Cultura, Literatura, Livros

Livros… a ler

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Não é que seja um entendido. É a curiosidade que me conduz à descoberta de autores e de livros que não encontro expostos nas montras e nas prateleiras das livrarias da moda.

Ler é perder-me – há muitos lugares onde nos podemos perder, mas nenhum é tão complexo como uma livraria ou uma biblioteca -, o que aconteceu, também, “ao Vivaldo Bonfim, escriturário na repartição de finanças do 7.º Bairro Fiscal e que punha sempre um livro debaixo de modelos B, impressos de alteração de actividade e outros papéis de nomes ilustres, e lia discretamente, fingindo trabalhar. Não era uma atitude muito bonita, mas o meu pai só pensava nos livros”.

É esta a história que nos conta Afonso Cruz, em “ Os livros que devoraram o meu pai”, numa edição da Caminho.

Como aperitivo transcrevo este pequeno e saboroso fragmento: “ … Soube pela minha avó que um tal Orígenes, por exemplo, dizia haver uma primeira leitura, superficial, e outras mais profundas, alegóricas. Um bom livro deve ter mais do que uma pele, deve ser um prédio de vários andares. O rés-do-chão não serve à literatura. Está muito bem para a construção civil, é cómodo para quem não gosta de subir escadas, útil para quem não pode subir escadas, mas para a literatura há que haver andares empilhados uns em cima dos outros. Escadas e escadarias, letras abaixo, letras acima”.

Se gostou… não hesite. Vai ver que vai valer a pena!

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Livros que se devem procurar

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Agora que Maria Velho da Costa (em 2013) recebeu o prémio Vida Literária, da Associação Portuguesa de Escritores, reconhecendo a grande originalidade, inventiva e criatividade da escritora, rebuscámos um livro, escrito em parceria, que teve uma circulação restrita.

Trata-se do guião para uma série televisiva sobre Camilo Castelo Branco, a ser realizada por Alberto Seixas Santos, que, com “a sua habitual minúcia e exigência na pesquisa, neste caso literária e histórica”, confiou a António Cabrita e a Maria Velho da Costa o guião de “uma trilogia cinematográfica, que se desdobraria em série televisiva, que retratasse o estro, a aventura e o acinte de Camilo Castelo Branco”.

Bem português o destino desse projecto. Sem se saber bem porquê, nem sequer se filmou uma cena do livro, quando os autores decidiram recuperar o trabalho literário realizado, publicado uns anos depois pela Íman Edições, editora suicidada nas danças e contradanças que anunciavam a concentração das editoras.

Se antes já não era fácil encontrá-lo escondido nas prateleiras carregadas indiferenciadamente de obras notáveis, assim-assim e mesmo abomináveis, agora só se encontra nesses novos alfarrabistas que estão instalados nas estações de metro e comboio ou em tendas que aparecem e desaparecem país fora. Quando está presente é fácil vislumbrá-lo, virtudes da belíssima capa de José Teófilo Duarte.

Destino muito camiliano de “Inferno”, que se divide em três temas: 1-O Demónio do Ouro (focalizado na vida material); 2-Onde Está a Felicidade? (centrado na vida sentimental do escritor); 3-Noites de Insónia (a escrita e a pulsão suicida de Camilo). De forma bastante original, fundada numa poderosa escrita, “Inferno” é um fresco sobre a vida, a genialidade e os demónios de Camilo. 

(publicado no Guia de Eventos de Setúbal / Janeiro,Fevereiro) 

Procurem-no agora que, com o prémio e muito justamente, a obra de Maria Velho da Costa vai ser, assim o esperamos, mais procurada, para que esta obra, feita em parceria, não continue quase secreta.

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Um livro de vez em quando

“O carácter de um homem é o seu destino”

“O carácter de um homem é o seu destino” diz a abrir o romance Augie March citando Heráclito, depois de fazer uma auto-retrato sucinto: “ sou americano, nascido em Chicago – Chicago, aquela cidade sombria – , e encaro as coisas da maneira que aprendi a fazer sozinho, em estilo livre, Vou, portanto fazer o relato á minha maneira: o que bater primeiro, é o primeiro a entrar; ás vezes uma pancada inocente, outras nem tanto.”
Esse é o travejamento deste romance que conta aa aventuras desse jovem nascido na época da Grande Depressão, um optimista romântico que, em múltiplas andanças e aventuras se torna num cínico pessimista. Andanças e aventuras que decorrem nos Estados-Unidos, Europa e México, exercendo as mais inusitadas profissões que vão do contrato de pugilistas ao tráfico de emigrantes, do roubo de livros à organização de sindicatos, da segurança de Trotsky ao treino de águias temperamentais na caça de lagartos gigantes, vivendo os episódios mais mirabolantes.
Augie March é dotado de perspicácia natural, voracidade de conhecimento e imparável energia, que o fazem reagir aos inacreditáveis encontros e desafios que a vida lhe proporciona. Tudo isto sem considerações morais e com uma enorme capacidade de improviso. Cada pessoa é uma fonte de saber, cada encontro uma oportunidade de mudança agarrada com vitalidade.
Augie March é classificado como um romance de formação e aprendizagem, à semelhança de David Copperfield, de Charles Dickens, ou Huckeberry Finn, de Mark Twain, em que o personagem principal se cruza com inúmeros e inesquecíveis personagens secundários.
Um romance em que a vida é motor da escrita e se sobrepõe á arte.

As Aventuras de Augie March
Saul Bellow
Quetzal editores
Tradução Salvato Telles de Menezes
Revisão: João Assis Gomes
Capa Rui Rodrigues
1º edição portuguesa Setembro 2010
1ª edição original 1953
710 páginas
( publicado no Guai de Eventos de Setúbal, Dezembro 2011)

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Um Livro de vez em quando

UM MANIFESTO CONTRA A GUERRA

Entre 13 e 15 de Fevereiro de 1945, a cidade de Dresden foi brutal e desnecessariamente bombardeada pela força aérea inglesa e norte-americana. Foram largadas 4000 toneladas de bombas incendiárias. 33 quilómetros quadrados do centro da cidade foram completamente arrasados. Dresden, não era alvo militar, nem sequer tinha artilharia antiaérea para se defender. O número de mortos foi calculado em 250 mil, quase o dobro de Hiroxima.
Kurt Vonnegut, jovem soldado voluntário do exército norte-americano, estava prisioneiro dos alemães, em Dresden. Presenciou e sobreviveu aos bombardeamentos. Nos dias a seguir andou a trabalhar nas valas comuns e nas piras em que se enterravam e queimavam os cadáveres. Este episódio, um verdadeiro crime de guerra, marcou tanto Vonnegut que, sob várias formas, aparece em outros dos seus livros, sem o lugar central que tem neste.
Em 1967, volta a Dresden com um companheiro de armas e de prisão. Visita o Matadouro Cinco, a sua prisão militar, escreve este livro, Matadouro Cinco ou a Cruzada das Crianças – Uma Dança de Serviço com a Morte. É um magnífico libelo pacifista, escrito em tom irónico. Billy Pilgrim, o herói do livro, sofre de uma doença que o faz andar para trás e para a frente no tempo e no espaço, vivendo em simultâneo várias realidades que o fazem visitar um extravagante planeta, onde é exibido num zoo. As suas histórias são contadas por um desvairado escritor de livros de ficção científica que nunca ninguém leu, mas regista com minúcia os alucinados relatos de guerra de Billy Pilgrim, que são a experiência vivida por Vonnegut na II Guerra Mundial.
Matadouro Cinco é um extraordinário manifesto contra o horror e o absurdo da guerra em que os episódios hilariantes não permitem gargalhadas e a profunda amargura que o atravessa não dá espaço para lágrimas. Um livro duríssimo embalado num tom burlesco que acaba por enfatizar a violência dos episódios. Um retrato devastador do inferno da guerra, na sua ilógica e brutal insensatez.
(publicado em Leituras, no Guia de Eventos de Setúbal, Novembro 2011)

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Cultura

Um Livro de vez em quando

FESTEJAR A ESCRITA

Há trinta anos Mário de Carvalho irrompeu com fragor no mundo literário de língua portuguesa com dois livros de contos, Contos da Sétima Esfera e Casos do Beco das Sardinheiras. Dois anos depois A Inaudita Guerra da Avenida Gago Coutinho, no ano seguinte Fabulário. Descobria-se uma inventiva que ultrapassava todas as margens, um prazer lúdico saltava todas as barreiras, invadia aqueles textos ancorados em relatos domésticos, fantásticas ou históricos.

Novelas e romances, entre eles, um dos mais notáveis de língua portuguesa Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, foram-se sucedendo. Em 2000, uns Contos Vagabundos, confirmaram a prática da concisão mas não faziam esquecer aqueles três primeiros livros.

Com O Homem do Turbante Verde, Mário Carvalho evidencia-se como grande mestre da narrativa curta seja a história relatada secante a vivências do autor, tenha uma raiz “kafkiana”, seja paródica ou provocadora de inquietações extremas, ocorra em cenários bloqueados impossíveis de reconhecer ou que nos sejam familiares, decorram as peripécias integradas num vago contexto histórico que se torna de uma actualidade cortante ou se localizem em tempos próximos. Todos os contos são notáveis.

São dez contos magníficos, arrumados tematicamente, de uma imaginação fértil que se espraia por um português límpido de vocabulário extenso e construção sem fissuras. Uma exibição do virtuosismo de ter uma história para contar e sabê-la contar como poucos o saberão fazer.

Lê-se de um fôlego. A muitos dos contos, em que acontecem maldições ferroviárias, brutalidades inomináveis e inexplicáveis, o erro distraído de um burocrata que é imperdoável num meio doentiamente deformado, a crescente paranóia de um individuo que vai fechando a casa para melhor se entrincheirar, voltamos atraídos e inquietados por um pessimismo que se entrevia nas suas duas últimas novelas Sala Magenta e A Arte de Morrer Longe e aqui adquire uma dimensão com outra espessura.

O Homem do Turbante Verde é um livro de contos que festeja a literatura.

(publicado no Guia de Eventos de Setúbal/Leituras , Julho 2011)

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Cultura

Um livro de vez em quando

A ESPESSURA DO PESSIMISMO

O escritor uruguaio Juan Carlos Onetti tem vindo a ganhar o reconhecimento que escritores da América Latina lhe tributam. Citem-se Cortázar “Caro Onetti, uma vez mais encontrei tudo lá, tudo o que te faz diferente e único entre nós”, Garcia Marquez “Onetti é todo ele demasiado bom e demasiado asfixiante para a América Latina”, Vargas Llosa em extenso ensaio à obra de Onetti “uma imensa alegoria da frustração que foi viver na América Latina durante a década em que esta foi palco de sucessivas ditaduras militares.”

O universo de Juan Carlos Onetti é muito singular. Decorre numa cidade mítica Santa Maria, como Macondo de Marquez ou Comala de Rulfo, lugar no mapa do realismo mágico que usa mas não abusa.
Cidade decadente, devorada pelo progresso das ruínas por onde deambulam homens e mulheres vivendo vidas que não se cumprem. Façam o que fizerem o seu caminho é um percurso de frustrações inexoráveis, sobressaltado pela visita de personagens solitárias, desesperadas, amorais.

O Estaleiro, obra-prima de rigor e delicadeza, foge a qualquer classificação. É um dos melhores exemplos do universo onetiano. Larsen retorna, cinco anos depois, à cidade de onde tinha sido expulso. Emprega-se como gerente de um estaleiro onde há muito tempo não é reparado nenhum barco. Os empregados vendem peças que estão abandonadas para ganhar o dinheiro que não obtém com salários contabilísticos. Larsen esgota-se no esforço inútil de tirar o estaleiro do caos em que está imerso, enquanto faz a corte a Angélica Inês, uma rapariga tonta filha do dono do estaleiro. Um mundo de seres que vagueiam à beira do abismo, arrastados pela torrente de um pessimismo que parece inspirado na própria vida de Onetti que, nos últimos anos da sua vida de exilado em Madrid, não saia de casa, não por qualquer problema físico, mas porque tinha em casa tudo o que lhe interessava e era essencial: a mulher, a cadela, os romances policiais de Chandler e Hammett.

( publicado em Leituras / Guia de Eventos de Setúbal Junho 2011)

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Cultura

Um livro de vez em quando

A real espessura do vazio

Rentes de Carvalho, transmontano obrigado a exilar-se por motivos políticos para o Brasil, acaba por desembarcar na Holanda, com o cargo de assessor do adido comercial da embaixada brasileira. Ai se fixou. Aí se licenciou. Aí começou a leccionar Literatura Portuguesa e a dedicar-se em exclusivo à escrita até esse momento fragmentada em vasta colaboração em jornais. Nos finais dos anos 60 publica, na desaparecida Prelo, Montedor que anunciava o surgimento de um grande escritor.

A sua relação com a Holanda, com a sua cultura e civilização, “a única paixão que os move é a criação de novas regras”, com a liberdade e frieza de costumes, assombram o transmontano viajado e adquire um lugar central na sua obra, sempre oscilando entre a crítica feroz e uma relativa aproximação a essa realidade. Na literatura portuguesa esse olhar acerado sobre o lugar onde se fixaram e de onde já se sentem incapazes de sair, terá paralelo com outro exilado político, Alexandre Pinheiro Torres e Inglaterra

Rentes de Carvalho começa por ter imenso êxito, não em Portugal, mas na Holanda com dois livros escritos directamente em neerlandês: Portugal, um Guia para Amigos e Os Holandeses.

Entre os seus (todos bons) romances A Amante Holandesa sobressai. As personagens, as paisagens, o enredo em que as surpresas estão no virar da página no conjunto de angústias e frustrações, a medida humana de cada uma das personagens, naquilo que revelam, mas sobretudo naquilo que escondem. O ponto de partida é uma história quase banal, com muito de autobiográfico. Um jovem, Amadeu, deixa a sua isolada aldeia transmontana para se fixar na cosmopolita Holanda, trabalhando como estivador no porto de Amesterdão. É nesse país que o protagonista se envolve com uma rica holandesa, fria, indiferente, desenfreada na cama. Constrói uma espécie de amor como um puzzle que nunca acaba porque faltam sempre peças, mesmo as que já tinham sido colocadas no sítio correcto, o que dá uma ilusão de que o amor pode existir mas acaba por o magoar.

De regresso à sua terra, Amadeu reencontra-a como era. Universo imobilista, opressivo, uma violência latente de paixões, fraquezas, desejos recalcados. Vulcão em actividade debaixo do manto dos brandos costumes.“Num meio pequeno é assim que se sobrevive. As raivas, as invejas e os ódios vêm esporadicamente à tona, por vezes explodem, mas logo depois tudo assenta e o dia-a-dia continua a arrastar-se, sempre igual, imutável na sua fingida serenidade.”

Reata amizade com um colega de infância. As longas conversas que ambos travam, permitem uma reflexão sobre a vida que ambos tiveram até esse momento e sobretudo o desencanto pela consciência acerca do carácter ilusório do amor que vai cavando o vazio com que o romance termina.

Um livro que fica em nós para lá da sua leitura.

( publicado no Guia de Eventos de Setúbal, maio 2011)

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Cultura

Uma Pausa para Ler

UM LIVRO QUE ILUMINA A LITERATURA

O último livro de Gonçalo M. Tavares é um livro singular. Singular não só na história da literatura mas também na sua já extensa obra. Dividido em dez cantos, como os Lusíadas, com a aparência de um poema, não tem nenhum elemento formal que o aparentem a um poema. Também não é um romance como estamos habituados a conhecer. Uma Viagem à Índia é uma narração em verso, com uma estrutura radicalmente inovadora que prenuncia que tudo, lugares, personagens, categorias, será minado e explodido.

A colagem à arquitectura e a algumas peripécias dos Lusíadas, é explicada por Eduardo Lourenço no prefácio que considera o livro “uma navegação de alma pós-moderna (…) uma verdadeira epopeia mental”

Uma Viagem à Índia é a odisseia de um homem Bloom, referência explícita ao protagonista do Ulisses de Joyce, que foge de Lisboa, na sequência de acontecimentos trágicos, na demanda de auto-conhecimento com que quer apagar/redimir o passado. Viaja para a Índia, terra dos grandes sábios místicos. Vai passando por diversas cidades, Londres, Paris, Praga, enfrentando sucessos bons e maus, travando conhecimento com pessoas, mapeando um percurso que é sobretudo literário, pelo que a acção, personagens e lugares podem mesmo não existir enquanto entidades não ficcionais. Da partida ao regresso a Lisboa, o autor vai colocando marcos que assinalam um pessimismo histórico e cultural a aplainar o mundo para depositar uma verdade: a de que ele é igual em qualquer uma das suas sete partidas.

É um livro inusitado, surpreendente e povoado por fantasmas de homens passados e pelos fantasmas do homem contemporâneo que transportam ecos de uma infinitude de textos onde vibram séculos, numa longa e brilhante reflexão sobre a condição humana e a vida porque “A vida, meu caro, é ilegível. Acontece / e desaparece. Não há inteligência / que a descodifique: vem em linguagem-nada, / surge no corpo como surge o dia, e como / se dia e vida individual fossem materiais paralelos, / A vida não surge em prosa / nem em poesia – e a existência não fala / inglês, apesar de tudo. A natureza dos acontecimentos / resiste às invasões matreiras da publicidade e / dos filmes. Já não é mau.”

Uma Viagem à Índia
— melancolia contemporânea
(um itinerário)
Gonçalo M. Tavares
Prefácio de Eduardo Lourenço
Editorial Caminho/Leya
Capa Rui Garrido
Maquete do texto Maria João Lima
Grafismo do Itinerário Luís Maria Baptista

( publicado no Guia de Eventos de Setúbal, Janeiro 2011)

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Geral

Livros e Leituras

O homem não tem poder sobre nada
enquanto tem medo da morte
quem não tem medo da morte possui tudo


Tolstói, Guerra e Paz

 


Há cem anos morreu Tolstói. Deixou uma obra imensa em que se encontram romances, Guerra e Paz, com quase duas mil páginas e seiscentas personagens, e pequenas narrativas como A Morte de Ivan Ilitch. A intensidade dramática, a contenção narrativa, a acutilância na anatomia psicológica dos personagens, fazem de toda a obra literária de Tolstói um paradigma. Nenhum outro escritor colhe o consenso do universo literário que, unanimemente, o considera o maior dos escritores.
Ler, reler Tolstói é sempre extraordinário. Mesmo já conhecendo o que se vai ler, é sempre impressionante assistir aos longos dias inúteis do sofrimento físico brutal de Ivan Ilitch, só superado pela dor moral. “Apreciar a vida? Mas como, se estes dias já não têm as mesmas cores, o mesmo sabor, pois o fim é conhecido? Afinal o que se fez, o que se deixa? Muito pouco! Pouquíssimo!!” Ou saber que Anna Karenina, descobrindo que o que mais ama em Vronsky é a própria paixão, se vai suicidar proclamando vingança “ ali, ali mesmo no meio, ele será punido e eu ficarei livre de todos e de mim mesma” e tornar a ler isso com a emoção de uma primeira leitura. Ou continuar a ficar suspenso no delírio do marido quando descobre o romance entre a mulher e o violinista com quem toca A Sonata de Kreutzer de Beethoven, e a música se transforma numa fúria imensa que acaba num crime de sangue. Ou ler Guerra e Paz para descobrir a insignificância de Napoleão ou do czar Alexandre I, na épica história da invasão da Rússia, personagens menores dos acontecimentos históricos descritos com um realismo insuperável “os que se chamam grandes homens são etiquetas que dão o seu nome aos acontecimentos históricos e, assim como as etiquetas, não têm relação com esses acontecimentos”.
Poderá parecer um exagero, mas não ter lido Tolstói é lacuna grave no conhecimento da literatura.

Lev Tolstói
• GUERRA e PAZ, editorial Presença, tradução Nina Guerra/Filipe Guerra
4 volumes ( vol I-400 páginas/vol II – 436 páginas/vol III-452
páginas/ vol IV-416 páginas)
• ANNA KARENINA, Relógio d’Água editores, tradução de António Pescada, 832 páginas
• A SONATA de KREUTZER, BI- Livro de Bolso, tradução de Nina Guerra/Filipe Guerra, 120 páginas
• A MORTE de IVAN ILICHT, Leya-Dom Quixote, tradução de António Pescada, 110 páginas

 

( publicado em Leituras, Guia de Eventos de Setúbal / Janeiro 2011)

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Cultura

Um Livro de vez em quando

VIDAS ONDE TUDO SE PERDE,
NADA SE CRIA

Thomas Pynchon é um dos escritores norte-americanos mais referidos entre os da geração que surgiu no mundo literário no século XX. Tem poucos livros publicados, todos de assinalável dimensão, com a excepção de “Leilão do Lote 49”. É também conhecido por se fechar à mundanidade, o que decidiu depois de publicar, em 1963, o seu primeiro livro “V”, distinguido pelo prémio da Fundação William Faulkner. Tinha 26 anos, trabalhava como escritor técnico da Boeing. A partir daí a sua biografia é um vazio. As fotografias datam dos finais dos anos 50, recusa-se a dar entrevistas e quando foi apanhado, nos anos oitenta, por repórteres da CNN em Manhattan, negociou o não visionamento público das imagens trocando-o por uma curta entrevista sem imagens, em que explicou que não vivia como um recluso, “não gosto é de falar com repórteres”, e mergulhou de novo no anonimato.Os seus livros são sempre um acontecimento literário. Editado nos EUA, em 2009, “Vício Intrínseco” é o seu oitavo e último livro publicado. Parece ser um livro policial, porque se suporta numa investigação conduzida por um detective privado, com ressonâncias de Philipe Marlowe e Sam Spade que trocou os álcoois e os cigarros pelas ganzas de marijuana, o que faz flutuar as inquirições numa nuvem de falsa euforia a estampar-se nas curvas e contracurvas da vida.

É sobre a vida, essa vida onde tudo se perde e nada se cria, que é uma curte, uma “trip” que Thomas Pynchon escreve, fazendo dela um complexo enredo a irromper pelos cenários da cultura pop e hippie do final dos anos 60, na Califórnia. As pistas policiais perseguidas, são pretexto para introduzir e saltar de personagem para personagem, das mais previsíveis às mais estranhas, habitantes de um universo absurdo, esquizofrénico, em que crimes e pseudo crimes se sucedem num quase delírio. Tudo isso é registado numa escrita burlesca de grande fluência, o que a faz parecer quase espontânea, carregada de humor, cruzando com rara intensidade diversos conhecimentos e saberes, mas histórias sempre no fio da navalha da paranóia, o que é um traço distintivo das obras de Thomas Pynchon, autor quase secreto de obras memoráveis.

(texto publicado no Leituras / Guia de Eventos Setúbal Novembro 2010)

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Cultura

O Universo da Leitura em Risco

No malfadado Orçamento de Estado 2010, está consignada a fusão da Direcção – Geral do Livro e das Bibliotecas na Biblioteca Nacional. Alarme geral!

A DGLB, ao longo de muitos anos sempre a debater-se com escassez de meios, tem feito um trabalho, tanto no país como no estrangeiro, merecedor dos maiores elogios e incentivos, o que não é pouco e é raro. Nunca a língua e a literatura portuguesa teria sido tão bem tratada e adquirido uma projecção, interna e externa, inigualável sem a intervenção da DGLB.

A extinção dessa Direcção-Geral e a sua absorção pela Biblioteca Nacional é um péssimo sinal e fez soar todos os alarmes. Pode a ministra vir a terreiro garantir que a fusão “não significa qualquer dispersão das pessoas, de saberes, nem mesmo redução drástica de meios” acrescentando que “a mesma equipa de técnicos especializados continuará em funções nas mesmas instalações e na mesma prossecução e objectivos e projectos”, não consegue silenciar as sirenes. Escritores, editores, todo o mundo que se interessa pela literatura e pela língua portuguesa continuarão e, muito justa e legitimamente alarmados. Os antecedentes são gasolina nessa fogueira.

No que a ministra diz há um pormenor que é um pormaior “nem mesmo redução drástica de meios”. O que quer isto dizer? “Redução drástica” é um valor muito relativo. Para a senhora ministra pode não ser drástica, para o senhor ministro das finanças pode ser insignificante, para todos os outros pode ser brutal. Seria bom saber a real dimensão da redução, para a poder avaliar no concreto. Nesse imbróglio não se entende porque é que a Direcção-Geral é extinta, mas a acreditar na senhora ministra, é como se não o fosse. Então porque é que é extinta?

Gabriela Canavilhas, desde que aceitou o cargo, anda em bolandas. Primeiro empunhou a bandeira do empenho cultural do primeiro-ministro, não se sabe nem se percebe onde adquiriu essa fatal convicção que bem a tramou. Depois, lá se foi safando não caindo no logro do seu antecessor que fazia mais com menos. Garantia que ia fazer isto e mais aquilo com um orçamento de miséria. Era menos com menos, mas melhor. A seguir vieram os cortes nos apoios às artes. Tentou passar pelos pingos da chuva e lá foi andando até começar a chover forte. Apesar de tudo, insiste em fazer afirmações como as transcritas que as evidências vão inevitavelmente desmentir.

Provavelmente estaria convencida que tinha ideias para desempenhar o cargo. Poderia ter razão mas é preciso bem mais que ideias, é preciso ter meios, é preciso ter força para exigir esses meios. Até ver vai de fracasso em fracasso. O Ministério da Cultura deve ser para Gabriela Canavilhas uma enorme e irresolúvel enxaqueca. Já não se entende porque é que não se demite e volta ao que sabe fazer, não só como artista, é uma das nossas melhores pianistas, mas também como gestora, como demonstrou na Orquestra Metropolitana de Lisboa. A passagem pelos Açores já é outra história, feita com orçamentos de luxo quando comparados com os do governo central. O lugar que ocupa, e como o ocupa, exibindo uma fidelidade patética a um primeiro-ministro medíocre desgasta a sua imagem, ameaça fazê-la assemelhar à putativa ministra da cultura Edite Estrela. Qualquer dia a diferença é ainda ser independente. Isto das independências sempre foi uma novela complicada.

Enquanto não enfrentar a realidade, não se enfrentar a si-própria, o melhor é jogarmos á defesa. O Ministério da Cultura sempre foi um parente pobre do governo e sempre foi muito bem comportado, veja-se como o famigerado PRACE foi aplicada no consulado Pires de Lima-Vieira de Carvalho, ali na linha da frente, o que merece elogios do actual Secretário de Estado da Cultura, mas esse é um funcionário a trabalhar para a carreira, se calhar com este ou outro governo da mesma cepa.

Façamos nosso, o alarme que corre o mundo literário português de António Lobo Antunes a Mário Cláudio, de Vasco da Graça Moura a Mário Carvalho, de Lídia Jorge a Maria Velho da Costa e todos os outros. Vamos subscrever a petição on-line dirigida à Ministra da Cultura.

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Cultura

UM LIVRO, por vezes

A INUTILIDADE DAS BIOGRAFIAS

No Livro dos Salmos, o versículo 11 do Salmo 116 reza: Dizia na minha precipitação. Todos os homens são mentirosos. É aí que Alberto Manguel recolhe o título do seu livro publicado em 2008 e agora editado em português.

O dispositivo narrativo é conhecido. Foi explorado exaustivamente por Durrell no Quarteto de Alexandria. Sobre um mesmo acontecimento, um mesmo personagem, cruzam-se opiniões que se contradizem, corroboram, sobrepõem, reescrevem, num jogo semelhante ao de resolver o cubo de Rubik, sem nunca o acabar.

Um escritor argentino, Alejandro Bevilacqua, autor genial (será mesmo o autor?) de um só livro, O Elogio da Mentira, e de miseráveis telenovelas escritas para assegurar a sobrevivência, cai de uma varanda do seu apartamento madrileno. Suicídio? Assassinato? Queda acidental? Um jornalista francês, de ascendência espanhola, Jean-Luc Terradillos decide investigar esse acontecimento e escrever a biografia de Bevilacqua. Fala longamente com os seus próximos.

O primeiro a ser ouvido é um escritor também argentino, o próprio Alberto Manguel, que se apresenta como seu privilegiado confidente no exílio em Espanha, que compartilham depois de terem fugido à ditadura militar argentina. Joga na ambivalência de dizer “que o conheceu superficialmente por não o ter querido conhecer realmente”, o que não o inibe de desenvolver elaboradas teorias para explicar cada passo da vida de Bevilacqua.

O segundo é a amante espanhola de Bevilacqua que omeça por declarar que “Manguel é um imbecil, não sei o que te terá dito a ti, sobre Alejandro mas ponho as mãos no fogo, em com está tudo errado” (…) A mim é que deves ouvir, a mim a quem Alejandro contou a vida inteira: a verdadeira, a íntima, a escabrosa”. Conta como resgatou Bevilacqua da escrita simplória das telenovelas para a escrita maior de um romance genial. Trabalhos que empreendeu porque, para ela, nada é mais erótico que a fama literária.

O terceiro de quem se regista o depoimento é um cubano, ex-companheiro de cela de Bevilacqua numa prisão argentina, que acabaria por trocar a literatura por amor de uma mulher. Um drama que o seduz e em que Alejandro é marginal. Supostamente desapareceu pelo que deixou de existir. Reaparece em Madrid vai ao encontro de Bevilacqua no lançamento do livro de que também se diz autor, despoletando o drama que irá justificar a investigação de Terradillos. O último é um delator que já morreu e continua do além a denunciar todos e nenhum, acertando e desacertando  o que foi investigado, fazendo transitar as certezas adquiridas para o território das incertezas, assim como o caminho inverso.

Com todo o material recolhido, Terradillos deixa-se enredar e derrotar nesse labirinto de espelhos: um assassinato que não é um assassinato, uma morte acidental que também é decidida, um livro com muitos supostos autores. Desiste: “Decidi não escrever o retrato de Bevilacqua. Amante, herói, amigo, vítima, traidor, autor apócrifo, suicida acidental e tantas coisas mais: são muitas para um único homem” e em desespero “ Com o meu gesto de renúncia, é Alejandro Bevilacqua quem adquire corpo, voz, presença. Sou eu, o seu leitor, o seu esperançado cronista, eu, Jean-Luc Terradillos, quem desaparece.”

Leitura que produz imenso prazer expondo uma tese que muito agradaria a Borges: todas as biografias são projectos inúteis!

(texto publicado em Leituras, Guia de Eventos de Setúbal, Outubro 2010)

TODOS OS HOMENS SÃO MENTIROSOS

Alberto Manguel

Editora Leya/Editorial Teorema

Tradução: Umbelina Sousa

Revisão: Miguel Martins Rodrigues

Capa: Neusa Dias/Oficina do Livro

Edição: Abril 2010

Edição original 2008

192 páginas

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Cultura

Livros e Livrarias

Os livros têm evoluído ao longo dos séculos. Começaram por ser objectos únicos pintados/escritos à mão por verdadeiros artistas. A invenção da tipografia multiplicou-os, democratizou-os. Evoluiram também os seus espaços de consulta e comercialização. Em todo o mundo existem magnificas bibliotecas e livrarias. Em Portugal, no Porto, existe uma das mais belas livrarias do mundo, a Lello. Mas esta, em Buenos Aires distingue-se por ser lindíssima e pela sua dimensão, reaproveitando um espaço, alterando-lhe o uso.

O que serão estes espaços quando o paradigma da leitura deixar de ser o livro em papel e passar a ser o livro em suporte electónico? AMIGO LIBRO

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