
Há um novo paradigma nas eleições democráticas das mais ou menos abertas às mais mais ou menos fechadas ou mesmo completamente fechadas. É o paradigma António Costa, eleito por unanimidade presidente da Comissão Executiva e do Conselho Metropolitano da Área Metropolitana de Lisboa (AML), depois de afastar, como não quer a coisa mas não deixando outra saída em quem tem coluna vertebral, coisa de que ele tem uma vaga ideia do que seja, que não fosse abandonar a votação para não legitimar tamanha tropelia. Um caso de estudo em regimes democráticos.
Pela mão do amigo Miguel Relvas, António Costa sem mexer uma palha seria sempre eleito para uma das presidências da Área Metropolitana de Lisboa. Mesmo que tivesse havido uma abstenção abstrusa e um único votante no concelho de Lisboa, ele próprio a votar em si-próprio, a lei Relvas garantia um dos cargos de presidência de uma das comissões da AML. Malhas que as democracias tecem, cerzindo as leis à medida dos interesses de momento, como aqui já foi explanado por Demétrio Alves no “post” O Eleitor de Oiro. Emalhamentos que xicos-espertos, sem rei nem roque, costuram para legalizar processos tortuosos, em que os fins justificam os meios, para que o Estado de Direito continue a ser o estado do direito dos mais fortes à liberdade atropelando todos os princípios e qualquer ética. António Costa, mal a lei foi publicada, deve ter enviado um cartão de agradecimento ao amigalhaço Miguel Relvas, antecipando os abraços democráticos que devem ter trocado, rebolando-se de gozo com as consequências da aplicação da lei. A democracia fica sempre mal servida por Costas & Relvas.
O Miguel Relvas bem deve ter corado de vergonha quando António Costa vituperou a falta de coragem para levar a lei até às últimas consequências. Ter deixado a porta entreaberta para critérios da lei anterior continuarem em vigor. Pela lei Relvas, o partido cujos municípios somassem maior número de eleitores, independentemente dos resultados eleitorais, elegeria um presidente de um dos órgãos. Para ocupar os dois órgãos seria necessário ter também o maior número de presidências de municípios. Pelo primeiro critério, tendo sido António Costa, eleito presidente de Lisboa mesmo que, como já referimos, com a hipótese absurda de haver uma abstenção desaustinada e um só votante, o Costa no Costa, a sua eleição estava garantida. Como se está a ver nada mais transparentemente democrático!
Pelo segundo critério é que a porca torce, torcia o rabo. A CDU ganhou nove municípios, com um total de 233.414 votantes, o PS, seis com um total de 355.114 votantes (só Lisboa contribuiu com 32,8% desses votos numa coligação que era um ponto de encontro de várias vontades e opções ideológicas, como lembrou Helena Roseta para sublinhar a pluralidade de uma lista, com vários grupos de cidadãos organizados, que se albergava debaixo da bandeira do PS, opinião que António Costa rebateu soezmente no discurso de vitória em que quase afirmou, para Seguro e o PS ouvirem evidentemente, que a vitória se devia a ele e só a ele) o PSD dois, com um total de 196.524 votos, e o delfim do Isaltino, toma lá aquele abraço comovido, que ganhou Oeiras com 25.071 votos.
O PCP propôs ao PS que cada um dos partidos ocupasse a presidência de um dos órgãos da Área Metropolitana de Lisboa. Hipótese liminarmente rejeitada por António Costa que. como bom democrata, queria todo o poder para ele nem que tivesse que se deitar com o diabo.
A única saída era aliar-se aos presidentes de câmaras ganhas pelo PSD e, o mais fácil, à Câmara de Oeiras, ganha por um discípulo desse autarca exemplar que foi Isaltino Morais. Um exemplo também para o António Costa, sobretudo em anos em que vai rever o PDM. Isaltino grande líder estou contigo, o teu seguidor será meu vice-presidente.
Homem avisado, António Costa preparou o terreno em Lisboa, rasgando uma regra tácita, em que as vice-presidências da Assembleia Municipal eram ocupadas pelas outras forças mais votadas. Sempre virado para a direita enquanto fala para a esquerda ouvir, numa conversa fiada que tem treinado desde a juventude, afastou a CDU de qualquer acordo, antecipando o que iria fazer na Área Metropolitana. Com essas alianças somou tantas câmaras, nove, quantas as que a CDU ganhou. Estava desfeito o nó que o amigo Miguel Relvas não tinha desfeito. António Costa foi eleito por unanimidade absoluta, obtida com a ausência de indignação justificadíssima dos autarcas CDU, É o novo paradigma democrático, o Paradigma António Costa, um político cheio de qualidades, quase nenhuma com qualidade. Ainda há pouco tempo, no programa Quadratura do Círculo, insurgia-se de forma pouco habitual no seu estilo de experimentado e meloso intriguista, contra a alteração estatutária que António José Seguro propunha, em que as propostas de listas de candidatos a deputados pelo PS abandonariam o método proporcional e a lista vencedora ficaria com todos os candidatos, nem que vencesse por um voto. Para António Costa isso acabava com a suposta marca de água do PS que seria a pluralidade interna. E, coisa rara nele, engrossava a voz enxofradíssimo, quase a ultrapassar as fronteiras da exaltação que essa proposta lhe causava, apesar de tudo bem mais aceitável que a celerada lei Relvas que o beneficiava descaradamente e de que não discordava de algum modo. Essa gente é assim, sempre pronta para o contrabando ideológico e de princípios desde que saquem vantagens.
Bem pregava Frei António Costa contra as malvadezas do Seguro, malvadezas que só o são dentro do PS mas que são óptimas se, em variante menos justificável e mais violenta, fazem tábua rasa de qualquer veleidade democraticamente pluralista, quando aplicadas na Área Metropolitana de Lisboa, por via de uma lei miserável que abençoou em silêncio e logo utilizou, fazendo as alianças espúrias necessárias para ultrapassar os buraquinhos deixados pelo legislador e que punham em perigo o poder absoluto. Ou talvez as alianças não sejam nada espúrias e revelem, para quem ainda tenha ou tivesse ilusões, que António Costa, como o rematador de pólo aquático da Palombella Rossa, aponta à esquerda, sempre à esquerda para rematar à direita, sempre à direita. Aliás António Costa especializou-se em dizer coisas de esquerda, que chegam a ultrapassar a esquerda pela esquerda, para melhor fazer políticas e, sempre que necessário, alianças à direita. Nunca se viu, em todo o seu já longo percurso político, António Costa fazer outra coisa que não seja rasteirar a esquerda na primeira curva em que com ela se cruza. Um artista faceto, um político sem príncipios, um homem da confiança do grande capital como se viu ainda há bem pouco tempo quando fez um ultimato a Seguro, em que acabou por recuar só para tomar mais balanço. Apercebeu-se que ainda não tinha chegado a sua hora apesar dos apoios angariados entre correlegários e os externos que os representantes do capital lhe garantiam. Por ela tem feito tudo, com a habilidade que se lhe reconhece, dando doces mas vigorosas dentadas nos adversários colegas de partido, puxando os cordéis nos bastidores, largando bombas de relógio nos corredores do Rato, rasteirando e intrigando brilhantemente para que não apareça outro Sócrates que lhe atrase o destino para que se acha predestinado e que desde a juventude, as elites socialistas preconizam.
Ao assistir a estas manobras, lembrámo-nos da primeira aventura autárquica de António Costa, quando em 1993 concorreu ao município de Loures. Ainda estavam os votos mal contados, a votação era-lhe favorável. Não perdeu tempo a fazer um extemporâneo discurso de vitória. Na RTP 1, entre vários comentadores, Cáceres Monteiro e Nuno Rogeiro. Cáceres Monteiro babava-se a ouvir António Costa cantando vitória.. Depois a má notícia, Costa tinha perdido. Cáceres Monteiro, muito rápido, quase lacrimejante, desatou a fazer o elogio de António Costa, a lamentar a perda que era para Loures ter atirado para a lixeira a oportunidade de ser dirigida por tão promissor político, ter dado a vitória ao engenheiro “Demérito” Alves (sic). O alvoroço tem desses imprevistos. Nuno Rogeiro sarcástico corrigiu-o. Cito de memória: “Não é Demérito é Demétrio Alves, e você ainda não percebeu que a população de Loures preferiu o ferrari ao burro?!” Aludindo há corrida que o Costa tinha promovido entre um burro e um ferrari na Calçada do Carriche,
Agora o burro, que não é nada burro como os burros não o são, vingou-se e de braço dado com Miguel Relvas e Isaltino Morais, dois democratas estrénuos como ele e de gabarito equivalente, ocupou todos os cadeirões presidenciais da Área Metropolitana de Lisboa. Reconheça-se que o burro vai longe. É um animal político trabalhador, obstinado, com objectivos bem definidos que mascara habilidosamente para os adversários, dentro e fora do seu partido, só deles se aperceberem quando já não há, ou quase não há, retorno. Consumado politiqueiro, onzeneiro experimentado, tem poses e discursos de sereia que disfarçam a voracidade saturnina. Mesmo quando parece recuar está a avançar dando a volta ao texto. O tempo em que teve hesitações que foram escolhos na sua carreira, parece definitivamente ultrapassado. No pântano da democracia, enquanto a democracia for um pantanal mal cheiroso, António Costa está entre os que prometem ir mais longe. Terá é que não ser tão sofrego como na referida edição da Quadratura do Círculo e não desatar a correr atrás do seu fado, para recuperar o tempo e as oportunidades que por maus cálculos deixou passar. Dona Constança Vitorino anda a fazer pela vidinha e os outros não passam de uns seguros de trazer por casa. Oh Costa, tenha calma, nem sempre terá Relvas por muleta, mas os ventos, maus ventos para todos nós, são-lhe favoráveis.
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