A INUTILIDADE DAS BIOGRAFIAS
No Livro dos Salmos, o versículo 11 do Salmo 116 reza: Dizia na minha precipitação. Todos os homens são mentirosos. É aí que Alberto Manguel recolhe o título do seu livro publicado em 2008 e agora editado em português.
O dispositivo narrativo é conhecido. Foi explorado exaustivamente por Durrell no Quarteto de Alexandria. Sobre um mesmo acontecimento, um mesmo personagem, cruzam-se opiniões que se contradizem, corroboram, sobrepõem, reescrevem, num jogo semelhante ao de resolver o cubo de Rubik, sem nunca o acabar.
Um escritor argentino, Alejandro Bevilacqua, autor genial (será mesmo o autor?) de um só livro, O Elogio da Mentira, e de miseráveis telenovelas escritas para assegurar a sobrevivência, cai de uma varanda do seu apartamento madrileno. Suicídio? Assassinato? Queda acidental? Um jornalista francês, de ascendência espanhola, Jean-Luc Terradillos decide investigar esse acontecimento e escrever a biografia de Bevilacqua. Fala longamente com os seus próximos.
O primeiro a ser ouvido é um escritor também argentino, o próprio Alberto Manguel, que se apresenta como seu privilegiado confidente no exílio em Espanha, que compartilham depois de terem fugido à ditadura militar argentina. Joga na ambivalência de dizer “que o conheceu superficialmente por não o ter querido conhecer realmente”, o que não o inibe de desenvolver elaboradas teorias para explicar cada passo da vida de Bevilacqua.
O segundo é a amante espanhola de Bevilacqua que omeça por declarar que “Manguel é um imbecil, não sei o que te terá dito a ti, sobre Alejandro mas ponho as mãos no fogo, em com está tudo errado” (…) A mim é que deves ouvir, a mim a quem Alejandro contou a vida inteira: a verdadeira, a íntima, a escabrosa”. Conta como resgatou Bevilacqua da escrita simplória das telenovelas para a escrita maior de um romance genial. Trabalhos que empreendeu porque, para ela, nada é mais erótico que a fama literária.
O terceiro de quem se regista o depoimento é um cubano, ex-companheiro de cela de Bevilacqua numa prisão argentina, que acabaria por trocar a literatura por amor de uma mulher. Um drama que o seduz e em que Alejandro é marginal. Supostamente desapareceu pelo que deixou de existir. Reaparece em Madrid vai ao encontro de Bevilacqua no lançamento do livro de que também se diz autor, despoletando o drama que irá justificar a investigação de Terradillos. O último é um delator que já morreu e continua do além a denunciar todos e nenhum, acertando e desacertando o que foi investigado, fazendo transitar as certezas adquiridas para o território das incertezas, assim como o caminho inverso.
Com todo o material recolhido, Terradillos deixa-se enredar e derrotar nesse labirinto de espelhos: um assassinato que não é um assassinato, uma morte acidental que também é decidida, um livro com muitos supostos autores. Desiste: “Decidi não escrever o retrato de Bevilacqua. Amante, herói, amigo, vítima, traidor, autor apócrifo, suicida acidental e tantas coisas mais: são muitas para um único homem” e em desespero “ Com o meu gesto de renúncia, é Alejandro Bevilacqua quem adquire corpo, voz, presença. Sou eu, o seu leitor, o seu esperançado cronista, eu, Jean-Luc Terradillos, quem desaparece.”
Leitura que produz imenso prazer expondo uma tese que muito agradaria a Borges: todas as biografias são projectos inúteis!
(texto publicado em Leituras, Guia de Eventos de Setúbal, Outubro 2010)
TODOS OS HOMENS SÃO MENTIROSOS
Alberto Manguel
Editora Leya/Editorial Teorema
Tradução: Umbelina Sousa
Revisão: Miguel Martins Rodrigues
Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro
Edição: Abril 2010
Edição original 2008
192 páginas
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