelo estado actual dos media até se deve ter acentuado, as fusões são mais que muitas e o desaparecimento ou a censura a outras fontes de informação tem-se acentuado. Há ainda o suplemento de muitos reformados da CIA serem hoje comentadores principais na CNN, Fox, New York Times, Washington Post, etc. Há que esperar pela próxima desclassificação de alguns documentos que só revelam uma pequena percentagem da realidade, mas sempre levantam a ponta da manta dessas acções secretas. O que gostaríamos chamar a atenção dessas instâncias é que a quantidade de merecedores se não de benesses mais ou menos vultuosas mas de pelo menos umas gorgetas tem aumentado em grande número porque a concorrência aumentou ferozmente, num sistema em que a ameaça de despedimento está ao abrir da porta, a precariedade é vulgar e nem sempre o abanar a cauda a editores e directores é garantia suficiente, pelo que se podem perder alguns talentos.
Tem que se funcionar de acordo com a lei da sobrevivência no pântano em que a comunicação social se tornou. O capital neoliberal, que domina os media no chamado mundo livre e as múltiplas agências, das mais secretas às menos secretas ou até públicas e festivas como as ONG’s, que lhe dão apoio logístico, deve ter alguma atenção aos serviços prestados por essa gente e se não os podem recompensar a todos com cargos bem remunerados devem pelo menos, brindá-los de algum modo. É o mínimo que podem, devem fazer honrando os bons hábitos relacionais da aristocracia com a criadagem que não se devem perder nos tempos modernos. Seria mais que uma deselegância, seria mesmo um sinal de arrogância de pensarem de lá por os terem pela arreata ficarem dispensados de lhe dar pelo menos meia cenoura.
O editorial do director do Público do dia 12, é extraordinário por desnudar as urgências da direita pelo que se perdem as estribeiras e a vertigem da manipulação passa de pés de veludo para patadas de elefante. Diz ele, em linha com outro pensador de fundo, João Miguel Tavares, que «há uma lufada de ar fresco que o torna mais respirável. Desiludam-se os que consideram esta impressão (é essencialmente disto que se trata, até porque as impressões são cruciais em política) como o reconhecimento de um virar de página que afunda um regime nefasto e funda outro libertador. Não é isso. O que muda é o foco do discurso dominante. Pela primeira vez em muitos anos, estamos a discutir a sério a criação da riqueza e não apenas a sua redistribuição. E não, a mudança não se explica apenas pelos ganhos de credibilidade do PSD ou pelo fortíssimo impacte do discurso da Iniciativa Liberal. Também o PS parece livre dos espartilhos da “geringonça” e recupera o seu programa matricial, em que consta o crescimento, as exportações, a fiscalidade ou, em síntese, a criação de riqueza. Para os que passaram os últimos anos a denunciar o esoterismo da discussão política, esta é uma boa notícia. O equilíbrio na discussão entre o Estado e a sociedade, entre o crescimento económico e a redistribuição a iniciativa privada saltou os muros da tradicional fronteira entre a esquerda e a direita.»
Num jornalista, a qualquer jornalista deve ser exigido um mínimo de rigor, ter uma réstia de ética. Manuel Carvalho tem sido muito dado a fingimentos para iludir a sua falta de rigor e ética, embora escorra miudamente para as meias verdades e mentirolas para levar água aos moinhos da direita onde habita. Há que reconhecer que por isso e para isso é que foi escolhido para director do Público, para isso é que lhe pagam e também para isso é que o grupo Sona, tão cioso em fazer investimentos rentáveis, investe a fundo perdido no Público, à semelhança do que acontece com outros meios de comunicação social. A rentabilidade que extraem desses investimentos é outra, por isso porque lhes importa estarem em contradição com os princípios que tanto trombeteiam.
Ora se Manuel Carvalho fosse um jornalista sério e credível o que teria apontado nos debates e nos argumentos do PSD, da IL, para não falar do CDS e Chega, é a grande mentira que todos eles, de um ou outro modo, gritam aos quatro ventos sobre o peso do Estado ser dominante em Portugal, e no mais que falso argumento que se vive em socialismo, o que só merece uma sonora gargalhada.
É consonante o director do Público com a maioria dos comentadores a pataco e direitolas, raríssimas são as excepções, que acabam por ter maior tempo de antena que os intervenientes nos debates. Nenhum denuncia a grande mentira que ressalta no debate entre o PSD e o IL: a mantra de Portugal estar submetido ao socialismo e a um peso insuportável do Estado que esses cruzados irão combater para o libertar. Deve ser essa cruzada que é «um virar de página que afunda um regime nefasto e funda outro libertador» celebrado por Manuel Carvalho no seu editorial!
É a grande manipulação em que o director de o Público alinha a quatro patas porque a realidade é bem outra. Portugal, números do Eurostat, é o país da União Europeia em que o peso económico das empresas públicas em percentagem do PIB é de 3,55%, menor só a Irlanda, 3,51%. Nas duas economias mais fortes da UE, Alemanha e França as percentagens são respectivamente de 6,71% e 12,89%. Na Finlândia, tantas vezes referida como exemplo, a percentagem é de 40,14%. Os números da percentagem de funcionários públicos no emprego total também é de referir, em Portugal é de 14%, a média europeia é de 18%. Menor que Portugal, só Itália, Luxemburgo, Países Baixos. Mais significativo ainda é que em Portugal, o Estado gasta menos do que a média da Zona Euro, -4.5%. Proteção social, -2,9%, Saúde, -0,6%, Educação, Transportes,Habitação e Equipamentos Comunitários, Cultura e Recreação,-0,2 %, Protecção Ambiental -0,1%. Em linha com a média da UE, Ordem Pública e Segurança e muito acima 4,5% Operações de Dívida Pública. São números indesmentíveis dos serviços estatísticos da UE que destroem sem complacências a narrativa da direita.
Mais escabrosas são as propostas de política fiscal propostas pela IL, em linha com o Chega e com o apoio tíbio do PSD, em que, com a taxa única do IRS, beneficia larga e descaradamente os mais ricos, procurando iludir a classe média. Deveriam ser arrasadas por essa gente se não estivessem vendidos ao grande capital.
Sabemos bem que, como escreve João Rodrigues no blogue Ladrões de Bicicletas, «a presença do Estado, indissociável de qualquer forma de capitalismo, permite sempre aos liberais responsabilizar esse mesmo Estado pelo fracasso das suas políticas. O liberalismo é uma utopia com consequências distópicas e que se furta ao real: das alterações climáticas à multiplicação dos serviços de cuidado para tanta gente vulnerável, a presença do poder público actuante para lá do nexo-dinheiro é cada vez mais urgente.»
É esta realidade que a tropa fandanga instalada na comunicação social estipendiada nunca dirá e procura por todos os meios ocultar.
A isto os manueiscarvalhos dizem nada, empenhados em fazer propaganda ao virar a página dos últimos anos da “geringonça” que, apesar das suas fragilidades e debilidades vitimas das “contas certas” de António Costa bem mandado pelos tecnocratas liberais de Bruxelas, contrariou muito do que era negativo na austeridade herdada da troika. Fê-lo sobretudo pelo que o PCP, o BE e o PEV empurraram o PS para a esquerda. O que querem é abrir a página do fanatismo dos liberais, que tem sido em doses variáveis dominante em Portugal, bem visível sobretudo nas políticas económicas de Cavaco Silva e Passos Coelho, mas também no socialismo que Mário Soares meteu na gaveta. São os serventuários do grande capital que lhes paga para fazerem esse trabalho, que desempenham com maior ou menor capacidade. O que é perverso e inadmissível é que essa gente tenha lugar cativo, de destaque, sejam maioritários no serviço público da comunicação social.
Ver ou rever a obra gráfica de João Abel Manta na exposição “João Abel Manta: A Máquina das Imagens” (a partir do título de um artigo de José Luís Porfírio de 1992) é ser-se confrontado com o poder das imagens em centenas de desenhos, cartoons, ilustrações, design gráfico – algumas das obras expostas ainda eram inéditas – que evidenciam o lugar único de um artista de excepção, não só nessa área mas em todas as outras das artes visuais, com um saber e conhecimento técnico, que domina sem qualquer cedência a maneirismos, que transpõem para o papel a realidade, as realidades filtradas por uma inteligência cortante e subtil ancorada uma vasta e sempre actualizada cultura.
João Abel Manta é tão capaz de radiografar à velocidade do pensamento o que estava a acontecer no período acelerado que Portugal viveu entre o 25 de Abril e o 25 de Novembro como demoradamente refletir sobre os quase cinquenta anos de fascismo salazarista expondo a violência ditatorial, não só a mais evidente mas a que se introduzia no tecido social, cultural e histórico de um país assolado por uma pandemia ideológica que se queria mentalmente paralisante.
É um impiedoso cartógrafo que nos obriga a ser acareados com as evidências, recusando os facilitismos das ironias ou dos sarcasmos para que os mapas que traça com detalhes que desassossegam não permitam leituras fáceis ou distraídas. Cada desenho, cada cartaz, cada cartoon é um ensaio crítico que adquire peso específico próprio e lhe confere intemporalidade. Esse é o traço fino e distintivo do seu trabalho de designer gráfico, desde o primeiro publicado na revista de Arquitectura aos que se seguiram no Almanaque, no suplemento literário do Diário de Lisboa ou nas ilustrações do “Dinossauro Excelentíssimo”, personagem que criou em parceria com José Cardoso Pires em que se retratava sem clemência Salazar-o-Botas, parceria que continuou no “Burro em pé”, uma peregrinação pelas comarcas de Portugal em demanda dessa personagem difusa mas muito popular por essas paragens.
A implacável violência com que retrata as imposturas dos tempos da ditadura nas “Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar” é uma barreira de coral intransponível para os que se afadigam a tentar por vagas a rever a história, reduzindo-os a uma absoluta insignificância. É sempre com olhar feroz que açoita a moral marialva ou as misérias dos burgueses, sejam grandes ou pequenos, os anacronismos virais do pensamento de baixa velocidade de circulação do provincianismo. Nada escapa à sofisticada rede com que João Abel Manta peneira o universo com o bisturi carregado de tinta da china que tanto desenha com humanismo extremo os retratos de José Dias Coelho, Bento de Jesus Caraça ou Fernando Lopes-Graça, faz leituras críticas de finíssimo recorte de Shakespeare e das artes e letras nacionais nos “Diálogos Confidenciais”, ou sacode virando do avesso e zurzindo sem contemplações a má-literatura, a má pintura, a má arquitectura, a má política.
João Abel Manta: A Máquina das Imagens é a mais extensa exposição do seu trabalho gráfico, tanto de obras únicas como de séries temáticas, que se pode e deve visitar no Palácio da Cidadela de Cascais – até 16 de Janeiro — que, mais uma vez, mostra a excelência do trabalho deste artista que ocupa um merecidíssimo lugar no panteão dos maiores designers gráficos e ilustradores de todo o mundo.