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Iniciativa integrada no programa Bocage Poeta da Liberdade – A construção da memória nos 150 anos do monumento a Bocage.
O monumento a Bocage, situado na praça dedicada ao poeta existente no centro de Setúbal – e que nos serve de referência maior neste blog -, é uma obra marcante na identidade da cidade.
Completam-se agora 150 anos sobre a inauguração do monumento. Sob o lema “Bocage O Poeta da Liberdade, construção da memória nos 150 anos do monumento a Bocage”, um conjunto de entidades sadinas organiza um programa de atividades culturais de que aqui se dá nota.
A produção de produtos ditos culturais pelas indústrias culturais e criativas faz-se em linhas tayloristas que impõem um ritmo em que deixa de existir tempo para pensar a criação artística.
Acrise provocada pelo coronavírus e o consequente confinamento social deu enorme visibilidade à crise da cultura, muito anterior mas agora catalisada pela pandemia, e à grave situação laboral da esmagadora maioria dos agentes culturais em que a precariedade da intermitência sem estatuto remuneratório é sistémica, agravada pela ausência de um sistema de segurança social e contributivo compatível com esse estatuto. Foi uma imagem brutal que marcou este interregno em que foram fechados todos os palcos, dos teatros às galerias de exposições, dos museus aos cinemas, etc., onde se exibiam os eventos selados como culturais. Por força da imagem simbólica da cultura, seja o que o que for que se acoberte sobre esse guarda-chuva adquiriu o desespero dos trabalhadores das áreas culturais, muitos deles reduzidos aos mínimos da sobrevivência, uma evidência superlativa em relação aos dos milhares de trabalhadores atirados para o desemprego efectivo ou relativizado pela lay-off, o que até deve fazer questionar o estatuto especial, a notoriedade e visibilidade mediática atribuída aos trabalhadores da cultura no contexto da crise e em relação à enorme mancha de precariedade que alastra no mundo do trabalho. Um tratamento diferenciado que explora a cultura enquanto chancela de diferenciações sociais e a má consciência desta sociedade em que a cultura é cada vez mais inculta, atirada para os circuitos do entretenimento para animar a malta, o que se intensificou com a pandemia em que os tempos vazios da vida em confinamento foram invadidos por uma oferta digitalizada com um volume insuspeitado, em que se despejaram em streaming conteúdos e formatos como se não houvesse amanhã. Uma hiper-oferta que se expandiu na nuvem internética em iniciativas solidárias merecedoras de aplauso mas que também devem ser interpeladas por, consciente ou inconscientemente, serem um sinal do expansionismo da mercantilização do sector cultural, submetido às práticas do capitalismo neoliberal em que a programação cultural é a dos supermercados da cultura, determinada pelo marketing e regida pela eficiência da gestão operacional.
São sucessos que merecem reflexão profunda que acabam por demonstrar que a exigência de 1% para a cultura, reivindicação de grande justeza para que o orçamento para a cultura no Orçamento de Estado (OE) deixe de ser uma sobra, o que resta no OE, não é por si só suficiente para a definição de políticas culturais num estado da arte em que o Estado progressivamente se tem demitido de as traçar por estar capturado pelas forças do mercado, submetido à lógica das indústrias culturais e criativas, em que a única hierarquia cultural, os únicos critérios de excelência são os do que é rentável e vendável, o norte dos gestores e produtores de eventos empenhados não na formação dos públicos mas na angariação de novos públicos, porque o que interessa são os números e não as pessoas, embora se apregoe o contrário, para plantar mais árvores na floresta de enganos em que a cultura se tornou, atacada por um vírus poderosamente invasivo que tudo contamina, esvaziando-a de conteúdo para a amortalhar numa gomosa nulidade.
Progressivamente, a partir de meados dos anos 60, esses agentes culturais passaram a ser os principais intermediários do sector cultural estando sempre entre duas actividades promocionais onde a arte é, sempre e só, mercadoria, e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades. A cultura que começou a estar, ainda que marginalmente, submetida às leis do mercado quando a burguesia adquiriu poder político, libertando-se das tutelas mecenáticas da nobreza e do clero, entrou, a partir desses anos, abertamente nos circuitos comerciais, tornando-se objecto de estudo para muitos economistas porque «as economias da arte constituem uma espécie de terreno de experimentação da pertinência dos conceitos económicos fundamentais»1. Uma perspectiva dominada pela importância económica da cultura, do seu valor económico, do dinheiro, muito dinheiro que pode gerar, em que se anula o seu valor de uso, enquanto factor de desenvolvimento intelectual da sociedade e dos indivíduos que a compõem, em favor do seu valor de troca enquanto mercadoria, em que os produtos e os serviços culturais são bens transaccionáveis nos mesmos termos que outros bens produzidos no sistema económico, sujeitando-se à racionalidade económica do capitalismo neoliberal.
No estado actual da cultura esse é o paradigma vigente em que uma suposta excepcionalidade da cultura desaguou num albergue espanhol em que são equivalentes uma ópera como Os Dias Levantados de Pinho Vargas, com libreto de Manuel Gusmão, ou o abre as perninhas para Deixar o Pimba em Paz de Bruno Nogueira e Manuela Azevedo, os romances de José Rodrigues dos Santos ou Margarida Pinto Coelho e os de Maria Velho da Costa ou Ana Margarida de Carvalho, os musicais de Filipe la Féria ou as peças de teatro dos Artistas Unidos ou do Teatro da Rainha, dos bilhetes postais que a chamada street art planta nas cidades às exposições das galerias de arte e nos museus, uma interminável lista aqui referida aleatoriamente para tornar mais manifesta essa realidade, em que os mais alarves divertimentos ligeiros ao vivo, transmitidos pela televisão, na rádio, em streaming, que ocupam os horários com maior visibilidade. Tudo é selado como cultura, aqui e na Europa Connosco, como se pode verificar na listagem das indústrias culturais e criativas contempladas pelos programas da Europa Criativa. Nesse contexto, em que tudo é cultura para nada ser cultura, em que a cultura é um conceito flutuante, um saco em que cabem todas as indiferenciações, o Ministério da Cultura demite-se refugiando-se numa política de apoio às artes que é um pobre assistencialismo de contestáveis critérios.
Este interregno, esta paragem forçada pela pandemia deve ser um momento para profunda reflexão dos intervenientes nas áreas culturais para se pensar como inverter o estado actual em que se acelera pelas auto-estradas de um bullying cultural do excesso, excesso de actividade editorial, excesso de exposições, excesso de ruído, excesso de imagens, excesso de informação, excesso de comunicação, excesso de oferta e de consumo, todo um excesso que se sobrepõe e se intercepta contaminado pelas inúmeras formas de idiotização desta época obrigada à vertigem da velocidade e da sucessão de modas que travam ou passam ao lado de qualquer análise sustentada, profunda, em favor da estupidez, tornando mais actual que nunca o que Musil escreveu no Homem sem Qualidades: «se de dentro a estupidez não se assemelhasse tanto à inteligência, se de fora não pudesse passar por progresso, génio, esperança, aperfeiçoamento ninguém quereria ser estúpido e a estupidez não existiria. Ou pelo menos seria mais fácil, combatê-la»2.
A normalidade da anormalidade dessa cultura inculta que promove a iliteracia cultural dominante é exposta com crueza por Byung-Chul Han; «hoje, a própria percepção assume a forma de Binge Watching, (assistir a algo compulsivamente, descontroladamente) de visionamento bulímico. Oferecem-se continuamente aos consumidores o que se adapta por completo ao seu gosto— quer dizer, do que eles gostam. São alimentados de consumo como gado com qualquer coisa que acaba sempre por se tornar qualquer coisa. O Binge Watching pode ser entendido como o modo actual de percepção generalizado»3. Há excepções, mas as excepções são a confirmação da regra e a regra é o triunfo imperial do espectáculo, do inconsequente entretenimento que bordelizou a cultura, com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. A produção de produtos ditos culturais pelas indústrias culturais e criativas faz-se em linhas tayloristas que impõem um ritmo em que deixa de existir tempo para pensar a criação artística, o que acaba por ser uma forma de censura económica pauperizando a cultura até a reduzir a uma sucessão de entretenimentos não significantes, em que tudo é idêntico, por mais e melhores artefactos que se lhe colem para maquilhar o seu estado cadavérico em que a gestão cultural, a gestão das artes é um instrumento das estruturas de dominação neoliberal, tem o objectivo de impor uma submissão pacífica que pareça espontânea. É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade. Cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana, um dos traços fundamentais da sociedade burguesa contemporânea em que se procura que a alienação global seja voluntária. Em que a cultura deixou de ser uma presença viva e em que, no melhor dos casos, como diz Blanchot, «é secretamente dramático saber que a cultura não pode fazer mais do que desdobrar-se gloriosamente no vazio contra o qual nos protege dissimulando-o»4.
Há que repensar a cultura recuperando-a desse pântano de areias movediças onde se afunda e desclassifica recuperando o seu significado original em que, sendo uma das mais complexas palavras de qualquer língua, é, na sua raiz, uma actividade que também é uma entidade. Originalmente descrevia um concreto processo material de trabalho que o homem introduziu no crescimento espontâneo da natureza para a conformar às suas necessidades, alterando-a, dominando-a e inventando uma nova disciplina, a agricultura, que o foi agarrando à terra diversificando as culturas e desenhando novos habitats, desenvolvendo agregados populacionais e uma vida colectiva onde a cultura começou a ser metaforicamente transposta para os assuntos ditos do espírito.
As sementeiras passaram a ser materiais e imateriais tal como os seus frutos enquanto, paradoxalmente, os que adubam a terra para a tornar mais fértil, mais propícia a produzir culturas, começaram a ser considerados incultos por falta de tempo para se cultivarem, em contraponto com os citadinos progressivamente mais interessados na cultura e com mais tempo para produzirem cultura não só enquanto progresso da humanidade, mas também como instrumento que marca distancias e distinções.
O labirinto semântico da palavra cultura descreve sempre uma transição entre o que existe e o que se transforma, seja na natureza ou no espírito dos homens. Transição constante, variável, entre regulação e crescimento espontâneo, por força do trabalho que a diversifica e aprofunda. É esse poder transformador da cultura que tem de ser recuperado, não como instrumento de distinções sociais, não como mercadoria em que os objectos culturais se alienam aprofundando o divórcio entre o homem e a natureza, o homem e os seus semelhantes, entre o homem individual e a sua individualidade, mas enquanto prática dinâmica e activa das sabedorias da vida e dos conhecimentos do fazer, das práticas colectivas de grupos e indivíduos.
Vive-se um tempo de catástrofe global. Aprenda-se com Walter Benjamin que «o conceito de “progresso” tem de assentar na ideia de catástrofe. Que as coisas “continuarem como estão” é isso a catástrofe. Ela não é aquilo que a cada momento temos à nossa frente, mas aquilo que já foi» e para que a luta seja substantiva «ser dialéctico é ter nas velas o vento da história. A vela são os conceitos. Mas não basta dispor das velas. Decisiva é a arte de as saber içar»5.
Reflexões e aprendizagens a fazer durante esta suspensão do correr do tempo neste mundo que era estranho e mais estranho ficou.
«Mastigação ruidosa» (2018), do ilustrador japonês Shintaro Kago (1969)
Cultura e Património Cultural, material e imaterial, são conceitos relativamente recentes na longa história da humanidade, bem como o reconhecimento da sua importância nuclear na identidade de um povo de uma nação, da sua soberania. Como T.S.Elliot escreveu, O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente num tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado1, é essa relação dialéctica entre o passado, o presente e o futuro de um povo, de uma nação que a Cultura e o Património Cultural consubstanciam.
Durante séculos os patrimónios culturais foram objecto dos mais diversos vandalismos. É na Revolução Francesa que a Assembleia Constituinte cria uma Comissão dos Monumentos com a missão de proteger e conservar as obras de arte, o que estava em contraciclo com a fúria revolucionária que destruía tudo o que simbolizava o poder absolutista no exercício do controlo social e imposição de crenças políticas, sociais e religiosas. É essa mudança de mentalidades em relação ao património cultural e à cultura que inicia um processo de protecção, conservação e valorização do património e uma, ainda que tímida, democratização da cultura.
Tem o seu reverso que é o percepcionar-se que a supremacia política deve apoiar-se na afirmação da supremacia cultural. Uma estratégia que Napoleão Bonaparte colocou em prática.
Nas campanhas napoleónicas o imperador fazia-se acompanhar por uma corte de intelectuais que avaliavam e inventariavam as obras de arte a roubar. A pilhagem de igrejas, catedrais, conventos, museus, colecções privadas por toda a Europa e Norte de África foi sistemática e sem precedentes. Troféus de guerra para mostrar ao mundo o poder de Napoleão e a supremacia política e cultural da França. Derrotado Napoleão, o Segundo Tratado de Paris, de 20 Novembro de 1815, pela primeira vez na história determina a devolução das obras de arte aos seus países de origem.
O segundo grande roubo sistemático de património cultural foi realizado pelos nazis na Segunda Guerra Mundial. O projecto de Hitler é similar ao de Napoleão. Projectava construir um enorme complexo cultural em Linz, dedicado às obras que o führer considerava reflectirem a ideologia do partido nazi.
A campanha de devolução das obras pós-guerra foi muito publicitada e originou a jurisprudência da Convenção de Haia de 1954, que estabeleceu regras internacionais sobre o património cultural e está na origem do trabalho desenvolvido pela UNESCO, as classificações de Património Cultural Material e Imaterial da Humanidade, para salvaguardar universal e intemporalmente os patrimónios imóveis, os patrimónios intangíveis e os patrimónios naturais, representativos da diversidade cultural, natural e da expressão criativa em todo o mundo. Com essas e muitas outras iniciativas de organizações locais, nacionais e internacionais, vertida em abundante legislação, deveria a Cultura e o Património Cultural Material e Imaterial e o Natural estar protegido de qualquer atentado e a cultura, na multiplicidade das suas manifestações ser um dos grandes esteios das identidades nacionais.
Não está, e os atentados agora são outros de outro calibre. Nos centros decisores do capitalismo internacional, com destaque para as instituições financeiras sediadas nos EUA, prepara-se a intensificação de uma nova onda de privatizações de tipo novo e radical: vender o máximo possível de bens imobiliários estatais, incluindo os patrimónios histórico-culturais e naturais.
O editorial de 17 de Janeiro de 2014, da revista Economist, «The 9 trillion dolars sale», não deixa margem para dúvidas. Escrevem que Thatcher e Reagan usaram as privatizações como ferramenta para combater os sindicatos e transformar em receitas diversos serviços públicos, telecomunicações e transportes, e que os seus sucessores no século XXI, «necessitam fazer o mesmo com os edifícios, terrenos e recursos naturais, porque é um enorme valor que está à espera de ser desbloqueado». Reconhecem a dificuldade da avaliação de alguns desses activos, como o Louvre, o Pártenon ou Parque Nacional de Yellowstone. Dificuldade obviamente superável se recordarmos os inúmeros artigos na comunicação social corporativa que aconselhavam os gregos a venderem os seus monumentos para saldarem as dívidas.
Neste «casino cósmico», como o definiu Georges Steiner, o perigo é real, multiforme. Não se devem menorizar as suas formas directas ou indirectas de privatização do Património Cultural aparentemente mais tímidas como as do programa Revive, nem a formatação dos padrões culturais pelo imperialismo cultural, nem a crescente bordelização da cultura pelo turismo cultural, nem a perda de capacidade crítica em que os padrões estéticos, ainda que muito contestados, são progressivamente substituídos pelas ditames do mercado, ainda que mascarados em lenga-lengas fastidiosas e repetitivas salpicadas de considerações artísticas.
A normalidade da anormalidade do estado de sítio cultural que se vive é tudo se reger pelas leis do mercado, crescendo nos charcos do entretenimento agitados pelo furor bulímico em que normalizam os chamados eventos culturais – o conceito eventos tem uma forte carga ideológica indiciando a banalização destruidora de quaisquer hipóteses de projectos culturais de democratização da cultura explodidos nos lugares comum de criação de novos públicos, leiam-se os regulamentos da Europa Criativa –, coloridos pacotes de mercadorias que são açambarcados para serem consumidos sem deixarem rasto. O seu único objectivo é disfarçarem o vazio comatoso desta sociedade, o seu spleen para, na melhor das hipóteses, o ocultarem protegendo-nos. Laboriosamente as forças dominantes foram moldando o gosto para depois o alimentarem com qualquer coisa que é sempre a mesma coisa. Essa dita cultura, mau grado o intenso ruído em que se envolve para abafar as vozes dissonantes, é parte integrante do aparelho repressivo do totalitarismo democrático que impõe o pensamento único.
Desde os anos 60 que se tem alargado a superfície global onde se vai dissolvendo o território, o exercício de soberania, a língua e a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Megas pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto à lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. A cultura é um dos alvos dessa guerra e o mercado, que não reconhece outra hierarquia cultural que não seja a do que é rentável, ocupa cada vez mais o espaço que antes era ocupado pelo Estado.
O meio intelectual, a partir dos anos 50, já se tinha apercebido dessa situação e se alguns consideram o advento da dominação do mercado sobre a cultura como uma expropriação outros, como Adorno e Horkheimer, percebem claramente que essa dominação intermediada pelas nascentes indústrias culturais e criativas é «um sistema político e económico que tem por finalidade produzir bens de cultura – filmes, livros, música popular, programas de televisão, etc. – como mercadorias e como estratégia de controlo social.»2
A produção de produtos ditos culturais faz-se em linhas tayloristas que impõem um ritmo em que deixa de existir tempo para pensar a criação artística, o que acaba por ser uma forma de censura económica, pauperizando a cultura até a reduzir a uma sucessão de entretenimentos não significantes, em que tudo é idêntico. O património cultural e os museus são o alimento substantivo do turismo cultural em que a relação, que deveria ser estrutural e estratégica, permanece numa nuvem de indefinições, confusão de conceitos e de áreas de actuação. O que interessa, o que conta é o que gera dinheiro, muito dinheiro. A introdução ao Programa-Quadro Europa Criativa 2021-2027 da União Europeia (UE) é elucidativa: «a cultura está no centro do rico património e da história da Europa e tem um importante papel no aumento da atractividade de lugares e no reforço da identidade única de espaços específicos. A cultura e a criatividade podem ser importantes motores e impulsionadores da inovação, bem como uma fonte significativa para o empreendedorismo. A cultura é um importante motor para o aumento das receitas de turismo, numa altura em que o turismo cultural é um dos segmentos do turismo com maior e mais rápido crescimento a nível mundial.» É um texto esclarecedor pela miscigenação de conceitos em que o que acaba sempre por vir à superfície é a gestão, o empreendedorismo, como adubos da inovação. A importância do «rico património e da história da Europa» é o «aumento da atractividade de lugares», leia-se turismo cultural para as multidões prontas a disparar o seu olhar distraído, registado em selfies, enquanto invadem museus e outro património edificado. O que conta é o dinheiro, muito dinheiro que o mercado cultural pode gerar, pelo que as iniciativas culturais desligam-se de qualquer projecto cultural para se subordinarem ao que é mais vendável.
Mais esclarecedor fica quando elencam as indústrias culturais e criativas e se olha para a distribuição de verbas por essas áreas. São integrados nos «Sectores culturais e criativos», todos os sectores cujas actividades se baseiam em valores culturais e/ou artísticos ou noutras expressões criativas, quer essas actividades tenham fins comerciais ou não, independentemente do tipo de estrutura que garante a sua execução e seja qual for o modo de financiamento dessa estrutura. Essas actividades incluem a concepção, a criação, a produção, a divulgação e a conservação dos bens e serviços que encarnam uma expressão cultural, artística ou qualquer outra expressão criativa, e funções conexas, como a educação ou a gestão. Os sectores culturais e criativos incluem, nomeadamente, a arquitectura, os arquivos, as bibliotecas e os museus, o artesanato, o audiovisual (em particular o cinema, a televisão, os jogos de vídeo e as actividades multimédia), o património cultural material e imaterial, o design, a publicidade, a moda, os festivais, a música, a edição de publicações, a literatura, as artes performativas, a rádio e as artes plásticas. Ao mesmo nível das Meninas de Velasquez ou da Ronda da Noite de Rembrandt está um anúncio à Coca-cola ou ao BurgerKing. O Saraband do Bergman ou a Regra do Jogo do Renoir fica submergido na quantidade brutal de videojogos que já é um volume de negócio superior ao do cinema ou das séries televisivas. Festivais de Música? Os de música sinfónica são residuais, em quantidade e em espectadores, se comparados com os de música pop, o que também se reflecte na indústria discográfica, basta olhar para os espaços que ocupam nas estantes de venda e também nos espaços de «crítica musical» na imprensa. A literatura nada com respiração assistida no plâncton das edições dos media da imprensa corporativa, das revistas de glamour, etc.
A moda invade tudo e é dominante em todos os outros géneros artísticos, para isso lá estão os gestores culturais, esse baixo clero pós-moderno com especiais aptidões para ocultar e tornar eficaz o vazio da cultura inculta instalada em todos os patamares do entretenimento da iliteracia cultural por esses intermediários culturais, gestores culturais, programadores, curadores, comissários, agentes do pensamento dominante que aceleram pelas auto-estradas do bullying cultural que se impuseram durante os anos 80, como Pierre Bourdieu bem os caracterizou e que é sempre de recordar: «são os encarregados de uma subtil actividade de manipulação nas empresas industriais e na gestão da produção cultural (…) a sua distinção é uma forma de capital incorporado, porte, aspecto, dicção e pronúncia, boas maneiras e bons hábitos que, por si, garante a detenção de um gosto infalível o que sanciona a investidura social de um decisor do gosto, de modo bem mais significativo do que o faz o capital escolar, de tipo académico (…) a ambiguidade essencial e a dupla lealdade que caracteriza o papel desses intermediários é serem os mercadores de necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelo e garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque sabem dar boa imagem de si acreditando ou não no valor daquilo que apresentam e representam»3. Intermediários culturais sempre entre duas actividades promocionais onde a arte e a cultura são sempre e só mercadoria e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades.
Esclarecedor é também o enquadramento financeiro para a execução do Programa durante o período 2021-2027, em linha com os anteriores. «O Programa continua a apostar em 3 vertentes: Subprograma MEDIA, Subprograma CULTURA e Vertente Intersectorial, sendo que esta última introduz uma novidade dirigindo-se a “Cultura e Meios de Comunicação”». Através da vertente intersectorial o Programa visará também «promover a cooperação política em matéria de cultura no seio da UE, promover um ambiente de liberdade, diversidade e pluralismo na comunicação social e apoiar o jornalismo de qualidade e a literacia mediática».
Em termos orçamentais a Comissão propõe a afectação de 1,85 mil milhões de Euros ao Programa global, divididos do seguinte modo: subprograma MEDIA, 1,08 mil milhões de Euros; subprograma CULTURA, 609 milhões de Euros; e 160 milhões de Euros para a vertente intersectorial. Tal proposta traduz-se num aumento de 450 milhões de Euros face ao actual Programa Europa Criativa 2014-2020 e a grande aposta é no incremento da comunicação social estipendiada.
A bitola é a do mercado, os apoios são ao empreendedorismo, As justificações na distribuição das verbas revelam os objectivos da UE e o que nos espera por detrás da cortina «de promover um ambiente de liberdade, diversidade e pluralismo na comunicação social e apoiar o jornalismo de qualidade e a literacia mediática» em que a verba para os media é reforçada pela do denominado subprograma intersectorial, pelo que 67% do orçamento Europa Criativa é dirigido para o controle de informação que se integra no sistema mundial de formação da opinião pública e da interpretação da realidade pela comunicação social corporativa, mercenária, ao serviço do pensamento totalitário dominante. Os sobrantes 33% são para o que selam como cultura, mas com a banda larga aplicada, estamos conversados. Há excepções, mas as excepções são a confirmação da regra e a regra é o triunfo imperial do espectáculo que bordeliza a cultura, o património cultural e os museus com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade. Cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana em que se procura que a alienação global seja voluntária.
Todo este processo decorre por o capitalismo neoliberal ter percebido que a cultura, a produção teórica eram armas nucleares que eram necessário despoletar para perpetuar o imperialismo e impor um pensamento único. Puseram em marcha um processo de desagregação social dos intelectuais para os isolar e os atirar para as periferias do poder político. Os intelectuais, que nunca foram um grupo homogéneo mas que, como Régis Debray anotou, se «sentiam, pelos seus saberes e conhecimentos diferenciados, ser uma colectividade de pessoas, socialmente legitimadas para tornarem públicas as suas opiniões»4 detendo um poder, que embora de origens diferentes, influenciava ou ia contra o dos políticos eleitos, foram progressivamente marginalizados do tecido social.
Um processo que incidiu sobretudo nas áreas culturais distanciando o Estado das políticas culturais, retirando-lhes importância política e pública, entregando progressivamente ao mercado e à iniciativa privada os instrumentos da cultura, diligenciando para que o mercado e a iniciativa privada contaminassem as políticas culturais das instituições que tutelam, como se a cultura fosse um território que floresce numa terra de ninguém e para que a arte e a cultura perdessem o sentido de ser a utilidade que transforma a vida.
Para essa nova ordem é fundamental anular a cultura enquanto núcleo de práticas e actividades, enquanto instrumentos de produção material, recepção e circulação que dão sentido à vida e ao mundo com o fim último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade alternativa onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer, ainda que com todas as contradições e dificuldades.
Para essa nova ordem é fundamental que os intelectuais, especialistas e profissionais qualificados sejam elementos passivos das suas competências, remetidos às suas áreas especializadas, tendo por interlocutores os seus pares e não a sociedade para perderem influência na construção da consciência colectiva.
Neste estado de sítio há que exigir aos intelectuais que façam novamente ouvir a voz que já tiveram no discurso público, com a consciência de que se ela não é decisiva é fundamental para se sobrepor à turbulência ruidosa do pensamento dominante, que procura tornar inaudível qualquer discurso crítico que o ponha em causa. Devem readquirir o sentimento do seu papel social, mesmo com a incertitude de não terem no imediato sucesso garantido.
Há que resistir, resistir sempre e sem vacilações para que a cultura e a arte se recentrem na vida e encontrem aquilo que podem e querem fazer com os seus materiais e instrumentos sem se entregarem nas mãos do mercado, recusando-se a responder às exigências de gerar lucro, normalizando-as pelas imposições do consumo imediato e padronizado onde se afoga o espírito crítico.
Há que continuar e lutar com a firme convicção de que «no entanto, ela (a Terra) move-se», como disse Galileu enfrentando o tribunal da Inquisição.
(publicado em AbrilAbril https://www.abrilabril.pt/ )
O trabalho político e revolucionário não lhe darão tempo para se ocupar das questões artísticas como poderia pretender, mas as questões artísticas nunca lhe foram estranhas nem indiferentes.
Tribuna para Lénine, El Lissitsky, 1920
Em 1905, durante a primeira revolução, ele (Lénine) teve de passar uma noite em casa de D. Lechtchenko, onde havia, entre outras, uma colecção das publicações de Knachfuss consagradas aos maiores pintores do mundo inteiro. Na manhã do dia seguinte, Vladimir Ilitch disse-me: «Que fascinante domínio o da história de arte. Quanto trabalho para um marxista. Não preguei olho durante a noite, percorrendo os livros um após outro. E lamentei não ter tempo – e não terei provavelmente nunca – para me ocupar das questões artísticas»
A. Lunatcharski, Lenine tel quel fut, Souvenirs de Contemporains, Editions du Progrès, Moscovo, 1959 II volume, p. 422-426.
O trabalho político e revolucionário não lhe darão tempo para se ocupar das questões artísticas como poderia pretender, mas as questões artísticas nunca lhe foram estranhas nem indiferentes, muito pelo contrário, pelo que teve sempre um grande e directo envolvimento nas questões artísticas e literárias ligadas aos problemas políticos e filosóficos, antes da Revolução Bolchevique e no agitadíssimo período que se viveu depois da tomada do poder pelos sovietes, sempre intransigente em relação aos princípios e sempre politicamente flexível. Há um conceito que é nuclear em todo o pensamento e na acção de Lénine em relação à cultura: «a cultura revolucionária tem que ser o desenvolvimento lógico do acervo dos conhecimentos conquistados pela humanidade submetida ao jugo da exploração capitalista, de uma sociedade de latifundiários e burocratas. Esses são os caminhos e os atalhos que nos irão orientar e conduzir até alcançarmos uma cultura revolucionária»1 o que será mais explícito quando afirma «no capitalismo a cultura é de uma minoria. É com essa cultura que temos que construir o socialismo. Não dispomos de outro material. Queremos construir o socialismo imediatamente, na base do material que o capitalismo nos legou, ontem, hoje, agora mesmo e não com homens criados em estufas, se é que alguma vez podemos ter dado crédito a essas fábulas (…) se não somos capazes de construir a sociedade comunista com esses materiais, seremos uns charlatães».2. É a expressão do pensamento de um revolucionário marxista, conhecedor profundo do pensamento marxista, em consonância com a crítica sem complacências que Marx e Engels fazem do capitalismo sem deixarem de reconhecer, como Engels escreve no prefácio à edição italiana do Manifesto do Partido Comunista, que «o Manifesto presta inteira justiça ao papel revolucionário que o capitalismo representou em relação ao passado». É um tema de uma enorme dimensão e ainda actual que, obviamente, só poderá ser enunciado numa nota tão breve quanto esta.
Antes da Revolução, de 1893 a 1917, enquanto debatia as inúmeras questões políticas e filosóficas que se colocavam aos revolucionários marxistas, contra os erros ideológicos de todas as forças políticas que anulavam a intervenção e a acção revolucionária, Lénine refere frequentemente as questões literárias e artísticas, mais as primeiras que as segundas, intimamente ligadas aos problemas políticos revelando um considerável conhecimento sobre esse universo.
Os grandes debates políticos travavam-se entre os marxistas e os populistas, e os seguidores pós-Revolução destes, os socialistas-revolucionários. Os populistas tinham uma presença importante na literatura russa. Nos seus primeiros escritos Lénine polemiza violentamente contra a sua visão da sociedade russa, uma polémica que se irá prolongar durante vários anos. O que critica nos populistas, realçando como uma expressão estética revela uma ideologia política, é a negação que fazem de ser possível uma revolução na Rússia, contra a convicção de Lénine, que haveria de a tornar real, de que era possível uma revolução e que seria o proletariado a efectuar essa transformação. Lénine, no entanto, reconhece que os populistas fazem descrições exactas da realidade russa, cita-as com frequência, enquanto denuncia que na maior parte dessas obras, que expõem a evolução brutal da vida social, as novas formas de miséria ligadas ao aparecimento do capitalismo, se dissimula uma ideologia que prolonga a desgraça que denunciam e julgam combater.
Essas polémicas literárias em que Lénine se envolveu vão adquirir maior expressão com a criação da imprensa revolucionária, Iskra, Vperiod, que considera nucleares para lutar contra os adversários ideológicos do marxismo, para a formação de um partido revolucionário, onde se permitisse a discussão dos diversos pontos de vista: « é impossível conduzir a luta política se todo o partido não puder pronunciar-se sobre todas as questões políticas e guiar as diversas manifestações de luta. Só se poderão organizar as forças revolucionárias, discipliná-las e desenvolver a técnica da acção revolucionária se todas estas questões forem discutidas num órgão central, se forem elaboradas colectivamente certas formas e regras de organização de trabalho, se a responsabilidade de cada membro do Partido perante todo o Partido for estabelecida por intermédio de um órgão central para debater as questões de teoria e de prática (…) devem dar amplo lugar aos problemas teóricos, isto é, tanto à teoria social-democrata em geral como à sua aplicação à realidade russa. A urgência da discussão pública destes problemas, actualmente, não é objecto de dúvida e dispensa comentários, depois do que acaba de ser dito (…) Devemos proceder de maneira a que cada social-democrata e cada operário consciente tenha uma opinião determinada sobre todos os problemas essenciais: é impossível, sem isto, organizar em grande escala uma propaganda e uma agitação metódicas»3. A história da Iskra é inseparável da luta de Lénine para criar um partido revolucionário, onde se retoma o combate às teorias populistas, onde se avolumam as divergências fundamentais entre Lénine, Plekhanov, Trotsky e Martov quanto à organização de um partido revolucionário, que seriam mais evidentes com a publicação de Que Fazer? (Editorial Avante!, 1984). O avolumar de divergências que culminariam na cisão, em 1903, do Partido Operário Social-Democrata da Rússia (POSDR) em Mencheviques e Bolcheviques e que também está na origem do Vperiod como órgão dos Bolcheviques, opondo-se ao Iskra que passou a reflectir as ideias mencheviques e, mais tarde todas as polémicas suscitadas pela plataforma organizada em torno do Vperiod, animada por Bogdanov, quando depois de terem sido reconhecidos pelo plenário do partido, em 1910, como «grupo de edição do partido», tendo recebido do Comité Central os fundos para o seu funcionamento, se recusaram a aplicar as directivas do mesmo Comité, juntando-se aos mencheviques e trotskistas para lutar contra as decisões nele tomadas. Um conflito que se arrastou durante anos, até à sua desagregação em 1913 e à sua oficial dissolução em Fevereiro de 1917, quase sempre em perpétua dissidência com o Partido Bolchevique, com uma ideologia flutuante sem unidade teórica mas, no plano cultural reivindicando-se de uma «filosofia e cultura proletária» que terá expressão depois da Revolução de Outubro.
Os debates sobre o trabalho literário e o papel dos escritores é largamente debatido tanto na Iskra como no Vperiod e se Lénine faz severas críticas aos intelectuais, seus desvios e erros, é porque reconhece a importância que têm na luta contra o czarismo. A sua correspondência com Gorki, que não era membro do Partido, é bem reveladora do interesse de Lénine pelo papel dos intelectuais na luta revolucionária. É também neste período na Novaia Jizn, em 13 de Dezembro de 1905, que Lénine escreve um célebre texto que dará origem a imensos debates e equívocos, pelo que merece atenção mais particular A Organização do Partido e a Literatura de Partido (ibidem, tomo. X, p. 37) que deve ser fundamente analisado até pela especulação que Estaline e Jdanov fizeram desse texto, ignorando propositadamente todos os esclarecimentos feitos por Lénine.
São muitas as polémicas literárias antes da Revolução de Outubro em que Lénine participou. Particularmente interessantes são os seis textos de Lénine sobre Tolstoi, compará-los com os escritos por Plekhanov e Trotsky. Quando Tolstoi fez 80 anos e na celebração da sua morte dois anos depois, coincidiram a direita mais reaccionária, esta com a suprema hipocrisia de continuar a proibir os textos em que o escritor condenava a sua prática política, e os mencheviques que elogiaram Tolstoi «anarquista conservador», para evidenciarem a sua teoria reaccionária da não resistência ao mal pela violência, a fusão mística com a natureza, o culto do trabalho manual. O que é de sublinhar é que Lénine, assinalando todas essas contradições de Tolstoi, manifesta a sua profunda admiração pelo escritor que considera um dos maiores escritores vivos, «um observador e um crítico profundo do regime burguês, apesar da ingenuidade reaccionária da sua teoria». Anota que «se não simpatiza com os nossos objectivos revolucionários, sabemos que é porque a história lhe recusou toda a compreensão dos seus caminhos. Não o condenaremos por isso. Admiraremos sempre nele o génio que viverá tanto tempo quanto a própria arte, e também a coragem moral indomável que não lhe permite ficar no seio da sua Igreja hipócrita, da sua Sociedade e do seu Estado, o que o condenou a ficar isolado entre os seus inúmeros admiradores». Os seis textos de Lénine sobre Tolstoi, são o trabalho teórico mais extenso desenvolvido por um dos fundadores do marxismo-leninismo sobre um escritor. São uma visão crítica da obra de Tolstoi e a apreciação da importância histórica da sua obra, da importância política da sua obra e o que ela significava para a história do movimento social russo. O agudo olhar crítico de Lénine sobre Tolstoi, condenando «o ataque sem cambiantes de certos elementos de esquerda, os quais confundindo Tolstoi e o tolstoísmo, recusam em bloco a obra e a sua ideologia» está claramente a apontar para Plekhanov e Trostsky, entre outros socialistas, que passam por cima de todas as contradições de Tolstoi para, sem negar a sua valia literária, verem nele apenas um reaccionário, um representante da aristocracia, um inimigo do movimento operário. São textos que revelam a atitude revolucionária de um revolucionário marxista intransigente nos princípios e acutilante e flexível nas apreciações políticas e estéticas, de uma sageza crítica rara, o que é particularmente importante para se entender a sua relação com as artes e as letras depois da Revolução de Outubro.
As fotografias da revolução russa, não só a de 1917, mas também a de 1905, mostram uma curiosa literarização da rua. As cidades e mesmo as aldeias, estão consteladas de fórmulas, como símbolos. A classe que se apodera do poder inscreve em grandes pinceladas as suas opiniões e as suas palavras de ordem nos edifícios de que se apoderam.
Berthold Brecht, Les Arts et la Revolution, L’Arche, 1997
A Revolução modificou as ruas porque mudou as relações entre os homens. Na Rússia Soviética, nos anos da Revolução, em condições políticas e económicas duríssimas, uma guerra civil com a participação activa dos países ocidentais, a penúria imposta por um herdado aparelho produtivo esclerosado que era urgente transformar, a arte respondeu aos novos tempos históricos com um dinamismo sem precedentes nem paralelos. Um movimento que se expandiu em todas as direcções e por todas as disciplinas artísticas.
A arte de propaganda revolucionária, a agit-prop, não foi um género particular, é o principal traço de toda a arte soviética nesses tempos de Revolução. As vanguardas artísticas, com todo o seu potencial criativo inovador, colaboram e coincidem com a vanguarda política, mantendo a sua autonomia relativa, sem se deixarem colonizar pela política mas fazendo dela uma parte activa da sua criação. É uma síntese nunca antes vista nem nunca antes experimentada. A Revolução influencia decisivamente as artes porque é um material vivo impregnado de um espírito social inovador. Em simultâneo, as fronteiras tipológicas entre as artes foram abolidas e os mesmos artistas trabalham em várias áreas. A arte liga-se estreitamente à vida social nos seus múltiplos e complexos aspectos. Contribui activa e conscientemente para a construção de um novo modo de vida e para a educação e instrução artística e ideológica das massas populares, opondo-se à cultura de massas burguesa e às suas propostas de consumo, fachadas de uma falsa democratização da arte. São o caldo de cultura na Rússia Soviética em que se tempera a democratização da cultura e das artes que catalisam uma extraordinária efervescência artística. A literalização das ruas inscreve-se nessa metamorfose radical da vida quotidiana depois de Outubro. O estoirar das velhas estruturas coexiste com uma explosão da criatividade entre artistas, operários, soldados escrevendo música, poemas, peças de teatro, cinema, num enorme esforço de trabalho de agitação e propaganda para motivar as imensas massas iletradas, para as fazer aderir aos ideais revolucionários. Lado a lado trabalham os maiores artistas soviéticos, Meyerhold, Eisenstein, Maiakovski, Malevitch, Rodzchenko, Tatline, Dziga Vertov, El Lissitsky, que melhor compreendiam os objectivos da Revolução, mas também os que dela tinham imagens parcelares, algumas distorcidas como é o caso de Essenine, Chagall, de algum modo Pasternak, até por vezes místicas como em Blok, ao lado de operários, soldados, simples cidadãos, muitos deles iletrados.
Lénine, assoberbado com o trabalho imenso de transformação económica, social e política da Rússia, enfrentando uma situação de grande penúria, a contra-revolução e os revisionismos que minavam a Revolução, tem um papel central na área da cultura e das artes. Refira-se, quando da formação do Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lénine, a integração de um Comissariado do Povo para a Instrução Pública, para o qual indicou Anatoli Lunatcharski. A tarefa não era de somenos: organizar uma educação nova, socialista numa Rússia maioritariamente analfabeta, representar o poder soviético junto dos artistas e intelectuais, um caldeirão efervescente, em que muitos dos empenhados na Revolução se digladiavam violentamente entre si, por opções estético-artísticas inconciliáveis, e muitos outros opunham-se vigorosamente à Revolução. Uma tarefa de vulto dispondo de meios materiais escassos num tempo em que tudo era escasso e tinha que ser muitíssimo bem equacionado.
Lunatcharki definia-se como «um intelectual entre os bolcheviques e um bolchevique entre os intelectuais». As suas polémicas com Lénine são dos tempos de exílio na Suíça. Com formação filosófica, era um homem de imensa cultura, um orador apaixonado e apaixonante. A sua divergência de fundo com Lénine enraizava nas concepções empiriocriticistas que tinha estudado com Averenius e que perfilhava, ainda que com algumas reservas, mas muitíssimo distanciado da violenta e arrasadora crítica feita por Lénine em Materialismo e Empiriocriticismo (Editorial Avante!, 1978), que nunca lhe poupou críticas reconhecendo-lhe todas as suas qualidades, empenhamento na Revolução e dedicação ao Partido apesar das suas indecisões e oscilações. Esse é um dos traços da personalidade de Lénine. Recorde-se, a talhe de foice, que apesar de todas as discordâncias com Rosa Luxemburgo, foi ele que incentivou e apoiou a edição em russo de Reforma ou Revolução (Editorial Estampa, 1972).
O Comissariado do Povo para a Instrução Pública (Narkompros) defrontava-se com inúmeras dificuldades, de que as menores não eram a desorganização entre departamentos, iniciativas mal estruturadas, o recrutamento de recursos humanos com competências culturais e de ensino mas poucas ou nenhumas em matérias de administração, a recusa activa de muitos membros da anterior intelligentsia em colaborarem com os bolcheviques, as estruturas arcaicas que herdara e os militantes mais competentes dos Partido estarem absorvidos pelas tarefas de reconstrução de um país a enfrentar dificuldades desmesuradas. Reinava uma certa anarquia contra a qual N. Krupskaia, ardente defensora do Narkompros, era porta-voz, por diversos departamentos do Comissariado escaparem à sua autoridade. A outra questão central era a do orçamento. Os representantes do orçamento do Conselho de Comissários do Povo criticavam o Narkompros por pedirem o impossível. O apoio de Lénine ao Narkompros e a Lunatcharski, olhado com desconfiança por muitos membros do Partido que ironizavam o seu esteticismo, foi fulcral. O seu orçamento, se relativamente baixo em termos absolutos, era até exorbitante em comparação com outros Comissariados. Foi objecto de várias reorganizações até à ultima, que instituiu o Narkompros como Comissariado do Povo para a Educação e as Belas-Artes. Os primeiros decretos incidiram na reorganização da educação em todo o extenso território da Rússia, defrontando-se com o gigantesco problema de encontrar professores para o realizar. Apesar disso as primeiras realizações, com o apoio directo de Lénine, foram notáveis, como os projectos de jardins infantis, as escolas comunais, maternas e artísticas, os métodos de ensino pedagogicamente revolucionários, um universo rico de experiências, impossíveis de descrever aqui mas em que se deve referir o trabalho, avançadíssimo para a época de Makarenko pelas suas teorias pedagógicas com uma ideia central: «exigir o mais possível do homem e respeitá-lo o mais possível» (Les Problèmes de la Éducation Scolaire Soviétique, Editions du Progrès, Moscovo, 1962).
O programa de ensino afrontava outra questão muito particular que era as dos idiomas locais, das diversas nações que coexistiam no território da Rússia, que muitos queriam normalizar pela imposição de uma língua unificada. Uma questão que imbricava noutra mais vasta, a de uma cultura nacional. A participação de Lénine é decisiva. É contra a ideia de uma cultura nacional unificada que classifica de reaccionária. Sublinhava que «a Rússia é um país misto no aspecto nacional» e que «uma cultura nacional exerce-se em detrimento do povo, favorecendo o nacionalismo burguês» (…) «não se trata de construir uma cultura nacional mas uma cultura internacional para a qual cada cultura nacional contribui apenas com uma parte, a saber, unicamente o conteúdo democrático consequente e socialista de cada uma das culturas nacionais (…) nós somos contra a cultura nacional enquanto palavra de ordem do nacionalismo burguês. Somos pela cultura internacional do proletariado socialista e democrata até ao fim». (ibidem, tomo XIX) Serão as palavras de ordem do Partido Bolchevique: a igualdade em direitos culturais, o direito à identidade de todas as nações no seio do Estado, a recusa da imposição de uma «autonomia nacional cultural» que conduziria a progressivamente anular as culturas regionais pelo seu não reconhecimento enquanto parte activa da cultura de toda a Rússia. Registe-se que, em linha com esta posição de Lénine, no trabalho de alfabetização de toda a Rússia, as línguas das diversas nacionalidades foram protegidas, o seu uso incentivado. Algumas delas, que eram orais, não tinham expressão escrita e só começaram a tê-la pelo trabalho dos linguistas soviéticos. Pela mesma ordem de razões, Lénine opor-se-á à imposição de uma «cultura proletária», mesmo a reconhecer a existência de uma «cultura proletária», como os partidários do Proletkult pretendiam, como mais adiante se referirá.
Outras das grandes questões a resolver pelo Narkompros era a dos monumentos e da riqueza artística da Rússia. Os combates de rua e a guerra civil eram uma ameaça. Os bolcheviques tomaram medidas eficazes para os salvaguardar, empenhando os responsáveis do Partido, os militares e os operários. A palavra de ordem de Lénine era «o povo dos trabalhadores é agora senhor absoluto do país. Além das riquezas naturais, herdou enormes riquezas culturais, edifícios de grande beleza, museus, bibliotecas, colecções particulares. Tudo isso é agora propriedade do povo». A propaganda contra a Revolução de Outubro apresentava os revolucionários como uma horda de bárbaros e de iconoclastas saqueando a velha cultura secular. Há um episódio relatado por John Reed, em Dez Dias que Abalaram o Mundo (Editorial Avante!, 1997) bem expressivo em relação a essa propaganda contra-revolucionária. «A 15 de Novembro, na sessão do Conselho de Comissários do Povo, Lunatcharski rebentou bruscamente em lágrimas, precipitou-se para fora da sala, gritando: É mais forte que eu! Não posso suportar esta destruição monstruosa da beleza e da tradição. No mesmo dia, a sua carta de demissão aparecia em todos os jornais: “Acabo por saber por testemunhas oculares o que se passou em Moscovo. Estão a destruir a igreja de Basílio, o Bem-Aventurado e a catedral Uspenski. Bombardeiam o Kremlin, onde se encontram os tesouros artísticos de Petrogrado e Moscovo, há milhares de vitimas. A luta atinge o último grau de selvajaria. Até onde irá isto? Que pode acontecer mais? Não posso suportar isto. A medida está cheia e sou impotente para deter estes horrores. É-me impossível trabalhar, perseguido por pensamentos que me enlouquecem». Era tudo mentira, as noticias falsas, as fake news, ontem como hoje e no futuro serão sempre uma arma, uma poderosa arma dos reaccionários. Lunatcharski retirará o seu pedido demissão.
Sublinhe-se que poucos foram os antigos monumentos destruídos, mesmo os que eram símbolos do poder czarista, desde que apresentassem valor artístico. No assalto ao Palácio de Inverno os guardas vermelhos foram os primeiros a dar o exemplo, impedindo actos de pilhagem e recuperando os que os fiéis ao czar queriam roubar. Logo a seguir à tomada do Palácio de Inverno foi publicado um decreto a proteger o edifício e os tesouros artísticos aí albergados.
O Narkompros com o apoio do Conselho dos Comissários do Povo, presidido por Lénine, e de várias comissões ad hoc, nomeadas por esse Conselho, inicia o trabalho de inventariar todas as obras de arte, de nacionalizar castelos, galerias, bibliotecas e colecções particulares, de proibir a exportação de objectos antigos e de obras de arte, foi mesmo decidido restaurar alguns palácios e castelos, como o palácio Stroganoff ou o castelo Pavlovsk, o Kremlin que estava devastado antes da Revolução, iniciar escavações arqueológicas. Em Novembro de 1917, por iniciativa de Lénine e do Comissariado do Povo da Instrução Pública, foi criado um colégio para se ocupar dos assuntos dos museus, deram-se cursos de formação para os trabalhadores dos museus. A Narkompros, enfrentando uma penúria generalizada, contradições e polémicas fez, nos anos da Revolução, um trabalho notabilíssimo dirigida por Lunatcharski, a quem Lénine, nunca o poupando a críticas, também nunca deixou de activamente apoiar.
Alguns aspectos da relação das artes com a Revolução de Outubro já foram referidos. É, como todos os outros aqui mencionados e muito debatidos ao longo dos anos, um tema extenso que tem que ser necessariamente resumido num texto deste género. Uma primeira nota, que merece uma longa reflexão e um longo debate, é o referente às vanguardas artísticas, o que foram e a decadência e o descrédito de tal conceito na actualidade, a sua validade e a sua relação com as vanguardas históricas revolucionárias e políticas. Não é um acaso que na Rússia da Revolução de Outubro se assista à explosão das vanguardas artísticas com toda a sua radicalização, o que colocou problemas e questões novas ao poder político e deu lugar a grandes polémicas, entre as vanguardas artísticas entre si e com o poder dos sovietes. Uma única certeza – com tudo o que as certezas têm e que devem ser sempre questionadas com hipóteses provisórias que as fazem equacionar sempre enquanto certezas relativas do ponto de vista do materialismo dialéctico – estavam empenhadas por inteiro, ainda que muitas vezes não compreendendo a sua evolução, com a Revolução.
As vanguardas artísticas, futuristas, cubo-futuristas, suprematistas, expressionistas, construtivistas, imagistas, etc. reivindicavam uma arte radicalmente nova e mesmo a destruição das obras de arte anteriores consideradas inquinadas pelo gosto e pelas ideias da burguesia. Cite-se a título de exemplo a drástica proposta de Avraámov – um pioneiro da música concreta que pintava filmes virgens para reproduzir os sons assim obtidos e que escreveu uma sinfonia com sirenes e ruídos de rua – que exigia que o Narkompros destruísse todos os pianos para acabar de vez com a música tonal. Noutra trincheira o Proletkult, que queria assumir-se como representante de uma nova cultura proletária, combatia vigorosamente as vanguardas artísticas que não se faziam rogadas em o combater e combater-se entre si. Um ambiente efervescente que no entanto não impedia que todos se concentrassem, cada um a seu modo, a glorificar e propagandear a Revolução, fosse com os lendários comboios de propaganda, fosse com as depuradas linhas e formas de El Lissitsky, com poucas cores, negro, cinzento, vermelho, as legendas inscritas nas figuras geométricas de que o exemplo mais icónico é «Com a Cunha Vermelha derrota os Brancos», fosse com as celebradas «Rosta» de Maiakovski, que com ferocidade caricatural teatralizava os acontecimentos de forma facilmente perceptível. fosse mesmo com o «Quadrado Negro sobre fundo Branco» de Malevitch que decorou as ruas de Vitebsk e que, surpreendentemente, foi base usada extensivamente em toda a Rússia para muitos cartazes anunciando eventos culturais e políticos por muitos autores, a maioria anónimos. Tudo isto se sucedia enquanto os criadores artísticos se digladiavam, chegando muitas vezes a via de facto. Refiram-se as sucessivas humilhações a que Malevitch submeteu Chagall, quando viviam e tinham as suas academias em Vitebsk, que culminou numa carta que aquele dirigiu a Estaline, já no poder, denunciando Chagall como contra-revolucionário, isto depois de ele e os seus discípulos terem invadido e praticamente destruído a academia de Chagall, que se vê obrigado a emigrar. Presume-se a perplexidade de Estaline e Jdanov ao olharem para os quadros suprematistas do revolucionário Malevitch.
É esse ambiente que faz perceber porque é o teatro, onde concorrem diversas géneros de arte, salta para as ruas e a praças, celebrando a Revolução e os seus sucessos, que no 1º de Maio, em Petrogrado os operários tenham construído e exibido no desfile o monumento construtivista de Tatlin à III Internacional, enquanto o de Moscovo era antecedido por uma gigantesca marioneta simbolizando o capitalismo. Tudo isto enquanto o Narkompros desenvolve um projecto muito caro a Lénine, monumentos que celebrassem os revolucionários e personalidades públicas, escritores, poetas, filósofos e sábios, pintores, compositores, artistas, patrimónios da humanidade na luta por outra vida. Uma longa lista em que figuravam, entre muitos outros, Espártaco, Marx, Engels, Bakunine, Marat, Robespierre, Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Mendeleev, Rublev, Mussorgski, Chopin, Scriabine. Era um projecto de propaganda monumental-heróica. Foram postos a concurso e o seu resultado decepcionou Lénine, como refere Lunatcharski, no livro já citado: «ora em Moscovo Vladimir Ilitch justamente teve a possibilidade de vê-los, os monumentos eram bastante maus (…) um dia disse-me enfadado, que a “propaganda monumental” dera em nada. Respondi-lhe, referindo-me à experiência de Petrogrado e ao testemunho de Zinoviev. Abanou a cabeça em ar de dúvida e replicou: “isso quer dizer que todos os talentos se reuniram em Petrogrado e que todos os falhados estão em Moscovo?”». Esta primeira vaga de monumentos, dedicados à propaganda, foi tão violentamente criticada pelo Prolekult como pelas vanguardas.
O entusiasmo acendido pela Revolução de Outubro transformou as vidas e teve fortes repercussões na poesia que invade os comícios políticos, as fábricas, as ruas, os cafés. Escreve-se nas paredes ao lado das palavras de ordem. Poetas como Maiakovski, Essenine, Pasternak deram-se a conhecer nesse fervilhar quotidiano, mesmo o simbolista Blok adquire um novo fôlego, surgem os poetas proletários sob a bandeira do Prolekult. Cometem as maiores extravagâncias e o poder soviético mostra para com eles uma rara indulgência, muito pela intervenção de Lénine que dava mais importância ao seu contributo para a Revolução do que as seus excessos públicos, ao seu contributo para os ideais da Revolução do que para as suas propostas estéticas. Benjamin Goriely relata muitos desses sucessos como o dos poetas imagistas que querem imediatamente a celebridade universal, consagrada na própria cidade.
«Substituem nomes ilustres das placas pelos seus próprios nomes (…) A rua Petrokva passou a ter o nome do imagista Marienhoff. O beco dos Camaristas, onde está o teatro Stanislavski, fui mudado para rua Essenine, O Beco da Gazeta passaria a chamar-se Kussikoff. (…) Os cocheiros foram os primeiros a aperceberem-se da coisa. Foi o próprio Essenine que lhes chamou a atenção. Chamou um trem, disse ao cocheiro:
– Leve-me à rua Essenine
– Como disse, perguntou o cocheiro.
– Rua Essenine.
– Essenine, não conheço
– Como? Não conheces os grandes homens da Revolução?
– Mas claro que conheço, responde o cocheiro a tremer, como foi que disse camarada? A rua Essenine, conheço-a mas pode-me dizer o antigo nome da rua.
– Beco dos Camaristas.
– Pois claro que conheço. Como podia eu não conhecer o grande revolucionário Essenine?
Essas brincadeiras valeram aos imagistas uma severa repreensão, mesmo uma ameaça de prisão por Kamenev, então presidente do Comité Central do Soviete, que a relatará a Lénine. Este riu-se a bandeiras despregadas, de modo algum pensou em punir os imagistas: melhor ainda, os seus poemas foram editados.4
Lénine compreendia que o processo em curso implicava as mais amplas massas na criatividade revolucionária e na construção de uma nova cultura num contexto em que iriam surgir projectos extraordinários e reivindicações radicais. Em conversa com Clara Zetkin, referiu-se a esse processo: «O despertar de novas forças, o trabalho com o objectivo de criar na Rússia Soviética uma arte e uma cultura novas, é uma coisa boa, muito boa. O ritmo tempestuoso do seu desenvolvimento é compreensível, mesmo útil. Devemos dar futuro ao que foi, durante séculos, descuidado, nós assim o queremos. A efervescência caótica, as novas consignas febris das aventuras artísticas, consignas que hoje cantam “hossanas” em relação a determinadas correntes da arte e amanhã as “crucificam”, são coisas inevitáveis. A revolução liberta todas as forças ontem amarradas, impulsionam-nas das profundidades para a superfície da vida» (Écrits sur l’Art et la Littérature. Éditions du Progrès, 1969).
No entanto, não estava desatento a esses movimentos que se tinham juntado à Revolução. Os de vanguarda intensificando a sua acção a favor de uma nova arte, criando células literárias e artísticas entre os operários, e o Prolekult criando estúdios, também entre os operários, para impor a «cultura proletária», enfrentando-se não só por palavras mas muitas vezes a murro. Entre todos os que alcançam maior notoriedade estão o futurista Maiakovski e o poeta proletário Demian Bedny. Um é o grande poeta da Revolução como hoje é reconhecido, o outro é um poeta medíocre que se limita à agitação e propaganda sem grande estro poético, hoje quase esquecido. O julgamento que na altura sofreram por parte de Trotsky (La Littérature et la Révolution, Le Monde em 10/18, 1972) e Lénine, apesar de ambos preferirem Bedny a Maiakovski, é bastante diferenciado. Lénine fá-lo em alguns telegramas a Lunatcharski: «não será uma vergonha votar a favor da publicação do poema 150 000 de Maiakovski em 5000 exemplares? Tolice, extravagância e pretensão, tudo isto. Na minha opinião, só um em cada dez desses escritos vale a pena ser publicado, e não mais do que em 1500 exemplares, para as bibliotecas e para os maníacos»
Em benefício de Lénine, refira-se a imensa escassez de papel que deveria ser direccionado prioritariamente para as escolas e para os jornais. Natália Kruspskaia confirma a admiração crítica de Lénine por Bedny. Gorki, conta nas suas recordações o paralelo que Lénine traçava entre os dois poetas. Sublinhava o alcance da propaganda na obra de Demian Bedny, embora dizendo «é um pouco grosseiro. Vai atrás do leitor, em vez de marchar à frente dele». Em relação a Maiakovski «grita, inventa não sei que palavras estapafúrdias. Não é assim, acho eu, não é assim, e é pouco compreensível. Tudo disperso, tudo difícil de ler. Dizem que é dotado? Até muito dotado? Hum, veremos».
Trotsky, brutal em relação a Maiakovski, que considera «um vadio anarquizante, sem qualquer valor poético», tem um imenso entusiasmo por Demian Bedny: «é curioso verificar que aqueles que fabricam as fórmulas abstractas da poesia proletária passam habitualmente ao lado de um poeta que, mais que ninguém, tem o direito ao poeta da Rússia revolucionária» (…) «tem a capacidade de fazer da poesia um mecanismo de transmissão incomparável das ideias bolcheviques» (…) «Demian Bedny não criou, nem criará uma escola: ele mesmo foi criado por uma escola que se chama P.C.R., para as necessidades de uma grande época que não terá igual» (Ibidem, obra citada). Uma formulação no mínimo inquietante por excluir a arte de encontrar aquilo que quer fazer com os seus materiais e instrumentos, para a entregar pura e simplesmente nas mãos da política e dar à política o comando, o que acabava por sancionar a «cultura proletária». Uma concepção diametralmente oposta à de Lénine, que sempre lutou contra as tentativas do Prolekult impor uma «cultura proletária» autonomizando-se do Narkompros. No primeiro Congresso sobre a Educação, em 6 de Maio de 1919, Lénine criticou o Proletkult e os intelectuais burgueses que desdobravam a sua fantasia no domínio da filosofia e da cultura ditas proletárias, «como se a cultura proletária surgisse de uma fonte desconhecida, brotasse do cérebro de alguns que se dizem especialistas na matéria, um total absurdo». A fracção comunista nesse Congresso, liderada por Lénine, votou a submissão do Prolekult ao Narkompros por 166 votos a favor, contra 36, e 26 abstenções. No discurso final, um discurso não previsto, Lénine atacou ainda mais violentamente os teóricos da «cultura proletária» considerando-a um desvario.
Sempre inflexível em relação aos princípios, Lénine foi também sempre um revolucionário flexível nas políticas que os não violassem, o que aplicou coerentemente em relação às artes, nunca aceitando que a política a colonizasse.
Bibliografia Resumida
Brecht, Berthold, Les Arts et la Révolution, L’Arche, 1997
Ehrenburg, Ilya, Un Écrivain dans la Révolution, Éditions Gallimard, 1962
Goriely,Benjamin, Les Poètes dans la R’evolution Russe, Éditions Gallimard, 1934
Gorki, Máximo, Lénine, Modo de Ler, 2009
Lénine, Oeuvres Complètes, em 45 volumes, Éditions du Progrès, 1958-1976
Lénine, Écrits sur l’Art et la Littérature, Éditions du Progrès, 1969
Lénine, Obras Escolhidas, em 3 volumes, Editorial Avante!, 1978
Lénine, Que Fazer?, Editorial Avante!, 1984
Lénine, Materialismo e Empiriocriticismo, Editorial Avante!,1979
Lunatcharski, Anatoli; Gorki, Maxim e outros, Lénine tel quel fut. Souvenirs de Contemporains, Editions du Progrès, 1959
Palmier, Jean Michel, Lénine, A Arte e a Revolução. Ensaio sobre Estética Marxista, Moraes Editores, 1976
Prévost, Claude, Literatura, Política, Ideologia, Moraes Editores, 1976
Reed, John, Dez Dias que Abalaram o Mundo, Editorial Avante!, 1997
Trotsky, Leon, La Littérature et la Révolution, Le Monde em 10/18, 1972
Enquanto esperam a chegada dos novos tempos, os empreendedores instalam-se no património cultural que decoram com obras de arte das colecções públicas. É a lógica agora enunciada pelo Ministério da Cultura.
De uma assentada Graça Fonseca, ministra da Cultura, e Ângela Ferreira, secretária de Estado da Cultura, assumem decisões esclarecedoras da sua perspectiva sobre cultura e património cultural.
Se ainda houvesse dúvidas – tendencialmente deve-se sempre conceder o benefício da dúvida – sobre se existiam políticas culturais, por mais controversas que fossem, em que a hierarquia dos valores culturais era a que se sobrepunha, ainda que com decisões questionáveis, aos interesses do mercado cultural, elas deixaram de existir.
A nomeação de Bernardo Alabaça para director-geral do Património Cultural pela ministra da Cultura e um despacho da secretária de Estado da Cultura que manda depositar em hotel privado obras de uma colecção adquirida pelo Estado – o que motivou um pedido de audição urgente do PCP à ministra – são a evidência de que o ministério da Cultura está capturado pelas forças do mercado. Para os actuais detentores desse pelouro é o mercado, que não reconhece qualquer outra hierarquia cultural que não seja a do que é rentável e vendável, o norte da sua acção.
As duas decisões, praticamente simultâneas, geraram imediatas perplexidades e indignações no universo intelectual e nos dirigentes da Associação Portuguesa de Museologia (APOM) e do Conselho Internacional de Museus da Europa, que Luís Raposo comenta num excelente texto.
Os caminhos iniciados e percorridos pelo programa Revive já eram altamente preocupantes pela via única de entregar à indústria imobiliária turística a recuperação do património cultural construído, em risco de ruína ou em adiantado estado de degradação, sem se preocupar, ou melhor (pior), demitindo-se de definir os programas de ocupação deixando-os ao critério dos promotores privados. Deviam saber, ou sabem até bem demais, que a filantropia não entra nos seus cálculos. O interesse nos valores icónicos, históricos e culturais é meramente instrumental. O Estado tem um papel fundamental no equilíbrio entre a exploração desse património por privados e o seu usufruto público, mesmo assumindo-se que os projectos de arquitectura respeitem o traçado original.
Os exemplos de desastradas gestões e intervenções privadas no património edificado a nível internacional são muitos e o que aconteceu em Itália nos governos Berlusconi – mas não só, olhe-se para França e para os Hotel de Ville – deve, deveria, ser um fortíssimo sinal de alerta.
A nomeação para director-geral do Património Cultural de um gestor especializado no ramo imobiliário, sem qualquer qualificação na área da cultura, e a cedência de artefactos que fazem parte das colecções de museus nacionais para enfeitar um empreendimento imobiliário turístico beneficiário do programa Revive são, como escreve Maria Isabel Roque, «Duas cajadadas no mesmo coelho». São a demonstração de que as políticas, durante dezenas de anos ziguezagueantes, dos ministérios e secretarias de Estado da Cultura, seguem agora em linha recta capturadas pelos interesses da rentabilização imobiliária que as ginásticas argumentativas da ministra da Cultura de «implementação de um novo ciclo de políticas públicas para o património cultural e para as artes» tornam ainda muitíssimo mais preocupantes.
A recuperação do património edificado é sempre complexa. Um dos meios de salvaguardar o património edificado é dar-lhe novas funções sem que a sua identidade seja posta em causa. O Centro Português de Fotografia está instalado na «Cadeia da Relação», um edifício que começou a ser construído em 1767; o Museu Nacional de Arte Antiga está instalado num palácio mandado construir, em finais do século XVII, pelo 1.º conde de Alvor; o Palácio de São Bento, onde está instalada a Assembleia da República, começou por ser um convento. Todos eles, ao longo dos tempos, albergaram as mais diversas instituições e nem todos os edifícios com valor patrimonial terão que obrigatoriamente seguir esse caminho.
O que não é aceitável, nem sequer admissível, é que esse caminho seja o da via única da exploração turística em que o único objectivo é a redução dos impactos das requalificações nos Orçamentos de Estado. Uma via que tem sido prática corrente continuada por outros atalhos, com a desclassificação de vários edifícios para entrarem no mercado imobiliário, a intromissão das Finanças impedindo a classificação de imóveis do Estado para facilitar a sua venda. A gestão privada tem um único objectivo, o lucro e a recuperação no prazo mais curto dos investimentos realizados. O Estado obriga-se ao serviço público, que tem que ser protegido e defendido. É essa a função do Estado, que o deve impor caso a caso. Deve ser do conhecimento público, para haver debate com contribuições culturais e técnicas válidas, que se plasmem nos cadernos de encargos das obras e nos das concessões. Até se deveria exigir que o Estado, pedagogicamente, obrigasse os concorrentes a abrirem concursos públicos de arquitectura em vez de deixar ao critérios dos promotores a escolha dos arquitectos.
O grande problema da imaginação para reinventar os monumentos, como proclamava o feérico ministro da Cultura francês Jack Lang quando, em 1984, lançou um vasto programa de privatização do património edificado, é se as operações imobiliárias, que necessariamente lhes estão associadas, garantem e como garantem as suas memórias originais ou se essas memórias serão e como serão sacrificadas à sua reabilitação. Com essa orientação política – de transferir a recuperação e a gestão de bens patrimoniais que são de todos para a sua apropriação privada – a fronteira entre serviço público e a actividade comercial, se já era porosa, torna-se inexistente. O empreendedorismo turístico promete restaurar o património edificado e mesmo dar-lhe acesso público, desde que, evidentemente, não incomode os utentes que pagam para dormir e vaguear por onde dormiu e vagueou a extinta nobreza, pelo que se deve preservar o sossego desses esplêndidos momentos de ócio, pagos e bem pagos aos empreendedores que em poucos anos amortizam os investimentos feitos à conta do valor histórico desses lugares.
Vamos ver como correrá essa coexistência. Nos processos em curso por essa Europa fora, nada está garantido e muito do que já foi feito só provoca as máximas apreensões.
«O empreendedorismo turístico promete restaurar o património edificado e mesmo dar-lhe acesso público, desde que, evidentemente, não incomode os utentes que pagam para dormir e vaguear por onde dormiu e vagueou a extinta nobreza, pelo que se deve preservar o sossego desses esplêndidos momentos de ócio, pagos e bem pagos aos empreendedores que em poucos anos amortizam os investimentos feitos à conta do valor histórico desses lugares»
Consonante com essa prática está a cedência de peças do Museu dos Coches para decorar uma instituição que não têm funções museológicas. É um precedente inaceitável – uma dúvida: será mesmo um precedente? – em que um membro do executivo, certamente avalizado pela sua superior hierárquica, se arroga da prerrogativa de dispor das colecções dos museus nacionais, surda aos pareceres dos organismos técnicos. Pode dizer que tudo está salvaguardado. Veremos se no fim da linha, com os sucessivos sobressaltos a que tem sido sujeito o ministério da Cultura e os organismos dele directamente dependentes, não se estará perante mais um caso de polícia. Além do que foi parar à Procuradoria-Geral da República há que lembrar as obras de arte da colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC) de que não se conhece o paradeiro e das discrepâncias entre os registos. No livro de registos que havia sido aberto em Janeiro de 1986 e encerrado em 1992, inventariavam-se 1115 obras. Posteriormente há uma lista de 848 cedidas à Fundação de Serralves que, estranhamente, só reconhece 553 obras, uma discrepância de 295 obras. A Fundação de Serralves cedeu – autorizada por quem? – 93 obras a outras entidades. Para ampliar a baralhada 267 obras à sua guarda viajaram para outras paragens, tendo sido entretanto localizadas 165, 102 continuam em parte incerta. Um imbróglio que tem sido objecto de vários despachos ministeriais e que parece longe de solucionado. Poderá a secretária de Estado da Cultura argumentar que a sua decisão de cedência de obras das colecções do Estado a um privado está salvaguardada por um inventário rigoroso, o que não invalida a discricionariedade do procedimento mas, com a ligeireza com que tem sido feita a circulação de obras das colecções estatais, por maiores que sejam as garantias…
Na lógica da prática actual do ministério da Cultura, relembrando as controvérsias suscitadas por um jantar promovido pelo Web Summitt no Panteão Nacional, não será de admirar que em breve se acolham de braços abertos os führers da moda, da fashion life, que tomam de assalto o património cultural associando-os às suas marcas. O exemplo paradigmático é Itália, com um legado de grande dimensão em risco, a exigir intervenções urgentes e os governos, o de Berlusconi na linha da frente, a cortarem drasticamente os orçamentos da cultura. Solução? Vendem-se direitos de patrocínio na restauração de monumentos como a Fonte Trevi à Fendi, o Coliseu de Roma à Tod’s, Pompeia à Prada, a Torre de Pisa à Gucci, associando os logótipos das marcas aos monumentos que apadrinham.
Tudo isto se enquadra no estado actual da cultura e das artes. Está em linha com as exibições de arte contemporânea em que as marcas de artigos da moda e luxo se associam às vernissages, sublinhando o seu carácter mundano com desfiles de moda ou assinalando-as, como fez a Hermès na inauguração de Buren em Paris, com lenços de seda desenhados pelo artista, ou a Louis Vuitton com sacos monografados de Murakami na abertura de uma sua exposição em Los Angeles. Exemplos não faltam nessa lógica ostentatória em que se associa a moda à arte contemporânea, em que o mundo dos famosos desfila destilando fragrâncias, jóias e os últimos modelos de vestuário. São menos as notícias sobre as exposições e os sucessos culturais que as que registam as presenças do star-system, da política aos grandes empresários, das vedetas televisivas às do desporto, do cinema, da música e da arquitectura, dos artistas visuais e performativos ao baixo clero dos gestores culturais que os promove e aos chefs que prepararam as degustações daquele evento ou esperam ser convidados para o próximo. Na Europa esses processos cavalgam o tempo. Por cá seremos mais modestos, mas sempre com o objectivo e a finalidade de a cultura deixar de ser um «peso para o Estado», que parece ser o grande desígnio dos decisores culturais em exercício.
O património, cultural e natural, gera grandes apetites. O jornal Economist, num editorial intitulado «The $9 trillion sale», escreve que Thatcher e Reagan usaram as privatizações como ferramenta para combater os sindicatos e transformar em receitas diversos serviços públicos e que os seus sucessores no século XXI, «necessitam fazer o mesmo com os edifícios, terrenos e recursos naturais, porque é um enorme valor que está à espera de ser desbloqueado».Trocando por miúdos, nos centros decisores do capitalismo internacional, FMI, Banco Mundial, BCE etc., está a levedar uma nova onda de privatizações de tipo novo e radical: vender bens imobiliários estatais, incluindo patrimónios histórico-culturais; a dificuldade – dificuldade obviamente superável – é a da avaliação de muito desse património.
Enquanto esperam a chegada dos novos tempos, os empreendedores instalam-se no património cultural que decoram com obras de arte das colecções públicas.
É essa a lógica agora enunciada pelo ministério da Cultura.
Uma ópera de Wagner foi utilizada num discurso fascista de Ricardo Alvim, secretário especial da Cultura do governo brasileiro. É tempo de se ouvir Wagner, reabilitá-lo de um injusto labéu que ainda hoje se lhe cola.
Lohengrin, ópera de Wagner, foi utilizada como música de fundo de um discurso de Ricardo Alvim, secretário especial da Cultura do governo brasileiro, transmitido em directo nas redes sociais, em que abundavam as citações de Goebbels. Na sequência, Jair Bolsonaro, que durante a transmissão o elogiou por diversas vezes, acabou por o demitir, no dia seguinte, pela «infelicidade» das suas declarações. É a hipocrisia, o cinismo destes novos fascistas de fascismo sim, mas devagar, lá mais para a frente, enquanto vão colocando pedras nessa estrada.
Ricardo Alvim demonstrou a sua conhecida incultura referindo Lohengrin como a última ópera escrita por Wagner. Foi a terceira, na realidade a sua sexta ópera depois de As Fadas, Amor Proibido e Rienzi, ainda sem as inovações wagnerianas de Navio Fantasma e Tannhäuser, que viriam a marcar a história da música e que antecederam Lohengrin. Nada que cause espanto. Estava a utilizar Wagner, como os nazis o fizeram com contumácia, para sublinhar o conteúdo nazi-fascista do seu comentário.
Continua a ser vulgar associar Wagner aos nazis pelo anti-semitismo que em várias ocasiões manifestou. Há mesmo quem considere a sua música anti-semita e vá até mais longe, relacionando-o com o Holocausto pelo abuso da sua música pelas elites nazis e o seu uso por alguns dos chefes dos campos de concentração. Curiosamente, a última ópera escrita por Wagner, Parsifal, na sua primeira apresentação em Bayreuth foi dirigida por Hermann Levi, um maestro judeu escolhido por ele. Outro judeu, Jacob Rubinstein, foi o seu principal assistente musical. Muitos outros judeus, escritores e filósofos, conviveram com Wagner e por ele eram admirados. Mais significativo é não haver uma única personagem anti-semita nas óperas de Wagner. Desde sempre é notória a ambivalência do genial compositor alemão com o judaísmo e o semitismo.
Concorrem para a vulgata de a música de Wagner ser anti-semita o Festival de Bayreuth, quando começou a ser dirigido por Winifred, mulher do seu filho Siegfried – que morreu em 1930 – e convicta nazi, amiga pessoal de Hitler, julgada e condenada depois da queda do Reich; e um opúsculo escrito por Wagner, O Judaísmo na Música. Na base desse texto está a sua péssima relação com Meyerbeer, compositor judeu alemão de escola italiana, que alterou mesmo o seu nome, de Jacob Liberman para Giacomo. Meyerbeer era um bem-sucedido compositor mas ainda mais bem-sucedido homem de negócios, dominava completamente a cena artística em Paris. Elogiou Wagner quando este estava em Dresden. Quando Wagner vai para Paris procurando êxito e reconhecimento tudo lhe corre mal, acabando preso por dívidas. A representação de Tannhäuser foi um fracasso fustigado pela crítica o que, pela influência de Meyerbeer no panorama musical francês, Wagner lhe atribuirá e nunca perdoará. Outra razão é defesa da ópera alemã contra a influência da ópera italiana de que Meyerbeer era representante. Nenhum desses factos o desculpa de ter feito, no referido opúsculo, afirmações execráveis e inaceitáveis: «o judeu é por si próprio incapaz de se expressar artisticamente» […] «nem pela aparência, nem pela sua linguagem, e muito menos através de seu repertório musical».
Wagner é uma personalidade complexa, egocêntrica, com uma vida turbulenta pouco abonatória, o que o coloca na imensa galeria de artistas em que as considerações negativas sobre as suas personalidades não devem embaciar a qualidade artística – o que, de modo algum, o exime das justíssimas críticas ao seu anti-semitismo, ressalvando sempre a sua não tradução nos seus relacionamentos pessoais –, sublinhando-se a traço grosso que a sua música é estética e politicamente progressista, onde não há uma única personagem que personifique negativamente os judeus. Alguns críticos e estudiosos, mesmo ressalvando Wagner não ter escrito nenhuma ópera anti-semita, esmiúçam todas as suas óperas para especulativamente forçarem a realidade e descobrirem essa atitude antijudaica, em duas personagens: Mime, de O Anel dos Nibelungos, que subliminarmente teria sinais de estereótipos judeus, manifestamente uma afirmação especulativa com intenções forçadas, e o crítico pernóstico Beckmesser de Os Mestres Cantores de Nuremberg, na ópera um personagem menor e que é um alemão cristão – o que é esquecido por esses críticos. Note-se, duas personagens no meio de dezenas das quatorze óperas que escreveu considerando-se as quatro da tetralogia O Anel dos Nibelungos. O prolixo anti-semitismo dos escritos de Wagner nunca contaminou nem as suas relações pessoais nem a sua música.
É singular que muito se fale do anti-semitismo de Wagner e pouco se refira a sua actividade revolucionária ao lado de Bakunine, que lhe valeu fugas e deportações. Tal como pouco se investiga a influência por ele recebida do pensamento filosófico, político e estético de Rousseau, em particular dos seus Écrits sur la Musique1, que Mário Vieira de Carvalho refere no seu excelente ensaio «O rasto de Rousseau na teoria e dramaturgia wagneriana»2.
A sua obra magna, O Anel dos Nibelungos, é um drama que condensa a história da sociedade desde o aparecimento da propriedade privada. Wotan impõe o poder, garantindo-o numa só pessoa, simbolicamente representado pela sua lança. Quando Siegfried a quebra está a quebrar esse contracto social. Siegfried é, de certo modo, o bom selvagem de Rousseau, aplaudido por Bakunine como herói proletário.
Bernard Shaw escreve uma excelente análise do Anel dos Nibelungos3 para tornar a tetralogia acessível e compreensível a todos. Lê o Anel como uma alegoria marxista assimilando os nibelungos ao proletariado, Alberich aos capitalistas, os gigantes ao campesinato, os deuses à aristocracia, Siegfried ao homem novo que vai destruir o sistema capitalista. A destruição da Walhala é o colapso do capitalismo em resultado das suas contradições.
Em Israel, onde o racismo contra os palestinianos4 é um facto agora inscrito na sua Constituição, a música de Wagner está proibida, embora se possam adquirir registos discográficos. Em 2001 Daniel Barenböim, maestro e pianista argentino que tem a cidadania israelita, fundador com Edward W. Said da West-Eastern Divan Orchestra, uma orquestra de jovens músicos árabes e judeus, desafiou essa proibição incluindo o prelúdio de Tristão e Isolda no programa. A contestação começou imediatamente na sala, a que se seguiram críticas, insultos, ameaças, boicotes, o vulgar numa sociedade totalitária.
Estão publicadas em livro5 as conversas de Barenböim com Edward W. Said sobre as artes e a sua relação com a sociedade, onde o músico tem uma lúcida leitura de Wagner, explicando os motivos que o levaram a incluí-lo no programa do concerto. “A realidade é que Wagner era um anti-semita execrável. Mas os nazistas usaram e abusaram das ideias e dos pensamentos de Wagner como ele nunca poderia ter imaginado (…) o anti-semitismo não foi inventado por Hitler e não foi inventado por Wagner. Existia por gerações e gerações, séculos antes. A diferença do nazismo foi a de ter posto em prática um plano sistemático de extermínio dos judeus. Não aceito que Wagner seja responsável por isso. Também é preciso dizer que nas óperas de Wagner não há um só personagem judeu, não há um só comentário anti-semita (…) é preciso separar o anti-semitismo de Wagner do uso que os nazis fizeram dele”.
É tempo de se ouvir Wagner, reabilitá-lo de um injusto labéu que ainda hoje se lhe cola e o faz ser proibido pelo regime sionista, o que não deixa de ser irónico e cínico sabendo como os sionistas trocavam galhardetes com os nazis6, chegando mesmo a com eles negociarem na altura em que os judeus eram deportados e exterminados nos campos de concentração.
(publicado em AbrilAbril https://www.abrilabril.pt/ )
Um artista, Maurizio Castellan, cola numa parede uma banana com fita adesiva prateada, em três versões, duas provas de artista e uma final, depois de um ano a “trabalhar nessa ideia”. Um trabalho muitíssimo árduo como se presume, em que acabou por escolher três bananas entre as centenas que andam pelos mercados. Aos compradores, entre eles um museu, a “ obra” foi vendida por 120 mil dólares. O curador da galeria explica que é necessário ir substituindo a banana todas as semanas, “como uma flor”.
A “obra” ganhou visibilidade com uma imagem que corre mundo sem assombrar ninguém nesta sociedade entediada com o seu próprio tédio que, quanto muito, a olha com um sorriso amarelento. Um performer completou o quadro comendo a banana explicando que “comeu a obra e o seu conceito” (…) não sou uma pessoa normal sou um artista, um performer, não estou comendo uma banana, estou comendo arte”. Tamanha empáfia é típica dessa gente que, por todo o mundo, plantam tretas que se espalham cancerosamente procurando ser levados a sério no que, diga-se pelo estado de inacção desta sociedade oca, conseguem algum êxito ou, pelo menos, não ser contestados por maiores dislates que digam. É ler as bulas que acompanham esses eventos ditos artísticos para se sair derrotado pela cerrada obscuridade de uma amálgama de conceitos superlativamente adjectivados, tão mais sofisticadamente inteligentes quanto mais mediocremente indigentes são as obras, qualquer que seja o género em que se inscrevem.
Anda o mundo, todo o mundo infestado de performer’s, que fazem parte do grande circo da estupidez sustentado pelo baixo clero destes tempos pós-modernos — curadores, comissários, produtores, gestores culturais, especialistas, muitos deles doutorados nessas malas-artes — que, com estas ou outras bananas, fazem parte da epifania colectiva destes tempos de danação em que quase deixa de haver lugar para a criação artística excepto a não ser como forma de ganhar dinheiro, um caminho que Warhol, sem ironias nem sentimentalismos, percorreu com inquietante êxito.
Aliás, foi Warhol quem começou por consagrar a banana na capa de um disco dos Velvet Underground, a que se seguiu a casca de banana no chão de Jeanne Silverthorne (EUA – 2007)
e o furgão com uma tonelada de bananas de Paul Nazareth (Art Basel-2011)
A metafísica das bananas inscreve-se no estado de sítio em que o que sobrou para as artes, para todas as disciplinas artísticas nestes tempos pós-modernos, foi regressar ao dadaísmo, não como protesto desesperado contra um mundo insuportável, sem dignidade e sem dignidade para oferecer mas para uso publicitário, porque o destino histórico dos formalismos termina sempre na utilização publicitária do trabalho sobre a forma. É a porta grande por onde entra o conceptualismo, moda corrente porque é fácil, porque até pessoas sem conhecimentos o conseguem fazer, em que a única exigência é ter ideias a que não se exige sequer que sejam boas ou brilhantes, que desaguam na grande falsidade das artes performativas, a face mais evidente da grande fraude em que mergulhou a arte contemporânea. Existem, como é de regra, excepções que cumprem o desígnio expresso por Burckhardt “talvez hoje existam grandes homens para coisas que não existem”.(1) Homens que provam a sua genialidade em obras fragmentadas, de afirmação individual o que também é uma contradição central no quadro social globalizado, desperdiçando muito do seu talento numa arte comercial que lhes é imposta e, reconheça-se, a que dificilmente se poderiam subtrair.
É a multiplicação sem precedentes das artes performativas, sobretudo na música, nas artes visuais mas também na literatura, em que os sujeitos da acção, os artistas performativos exploram a hibridização entre géneros artísticos, abolindo hierarquias entre os materiais e as formas da pintura, escultura, música, teatro, cinema desvalorizadas pelos novos suportes, instalações, happenings, vídeos, concertos performativos, performances, etc., plantando obstinadamente um kitsch impossível de avaliação estética. O que Hermann Broch vitupera sem contemplações “ quem quer que seja que produza kitsch não pode ser avaliado por critérios estéticos, é um depravado do ponto de vista ético”.(2)
Também nos devemos interrogar porque é que esse plâncton de artistas performativos que alimenta essas artes sem arte, não aprende a filmar, a representar, a cantar, a compor, enfim a aprender aquelas coisas básicas que são o mínimo dos mínimos exigível para tão rarefeitas ideias, sem um grão de inovação e descoberta. Tudo requentado e ruminante na esteira de Marcel Duchamp, desossado do seu propósito de destruir a aura da arte, apropriado por um mundo sobrepovoado de artistas que como assinala Avelina Lésper “deixam de ser imprescindíveis porque qualquer obra substitui-se por outra qualquer, uma vez que cada uma delas carece de singularidade (…) a carência de rigor (nas obras) permitiu que o vazio de criação, o acaso e a falta de inteligência passassem a ser os valores desta arte falsa, entrando qualquer coisa para ser exposta nos museus”. Luciano Trigo entre muitos outros, foca a mesma questão por outro ângulo: (3) «Por que ninguém fala hoje em Picasso e tanta gente ainda se inspira em Duchamp? A resposta é simples: a arte de Picasso exige talento, técnica, reflexão sobre a vida e a História, enquanto Duchamp, por genial que tenha sido em seu momento, traz uma mensagem muito mais fácil de ser assimilada e copiada: qualquer um pode ser artista.»
A dura realidade é que desnudar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda o estado actual das artes não tem comprometido nem a sua credibilidade cultural nem a sua credibilidade comercial e mundana, como Mário Perniola extensamente teorizou no magnifico ensaio A Arte e a sua Sombra.(4) Essas desmistificações por mais sérias e credenciadas que sejam são sistematicamente remetidas para nichos onde se espera fiquem sepultadas. Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que domina o mercado das artes, actualmente um nicho do mercado de artigos de luxo, e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. O debate estético e cultural está praticamente reduzido a zero, submetido à ditadura dos intermediários culturais, sejam curadores, directores de museus, marchands, programadores, gestores culturais, comissários, críticos de arte, editores, produtores. Aliás, o trânsito entre eles é intenso e não sai dos carris.
Analisar esta situação exclusivamente pelos parâmetros estéticos dá uma ideia deformada do que é e para que servem essas artes vertiginosamente inscritas num bullying cultural que é outra das imagens de marca do nosso tempo. Quando se analisam os mapas de eventos culturais inscritos num espaço territorial, seja um país ou um continente, o que se verifica é que há uma proliferação de bananas coladas nas programações culturais, sejam promovidas por entidades ou instituições públicas ou privadas, alinhadas com a esquerda ou com a direita. O bananal é igualmente assaltado por uns ou por outros numa distribuição equitativa que até poderia provocar estranheza a quem não tiver a consciência clara que as obras de cultura, os produtos culturais não surgem do nada, de uma qualquer inspiração metafísica, não são um absoluto independente da produção e da reprodução social da vida. Há que perceber claramente que as ideias dominantes são as das classes dominantes porque é dominante a sua posição na esfera económica que se apropria dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção, difusão e recepção culturais, pelo que todas as bananas de todas essas artes são o produto e a imagem, realizados no quadro da autonomia relativa que as artes sempre tiveram, do capitalismo neoliberal da democracia pós-democrática. Uma arte contemporânea em que a forma é substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada em marca garante do valor da mercadoria artística. Uma esquerda sem essa percepção rende-se. Deixa-se corroer pela onda cultural, muitas vezes atemorizada de ficar à margem das modas quando deveria resistir à normalidade da anormalidade dessa cultura inculta, promotora da iliteracia cultural dominante que Byung-Chul Han expõe com brutalidade: ”hoje, a própria a percepção assume a forma de Binge Watching, (assistir a algo compulsivamente, descontroladamente) de visionamento bulímico. Oferecem-se continuamente aos consumidores o que se adapta por completo ao seu gosto— quer dizer, do que eles gostam. São alimentados de consumo como gado com qualquer coisa que acaba sempre por se tornar qualquer coisa. O Binge Watching pode ser entendido como o modo actual de percepção generalizado “(5).
Há que perceber claramente que para essa ordem capitalista são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais – rádio, televisão, jornais — e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas e esse é o pântano em que evoluem e levedam as artes performativas.
Há ainda que perceber que estas actividades culturais e artísticas fazem parte do objectivo mais ambicioso do neoliberalismo de produzir um homem novo, não o que o comunismo procurou realizar, mas um outro construído pela aniquilação do sujeito moderno crítico e marxista, substituindo-o por um sujeito autista, consumidor indiferente à dimensão essencialmente política da existência, um indivíduo que se refere exclusivamente ao aspecto solipsista dos objectos que se realizam como mercadoria subjectiva da cultura de massas, uma cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana no que é um dos traços fundamentais da sociedade burguesa contemporânea em que se procura que a alienação global seja voluntária. A esquerda cosmopolita ao não perceber essa realidade e a ela não resistir, por ignorância ou oportunismo, condena-se a escorregar nas cascas de banana que os outros comeram. Está colonizada, por vezes sem disso ter consciência, pelo pensamento de direita.
(1) Burckhardt, Jacob, Considerations sur L’Histoire, Allia, 2001
(2) Broch, Hermann, Quelques Remarques à Propos du Kitsch, Allia 2001
(3) Trigo, Luciano, A Grande Feira do Vale-Tudo na arte Contemporânea, Civilização Brasileira, 2009
(4) Perniola, Mário, A Arte e a sua Sombra, Assírio & Alvim, 2006
(5) Byung-Chul, Han, A Expulsão do Outro, Relógio d’Água, 2018
No Brasil, o delírio fascista ultrapassa tudo o que se poderia imaginar. Anunciada estava uma guerra contra o marxismo cultural. Passaram à prática com as nomeações de Roberto Alvim, cineasta empenhado numa cruzada fundamentalista conservadora que intervenha nos caminhos da arte nacional, para Secretário Especial para a Cultura.
Aos comandos da cultura imediatamente nomeou Sérgio Camargo para presidente da Fundação Cultural Palmares, instituída pela Lei Federal nº 7.668, de 22 de Agosto de 1988 em que no artigo 1º, da Lei que a instituiu se proclamava “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. Sérgio Camargo, um negro que deveria dar que pensar aos militantes das políticas identitárias, sempre fez afirmações em todo contrárias aos princípios da Fundação: “a escravidão foi benéfica para os seus descendentes” (…) “Brasil tem racismo nutella” (…) Racismo real existe nos EUA. A negrada daqui reclama porque é imbecil e desinformada pela esquerda (…) “O Dia da Consciência Negra é uma vergonha e precisa ser combatido incansavelmente até que perca a pouca relevância que tem e desapareça do calendário”. Claro que um indivíduo desta estirpe aplaudiu o assassinato de Marielle Franco.
Com carta branca de Jair Bolsonaro que afirma que a cultura tem de estar “de acordo com a maioria da população”, Roberto Alvim continuou imparável com outras duas nomeações, Rafael Alves da Silva, que se apresenta Rafael Nogueira, para a Biblioteca Nacional e Dante Mantovani para presidente da Funarte, responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas de fomento às artes visuais, à música, ao teatro, à dança e ao circo.
Rafael Nogueira é um convicto monárquico, “ a proclamação da República foi um golpe militar injustificável. O Brasil nunca mais se encontrou” que aderiu ao bolsonarismo “onde quer que o presidente esteja, estarei o seu governo sempre”. Alinha com o seu par da Fundação Palmares “se o reconhecimento científico de quem é branco ou preto é impossível, o reconhecimento estatístico só pode ser feito por razões de aparência de cor ou auto-identificação.” São raras as suas referências à literatura nas suas intervenções públicas e no tweeter onde é muito activo. As poucas que fez são suficientes para se traçar um perfil : ” A justificação dos crimes alheios pela pobreza, constante em nossa literatura e cinema, é uma mentira insultuosa aos pobres honrados” (…) Livros didáticos estão cheios de músicas de Caetano Veloso, Gabriel O Pensador, Legião Urbana. Depois não sabem por que está todo mundo analfabeto” diz o idiota inútil, só útil para dizimar a cultura.
Mais palavroso por isso mais rísivel é Dario Mantovani, um defensor das teorias da terra plana. Assinale-se que a figura é maestro e doutor com uma tese sobre Estudos de Linguística, apresentada na Universidade Estadual de Londrina. Qual terá sido o conteúdo da tese e quem terão sido os insignes arguentes que validaram citações do auto-intitulado filósofo Olavo de Carvalho e, provavelmente, de como a linguística se expande na terra plana.
Ouvi-lo sobre música e teorias da conspiração seria divertidíssimo, não fosse o perigo dramático do que serão as próximas políticas culturais da Funarte. Afirmar que Theodor Adorno é o mentor do dodecafonismo e dos Beatles para destruir a sociedade capitalista, que Elvis Presley era um agente soviético, que morreu por overdose !!! como eram agentes soviéticos os membros da CIA que distribuíram LSD em Woodstock tudo porque o rock fomenta o sexo, promove o aborto e abre a porta ao satanismo com a finalidade de destruir as famílias tendo por alvo a extinção do capitalismo, é um delírio que provoca mais risadas que qualquer cena dos Monty Python. Risadas que não podem fazer esquecer que é este bobo que está à frente da Funarte. Classificá-las como exóticas, como alguns fazem, é avalizar a estupidez no seu cume.
Se não pode causar admiração a nomeação de pessoas alinhadas ideologicamente para cargos no governo, porque é evidente a importância estratégica do controle ideológico da produção cultural, todo o mundo fica de boca aberta perante este rol de personagens que nem sequer ultrapassam o mínimo dos mínimos intelectualmente exigível. São discípulos de Olavo Carvalho, um palhaço que se auto-intitula filósofo e gasta o tempo com teorias latrinárias que despeja nas fedorentas caixas cranianas dos bolsonaretes.
A grande dúvida que fica neste circo brasileiro, em que desfilam estes bobos plantando um carnaval de dislates, é se tantos pascácios imbecis concentrados no sector da cultura não será táctica para tornar mais aceitáveis as basbaquices bolsadas pelo Presidente da República, família e próximos, uma corte de idiotas úteis que serve de cortina para que as fascitóides políticas económicas e sociais prossigam o seu caminho evangelicamente abençoadas.
O recente incêndio da Notre-Dame provocou emocionadas ondas de choque por todo o Mundo estupefacto por tal ter acontecido numa Europa onde supostamente o património se encontra mais protegido que noutros lugares do universo. As chamas consumiram a Notre-Dame depois de, em 2018, ter terminado o Ano Europeu do Património Cultural que teve por objectivo sensibilizar para os valores europeus e reforçar o sentimento de identidade comum europeia.
Objectivo explicitamente político de afirmação da cultura eurocêntica que agora abre a sua identidade a outras identidades e diferenças depois de séculos em que a tentou impor unilateralmente, dedicando-se paralelamente ao tráfico de bens culturais não só de outros continentes mas dentro da própria Europa. Recorde-se os frisos do Pártenon traficados por Lord Elgin, as obras pilhadas por Napoleão e pelos nazis. Apesar de, após a derrota do regime napoleónico, se ter firmado um tratado para devolver o espólio roubado aos países originalmente detentores, um primeiro passo na sua defesa, o Casamento de Caná, de Paolo Veronese, continua em exposição no Museu do Louvre, os frisos do Pártenon no British Museum, muitas das obras roubadas pelos nazis estão em paradeiro incerto.
O alarme gerado pelo incêndio da Notre-Dame, para lá do mediatismo que teve com o público abrir dos cordões das bolsas das famílias mais ricas do mundo e de empresas de artigos de luxo, num total de mais de 600 milhões euros para a reconstrução do icónico monumento, o que não deixa de ser chocante quando coincide com a sua indiferença com o desastre temporalmente coincidente que aconteceu em Moçambique – para essa gente refinada um pináculo vale muito mais que a perda de centenas de vidas e as incalculáveis devastações que afectaram centenas de milhares de pessoas –, alerta para os perigos a que tem estado sujeito o património cultural material e imaterial em todo o Mundo e para a escandalosa desigualdade do derramamento de notícias sobre as destruições sucedidas nos últimos anos.
Com as guerras do império norte-americano e seus sequazes no Médio-Oriente, Iraque e Síria, e no Afeganistão a destruição de monumentos, a pilhagem, o tráfico ilegal de artefactos históricos têm efeitos muitíssimo mais devastadores que o incêndio da Notre-Dame. A sua memória vai-se diluindo, os autores desses crimes lesa património cultural vão ficando impunes. Convém sublinhar que quem de facto os perpetrou, os talibãs no Afeganistão, os jihadistas na Síria, são extensões, armas de arremesso dos EUA e seus aliados que os armaram e financiaram.
Não se pode esquecer que os talibãs que destruíram com alarde os Budas gigantes de Damyan são uma invenção norte-americana, que os apelidava de combatentes da liberdade contra o governo não confessional do Afeganistão e seus aliados soviéticos. Na Síria, os jihadistas de diversos grupos alinhados com o Estado Islâmico atacaram a cidade de Palmira, provocando destruição gravíssima num dos primeiros locais a ser considerado Património da Humanidade pela UNESCO. A guerra instalada na Síria pelas potências ocidentais por interpostas forças mercenárias danificaram, destruíram e pilharam centenas de outros locais históricos. No Iraque a situação evoluiu para uma situação semelhante embora no seu início a pilhagem dos museus e monumentos tenha sido realizada pelas tropas invasoras.
Cuidar do património cultural é uma responsabilidade de todos. Protegê-lo da sua destruição – uma das formas de o alienar é pela privatização, recorde-se o que acontece actualmente na Grécia – é um dever universal. A emoção pelo incêndio da Notre-Dame deve ser um sinal de alerta para as destruições que todos os dias sucedem. Apesar de diferentes pontos de vista, esses actos devem ser condenados. Os seus autores, os de facto e os morais, devem ser punidos.
Há cem anos, no dia 1 de Abril, a Bauhaus abriu as suas portas em Weimar, na Turíngia. De 1919 a 1933 a Bauhaus desenvolveu uma actividade teve uma enorme influência na história da arquitectura e das artes em particular no design. Alterou radicalmente metodos de ensino e currículos escolares nessas áreas que continuam a ser aplicados.
Este texto, publicado no AbrilAbril — dividido em dois por motivos editoriais — é uma opinião crítica sobre a história da Bauhaus.
Em Setúbal, na Galeria Municipal do 11, um colectivo de seis artistas, que iniciou a sua actividade em conjunto nos anos 1976 e esteve activo até o princípio dos anos 80, revive esse passado decorrido quase meio século. Eram os 5+1. Quatro ainda estão vivos, três bastante activos.
Descodifique-se 5+1. Nos géneros artísticos são cinco pintores e um escultor. No género, são cinco homens e uma mulher. Na política estão na esquerda, cinco pluralmente mais à esquerda, um assume deslocação mais moderada para o centro. Nas opções estético-artísticas o que os une é aparentemente nada. Há mesmo situações limite. Sérgio Pombo nunca pintou uma paisagem. A figuração humana, sobretudo a feminina, é o núcleo do seu trabalho, atravessa todas as experimentações da sua obra plástica mesmo quando está ausente ou quando adquire volume numa forma escultórica suporte da pintura libertada dos limites da tela. João Hogan coloca-se no extremo oposto. A figuração de pessoas ou objectos vai desaparecendo na sua pintura até se apagar completamente na arquitectura dos silêncios obsessivos das suas paisagens, que procuram infatigavelmente um estado primordial em que a vida é uma pulsação subterrânea de ventos invisíveis que as vão moldando. Se ambos parecem encontrar-se por recusar contar histórias, sequer enunciar uma narrativa, por ambos explorarem uma pulsão sensual que fere o olhar de quem olha as suas obras, voltam a ter atitudes diametralmente opostas porque enquanto Hogan tem uma ostensiva indiferença, uma quase hostilidade às correntes estéticas internacionais e seus ecos regionais, Sérgio Pombo faz incursões variadas com tal sucesso que o colocam, em várias situações e vários contextos, na linha da frente das artes nacionais e mesmo internacionais.
Entre estes dois pontos, que se podem considerar extremos, situam-se os outros artistas, Guilherme Parente, Júlio Pereira, Teresa Magalhães, Virgílio Domingues, assim por ordem alfabética.
Guilherme Parente é um narrador impossível de deter. Cada um dos seus quadros, desenhos ou gravuras é, desde o primeiro que mostrou até ao próximo que ainda não pintou, uma história para se decifrar, uma história que aconteceu ou está para acontecer, por onde a mão do pintor viaja carregada de lirismo, sem nunca encontrar um ponto final mesmo quando o artista dá a obra por acabada. Em todos os quadros de Guilherme Parente há a deslumbrante incompletude de um caminho que se faz caminhando sem nunca se desviar por uma vereda.
Júlio Pereira, caldeireiro de profissão, o Júlio Pintor de Arte do Montecarlo e da Brasileira, chega tarde, aos quarenta anos, à pintura onde faz explodir uma energia contida durante décadas, sendo o seu primeiro tema recorrente as mulheres, pintadas de todas as formas a tinta-da-china, óleo ou pastel, que subitamente desaparecem para dar lugar à mais rigorosa e icónica abstracção.
Teresa Magalhães tem um universo muito próprio e particular por onde obstinadamente deambula sem nunca se perder nas múltiplos caminhos que percorre. A sua pintura é sempre passado, presente e futuro e todos os saberes que vai colhendo em cada uma das suas experimentações, do neo-figurativismo ao abstraccionismo, acrescentam valor no quadro que irá pintar. Na pintura de Teresa Magalhães se nada se perde também nada se repete, é um acto de permanente criação e renovação. É o percurso fascinante de um trabalho sem quebras, em que a pintora se reencontra constantemente para se reinventar sem um traço de fadiga.
Virgílio Domingues estende uma fina e sofisticada rede de escuta sobre o mundo para decifrar o argumentário dos protagonistas da comédia humana dos etecéteras passados presentes e futuros. Contrariando o que eles querem, Virgílio não lhes perdoa. não leva esses actores a sério, mas torna dramaticamente sérias as situações que protagonizam. Inicialmente as suas esculturas registavam os momentos, as circunstâncias, os seus intervenientes. Progressivamente torna as situações menos reconhecíveis, os protagonistas mais personalizáveis em anatomias que se decompõem sem que nenhum traço as humanize, para que os personagens quanto menos forem identificáveis mais transpirem a abjecção do seu poder social. Paralelamente o escultor ironiza sarcasticamente a estatuária comemorativa que invade o espaço público com figurações academizantes, sejam figurativas ou abstractas. Um trabalho em contínuo, que se foi depurando formalmente sem nunca se desviar do seu norte.
São estes seis artistas, tão diversos entre si, que decidem organizar-se em grupo para realizar várias exposições. O que os une, além da amizade, é a pulsão da arte, o serem artistas que dispensam adjectivos, o percepcionarem que o seu trabalho individual adquiria densidade e singularidade em cada um desses encontros. Paradoxalmente enquanto entre eles, nessas exposições colectivas, é cada vez menos possível definir uma tendência mais geral que os relacione, tornava-se cada vez mais impressivo que o trabalho de cada um ampliava, e muito, o que se podia fazer com as artes visuais. Esse é o grande impacto dos 5+1 no panorama das artes nacionais.
As exposições dos 5+1 foram um percorrer de caminhos que se iam descobrir progressivamente mais distintos, em que todos eles se afirmavam para se confirmarem na história contemporânea de arte portuguesa, o que os colocam entre os mais significativos das suas gerações.
Os 5+1 revisitados estarão na Galeria do 11, em Setúbal, até ao dia 30 de março
(publicado em AbrilAbril, 3 de março 2018)
Sabemos, todos devíamos saber, que a ideologia burguesa ataca e cerca sem desbarato de tempo toda a resistência à abominação desta sociedade sem dignidade. Combate todo e qualquer sinal de resistência, de qualquer forma de resistência ao pensamento dominante, com o objectivo último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer, ainda que com todas as contradições e dificuldades.
Vulgar é a rescrita da história para rasurar a heroica luta dos povos pela emancipação, pelo fim da exploração do homem pelo homem. Banal o bombardeamento diário feito pelos meios de comunicação social e pelas redes sociais, concentrados pelos gigantescos grupos económicos em grandes empresas mediáticas que constroem realidades para ocultar a realidade. Comum a bastardização da cultura pelas indústrias culturais e criativas, moinhos onde nas suas rodas dentadas se reduz a pó a cultura para fazer luzir o entretenimento que não exige reflexão nem sintoniza sentimentos e tudo se afundar num perverso gosto homogeneizado e acéfalo.Um totalitarismo que até pode dispensarditadores e caudilhos, pulsa fortemente nos sistemas democráticos com o objectivo de reduzir e anular o espectro do debate e das ideias.
O combate a este estado de sítio é duro, exigente. Há que reconhecer que a direita tem tido êxitos nessa batalha e que muita esquerda está colonizada pelo pensamento de direita.
Hino de resistência
Uma das formas mais sofisticadas e eficazes dessa ditadura do pensamento é prostituir, com as ferramentas do mercado, a cultura. Exemplo recente é a castração da Bella Ciao, essa bela e comovente canção dos partigiani que lutaram com denodamento contra o fascismo. Apropriaram-se dela para a usarem como banda sonora da série televisiva A Casa de Papel. Descontextualizaram o seu potencial revolucionário para a tornarem um fetiche da cultura de massas desligada da cultura popular e de resistência. Colocaram-na nos top ten em muitos países hispânicos e de língua portuguesa.
Canta-se e dança-se ao som da Bella Ciao indiferentes aos seus belos e comoventes versos: Bella Ciao (adeus Bela) / Esta manhã, acordei / encontrei um invasor // Oh, guerrilheiro, leva-me contigo / Bella Ciao, Bella Ciao,/ Porque sinto que vou morrer // Se morrer como membro da Resistência / Enterra-me como membro da Resistência // Enterra-me no alto das montanhas / À sombra de uma bela flor/ Bella Ciao, Bella Ciao / As pessoas que passarem / Dirão: que bela flor!// Essa será a flor da Resistência/ Daquele que morreu pela liberdade (tradução livre).
Ela move-se!
Com A Internacional, Bella Ciao era o canto dos partigiani, socialistas, anarquistas, sobretudo comunistas. Eram os hinos da resistência italiana. Hoje Bella Ciao é um hit de A Casa de Papel, cantada em vários momentos-chave da trama pelos personagens que vão assaltar a Casa da Moeda de Madrid, como se tivesse sido escrita para essa série. Destrói-se a história, a grande e bela história da Bella Ciao,esvaziando o seu conteúdo subversivo, o seu significado antifascista para a tornar um produto de consumo equivalente às centenas de canções de amor filistino de um qualquer Tony Carreira.
Assassinaram a Bella Ciao com a mesma frieza com que têm assassinado os milhões de mulheres e homens que lutaram e lutam para transformar a vida, devolver à humanidade a humanidade. Para esses resistentes de ontem e hoje Bella Ciao está viva. Contra os ventos da história desfavoráveis devemos continuar a lutar com a convicção de Galileu frente ao tribunal da Inquisição: No entanto, ela [a Terra] move-se
Em 1971, Milva canta uma versão da Bella Ciao homenageando a Resistência numa demonstração pública das suas simpatias políticas
A cultura é a soma dinâmica e activa das sabedorias da vida e dos conhecimentos do fazer, da prática colectiva de grupos e de indivíduos. O equívoco maior é encerrar a cultura no círculo restritivo da criação artística, o que conduz a pensar-se a cultura como uma ilha limitada às artes e às letras, um território neutro onde os bons espíritos se podem encontrar longe do ruído trivial do trabalho e das outras actividades quotidianas, sejam as das ciências ou das tecnologias sejam as da política ou da vida doméstica.
É uma ideia reducionista de cultura em que se esquece e não interessa entender que uma ilha se define sempre em relação a um continente e que as artes e as letras, embora se desenvolvam com uma relativa autonomia, são sempre condicionadas pelas condições sócio-económicas envolventes. Dante só é o poeta genial da Divina Comédia por se estar na transição da Idade Média para a Renascença e ter o seu centro político e económico em Florença, a sua cidade, e Siena. Só é possível surgir um Baudelaire no pós Revolução Francesa, quando a burguesia que já detinha o poder económico assumiu o poder político. Só a Revolução de Outubro possibilitou a explosão de todo o poder criativo das vanguardas artísticas, que colaboram e coincidem com a vanguarda política numa síntese nunca antes vista nem nunca antes experimentada.
Só assim se consegue perceber os contributos das artes e das letras em cada momento histórico para a cultura como modelo antropológico do trabalho humano que se concretiza nos mais diversos e plurais tipo de actividade. Cultura enquanto núcleo de práticas e actividades que são instrumentos de produção material, recepção e circulação que dão sentido à vida e ao mundo.
Pensar práticas e políticas culturais
Marx,
na Contribuição
para a Crítica da Economia Política,
define «produção
material na sua forma histórica específica (…) uma forma
determinada da produção material deriva, em primeiro lugar, de uma
organização determinada da sociedade e, depois, de uma relação
determinada entre o homem e a natureza. O sistema político e as
concepções intelectuais são determinadas por esses dois factores,
por conseguinte, também o género de produção intelectual». Marx
avisa que se não se analisar assim a produção intelectual, fica-se
pelo campo das vulgaridades e «é impossível perceber as
características da produção intelectual que lhe corresponde e as
suas reacções específicas».
Só assim percebemos como a destruição da cultura está a ser empreendida pelo neoliberalismo que, simulando da-lhe maior liberdade por não ter nenhuma política cultural, uma falácia em que a ideologia burguesa é contumaz, entrega-a ao mercado que promove uma cultura de impacto máximo e obsolescência imediata, acelerada pelas modas e os humores públicos, em que tudo é espectáculo promovido pelas indústrias culturais e criativas.
Um bullying cultural em que tudo é cultura e, consequentemente, nada é cultura. Em que a cultura dissimula o vazio desta sociedade. É esse o papel destrutivo do capitalismo neoliberal pós-democrático em que a mercadorização e a alienação afundam a cultura enquanto parcela activa e essencial do exercício democrático de participação dos cidadãos, contribuindo para a consolidação dos instrumentos que ensinam e fazem perceber e intervir no mundo.
Contra esses ventos da história há que içar as velas, saber içar as velas para se pensar práticas e políticas culturais efectivas recuperando a cultura para o seu trabalho fundamental: transformar a vida. Uma luta que é sobretudo política, de uma política patriótica e de esquerda.
Em Lisboa uma livraria quase centenária, a Aillaud & Lellos, encerrou as suas portas no fim do ano por não suportar o aumento de renda exigido pelo senhorio. A ironia é ao lado do cartaz em que se anuncia o encerramento estar um autocolante com o logotipo “Lojas com História” da recém-formada rede do programa Lojas com História http://www.lojascomhistoria.pt , promovido pela Câmara Municipal de Lisboa (CML). Não são as boas intenções que ultrapassam os efeitos devastadores da famigerada lei das rendas de Assunção Cristas, no não menos famigerado governo PSD-CDS, que provocou uma onda de despejos brutal que ela procura eclipsar manipulando os efeitos dessa lei da sua deliberada responsabilidade, ventilando um argumentário em que vale tudo mesmo negar as próprias evidências, como se viu durante a campanha eleitoral para as autárquicas em que se arvorou em defensora das lojas históricas de Lisboa, enquanto elas iam fechando vitimas da sua irresponsabilidade.
É menos uma livraria onde se podia procurar o que não se encontra nos dominantes espaços livreiros. Do ponto de vista da arquitectura também se vai certamente perder a bela fachada e letragem art-deco, como já se perderam outras lojas dessa zona da baixa, muitas desenhadas pelo arquitecto Conceição Silva em colaboração com artistas plásticos, agora só memória de um património que se tem vindo a alienar. Isto quando se proclama 2018 – Ano Europeu do Património e o Ministério da Cultura está alegremente muito entusiasmado com a privatização de mais de trinta monumentos que irão ser entregues à indústria do turismo. Inquietante, preocupante é o Ministério da Cultura não assumir as suas responsabilidades nesse processo porque a grande questão é se as operações imobiliárias necessariamente associadas a essas recuperações garantem e como garantem as suas memórias originais, se essas memórias serão e como serão sacrificadas à sua reabilitação. Não é límpido como o empreendedorismo turístico, com promessas de restaurar o património edificado, lhe vai dar acesso público, desde que, evidentemente, não incomode os utentes que pagam para dormir e vaguear por onde dormiu e vagueou a extinta nobreza pelo que se deve preservar o sossego desses esplêndidos momentos de ócio, pagos e bem pagos aos empreendedores que em poucos anos amortizam os investimentos feitos à conta do valor histórico desses lugares. A primeira sugestão cultural, aceitando-se com todas as reservas o Revive, é que se gere um movimento cívico e de cidadania que exiga que seja o Ministério da Cultura a elaborar os programas para cada um dos monumentos, resolvendo na medida do possível os problemas enunciados e só depois os colocando a concurso. Há ainda outro problema que o governo devia corajosamente enfrentar que é o da crise com que se debatem os profissionais de arquitectura. Todos esses projectos deveriam obrigatoriamente ser sujeitos a concurso público não limitado, não deixando a escolha das equipas de arquitectura entregue à selecção aleatória dos adjudicatários. No 2018-Ano Europeu do Património estaria Portugal a dar um passo em frente e inovador para defesa do património mesmo no quadro de um desinvestimento generalizado dos Estados na cultura o que só causa as máximas apreensões, olhando para o que tem acontecido por essa Europa fora.
O grande destaque desta semana vai para as crianças. As crianças sem horizontes ou com um longínquo horizonte de esperança. Carina Infante do Carmo e Violante F. Magalhães organizam um interessantíssimo conjunto de colóquios, seminários e mesas-redondas, a decorrer em Lisboa na Faculdade de Letras e no Museu João de Deus e em Vila Franca de Xira no Museu do Neo-Realismo com o tema
Miúdos, a vida, às mãos cheias. A infância do neo-realismo português. http://www.museudoneorealismo.pt/frontoffice/pages/1367?event_id=9609. O objectivo, expresso no texto de apresentação é o tópico da infância (e da juventude, já agora) uma das dimensões mais significativas da construção e conquista da contra-hegemonia cultural do Neo-Realismo à política salazarista e ao seu fortíssimo investimento simbólico, político-organizativo e repressivo em torno destas faixas etárias. Para os neo-realistas, a criança é um dos ícones da esperança, da emancipação social e da potência transformadora de futuro. O recurso à infância nas figurações artísticas e literárias combina o ensejo de denúncia com uma dimensão pícara e, fundamentalmente, lírica.
O programa é ambicioso e vasto, inicia-se nos dias 12 e 13 de Janeiro prolonga-se até Agosto.http://www.museudoneorealismo.pt/uploads/writer_file/document/17150/PP.pdf Além das análises ao neo-realismo enquanto movimento literário, artístico e político, a figuração da criança nas obras de Manuel da Fonseca, José Gomes Ferreira, Ilse Losa, Soeiro Pereira Gomes, Carlos Oliveira, Vergílio Ferreira e Fernando Namora será objecto de comunicações nesses primeiros dias. O cinema, o teatro e leituras encenadas darão continuidade a esse excelente programa, nos dias 2 de Fevereiro, 2 e 17 de Março, em paralelo uma exposição no Museu do Neo-Realismo é o suporte físico para esta excelente iniciativa que constitui também um Curso de Formação de Professores creditado pelo Conselho Pedagógico-Científico da Formação Contínua de Professores/ Curso livre creditado em ECTS pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
A criança, as crianças estão também no centro da peça de teatro 150 Milhões de Escravos com montagem e encenação de Maria João Luís. O número é o do total das crianças escravas em todo o mundo no recenseamento da Amnistia Internacional. O texto foi construído com base nos neo-realistas portugueses Romeu Correia, Carlos Oliveira e Soeiro Pereira Gomes e de Em Homenagem aos Nossos Empregados, de Mickael de Oliveira, A Gaivota, de Anton Tchekov, fragmentos de Arthur Rimbaud. Uma peça de teatro dura, violenta sobre uma realidade que vem dos princípios da história, da propriedade privada e da exploração do homem pelo homem, uma história violentíssima da humanidade que persiste nos nossos dias, em que os pobres são cada vez e estão mais pobres em relação aos ricos que são cada vez menos e concentram cada vez mais riqueza nas suas mãos. 150 Milhões de Escravos
é uma peça que nos confronta com as cumplicidades, directas de quem pactua com este estado do mundo e indirectas de quem, até por omissão, se alheia da brutalidade da exploração capitalista que, para se perpetuar, usa todas as formas das mais aparentemente democráticas às mais brutais ditaduras, das liberdades burguesas mais amplas aos territórios concentracionários do nazismo-fascista. A artista e encenadora Maria João Luís interroga: Quem são hoje os filhos dos homens que nunca foram meninos? E interroga com aspereza para nos sobressaltar a consciência de todos que de uma forma ou de outra pactuamos com esta situação. A interpretação está a cargo de Beatriz Godinho, Catarina Rôlo Salgueiro, Emanuel Arada, Ivo Alexandre, João Saboga, José Leite, Hélder Agapito, Lígia Soares e Teresa Sobral.
A cenografia é de Ângela Rocha, o vídeo de Inês Oliveira, o movimento de Paula Careto e o desenho de som e de luz de José Peixoto e Pedro Domingos.
É uma co-produção do Teatro da Trindade INATEL e pelo Teatro da Terra, em parceria com a Câmara Municipal de Ponte de Sor e o Museu do Neo-realismo, a peça vai estar em cena a partir de quinta-feira, dia 11 de Janeiro, e prolonga-se até 28 de janeiro, com espectáculos de quarta-feira a sábado, às 21h30, e aos domingos, às 16h30.
Espera-se, deseja-se que 150 Milhões de Escravos, encontre outros palcos no país.
A finalizar referir registos discográficos que são um bálsamo para preencher dias e noites chuvosas. Dois de música sinfónica, o Requiem de Mozart que depois de inúmeras e excelentes interpretações ainda consegue surpreender agora com a direcção de René Jacobs com a Freiburger Barockorchester, o RIAS Kammerchor e as vozes solistas de Sophie Karthauser, Marle-Claude Chappuls, Maximilian Schmidt e Joahannes Welsser; e Crazy Girl Crazy de Barbara Hannigan, maestrina e cantora da Ludwig Orchestra que interpretam a suite de Gershwin, arranjo de Billy Elliot, que dá o título ao disco, a suite Lulu de Alan Berg e uma portentosa interpretação da Sequenza III de Luciano Berio. No jazz um excelente João Paulo Esteves da Silva, piano, acompanhado por Mário Franco, contrabaixo e Samuel Rorher, bateria em luminosas improvisações em Brightbird e um magnifico Vijay Iyer, demonstrando a sua enorme versatibilidade como instrumentista e arranjador a tocar em sexteto em Far From Over.
No fado os grandes destaques vão para Aldina Duarte, Quando se Ama Loucamente, que se aventura nos textos de Maria Gabriela LLansol para abrir caminho pelas paixões que abruptamente irrompem e morrem. Ainda no fado mas a traçar uma trajectória das raízes aos nossos dias, From Baroque to Fado de Os Músicos do Tejo, com as vozes de Ana Quintans e Ricardo Ribeiro, Miguel Amaral, viola, Marco Oliveira guitarra portuguesa, Jarrod Cagain, percussão. Um disco gravado em directo, um esplêndido trabalho de produção e edição de Pierre Lavoix, do concerto efectuado na Fundação Gulbenkian que teve um grande êxito que agora se tem repercutido nacional e internacionalmente por via do registo discográfico .
( publicado em AbrilAbril 12 de janeiro)
Nas últimas décadas, o desinvestimento na cultura enquanto serviço público atira-a para a fogueira unidimensional do mercado. A cultura, que deveria assegurar o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural e ser elemento central na formação da consciência da soberania e da identidade nacional, dialogando, de igual para igual, com a cultura de todos os povos do mundo, tornou-se numa vulgar mercadoria. Dentro da lógica mercantilista que o capitalismo neoliberal procura impor a todas as esferas da actividade social e humana, procura-se subordinar as políticas culturais do Estado às normas do mercado que não conhece outra lógica que não seja a do que é vendável, o seu único critério de excelência que reduz o juízo crítico a uma espécie de crónica de promoção publicitária das artes e dos artistas sem colocar questões de ordem estética, poética ou até relacionadas com as histórias de arte.
Procura-se legitimar essa situação com a apresentação estatística do crescimento do sector económico das chamadas indústrias culturais e criativas que teriam impacto cada vez maior no contexto das actividades económicas. Para alcançar esses resultados vale (quase) tudo. Na Europa, depois de falhada a tentativa de tentar subordinar as actividades artísticas e culturais aos critérios e ditames da Organização Mundial do Comércio, começou-se a medir a importância da dimensão económica do sector cultural com as Contas Satélite da Cultura, uma prática em uso, com pequenas diferenciações metodológicas, em países como Espanha, Finlândia, Polónia, República Checa ou Portugal.
A questão central é o que se considera passível de integrar com o rótulo de actividade cultural. Na Conta Satélite da Cultura em Portugal, como nos outros países, o sector com maior impacto é o dos Livros e Publicações, não só pela dimensão como pelo número de empregos que gera. O que os números grossos ocultam é que a produção de livros é bem menor que a das publicações e que nas publicações, em Portugal as duas de carácter cultural, o semanário JL e a revista Ler, além de serem uma quase excrescência no conjunto das publicações, têm tiragens desprezíveis, 10 000 e 7 000 respectivamente, se comparadas com A Maria, 167 000, ou os três jornais diários desportivos, A Bola, 120 000, Record 70 000, O Jogo, 30 000. Por essa amostra se vê a grande mistificação que são as Contas Satélites da Cultura, num país em que é bem conhecida a iliteracia e o sector editorial e livreiro se debate com gravíssimos problemas de sobrevivência. Os outros sectores de actividade seguem o mesmo caminho e critérios. No Audiovisual e Multimédia equivalem-se os videojogos e os filmes publicitários aos filmes documentais e de ficção. Sintomaticamente as áreas de actividade com menor expressão são o Património, as Bibliotecas, Arquivos e Artes de Espectáculo, mesmo que nas Artes de Espectáculo coexistam Gil Vicente e Tony Carreira. Não pode causar algum espanto que a Publicidade apareça como uma actividade cultural nesse saco onde os valores imateriais da cultura, a sua capacidade de inovação e criação, de transmissão, difusão e debate de ideias, o seu peso simbólico e estruturante na memória colectiva de um povo são sacrificados nos altares da mercantilização para triunfo do mercador do arroz de Brecht que não sabe o que é o arroz, nunca viu o arroz, do arroz só conhece o preço.
Servem essas pantominas para justificar o desinvestimento público na Cultura por se argumentar que, entregue a si próprio e com esses malabarismos, o seu peso económico esteja em crescimento na lógica de impactos máximos a qualquer preço e sem qualquer critério, com obsolescências imediatas ditadas pelas exigências da moda e do jogo do mercado. É assim a Cultura arrastada nesse sorvedouro em que a fruição cultural é alienada e alienante, reduzindo os padrões de exigência, tanto de produtores como de consumidores, corroídos pelos efeitos nefastos de uma generalizada oferta de entretenimento de produtos mercantis que não exigem reflexão nem sintonizam sentimentos e se afundam num perverso gosto homogeneizado e acéfalo que atira para a fornalha da iliteracia global um grupo crescente de pessoas que, por via da exclusão cultural, ficam cada vez mais afastadas da possibilidade de possuírem ferramentas para exercer os seus direitos de cidadania.
É uma lógica que esquece que a Cultura não é um empilhamento cego de conhecimentos, nem um exercício elitista de distinções, nem a lapidação de um suposto gosto. Que a Cultura é um exercício de criação, de liberdade, de resistência, de transformação da vida preservando memórias passadas e construindo memórias futuras. Que a Cultura tem um papel central a desempenhar na sociedade, assegurando o direito de todos ao acesso, à criação e à fruição cultural pelo que não pode ser abandonada à bitola dos mercados nem viver das sobras, dos restos dos Orçamentos do Estado. A reinvindicação de 1% para a Cultura é uma exigência para a sua afirmação e autonomia, contra a alienação da Cultura.
TERRAS INCÓGNITAS
Nos livros de Ana Teresa Pereira há uma geografia humana e física que tem uma cartografia que vai mudando de lugar e de personagens que, sem se repetirem, são reconhecíveis em todos os seus romances. Desde o primeiro Matar a Imagem, em 1989, Prémio Caminho Policial até ao último Karen, Prémio Oceanos Literatura 2017, são mais de vinte em que a autora, viajando entre o policial e o fantástico, coloca os personagens em ambientes fechados onde vivem iluminados por uma luz exterior e interior que dá origem a atmosferas claustrofóbicas sempre à beira de um abismo, em que o leitor é convocado a participar, porque são obras abertas “como se o leitor tivesse comprado o livro num mercado de rua, sem reparar que faltavam as últimas páginas” diz a autora.
Em Karen essas características são mais presentes. O livro começa descrevendo a cena do encontro final do filme Noites Brancas de Visconti, com base no único romance romântico de Dostoiévski, em que todas as decisões e indecisões do virtual triângulo amoroso se confrontam, antecipando e introduzindo as de uma jovem que acorda num quarto estranho, com fragmentos familiares que a orientam num labirinto de pedaços de memórias que a fazem reconhecer os que a rodeiam e a tratam como alguém que conhecem. São memórias de pequenas coisas que fazem Karen, nome pelo qual a chamam mas nunca se saberá se é o verdadeiro nome, fazer parte desse universo mesmo que não reconheça de todo as pessoas com quem partilha esse quotidiano ou se lembre do que é a sua vida.
Não se saberá qual a sua verdadeira identidade: “ eu sabia isso a seu respeito. Sabia muitas coisas a seu respeito de que ninguém me tinha falado. Não era possível ter o mesmo rosto e o mesmo corpo e não partilhar um pouco a alma”. Ana Teresa Pereira em Karen, mais que nos seus anteriores romances, desvela factos para camuflar outros, promove reencontros que se resolvem em encontros e desencontros. É como visitar uma casa de família que se julga conhecer desde sempre, onde se vai repetidamente, mas não tem realidade física porque se constrói num vai e vem de memórias fragmentadas que se apagam e acendem. pelo que nunca igual nem monótona. Fá-lo com um estilo incontornável que tornam a sua obra uma das mais sólidas e coerentes na literatura portuguesa.
(publicado no Guia de Eventos Setúbal Janeiro/fevereiro 2018)