Era muito jovem quando conheci Herberto Helder, em 1961. Deu-me o seu segundo livro, A Colher na Boca. No ano anterior Luís Pacheco tinha publicado na Contraponto O Amor em Visita. Ainda o comprei ao Pacheco, antes de se esgotar. Foi um deslumbramento que cresceu poema a poema até ao seu último poema publicado na Morte sem Mestre.
A colher de súbito cai no silêncio da língua.
Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos
puros. E sei que não é uma flor aberta
ou a noite cercada de águas extremas.
Paro por esta monstruosa,
ingénua força. de uma morte.
– A colher envolvida pelo silêncio extenuante
da minha, boca, da minha vida.
Que faço? Bem sei como se alimenta um homem,
e tímido e arguto
alimenta a sua. irénica inspiração solar,
a inocente astronomia
de ossos e estrelas, veias e flores
e órgãos genitais –
para que tudo se construa docernente,
com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados,
sorrindo fixamente como as crianças na lírica, ‘
tenebrosa densidade da carne.
A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo,
casto; ponderado – por certo
de uma beleza confusa e evocativa.
Eis: sou um homem que instante a instante
ganhava um sabor de perene
sentido, uma duração de sombra extasiada,
laboriosa, inclinada. no grave centro
- primavera – a sombra
das minhas mãos.
A colher subia como um instrumento da criação,
firme subia nos dedos
como que invocando, unindo os fragmentos
do espirito,
a mímica na sugerida integridade
da pessoa
colocada na. doce integridade do tempo.
Mas pare. Cai no silêncio da língua
a colher que era-quem sabe?-música,
intimidade, sinal fortuito
de uma. essência, de um génio interior.
O puro roer devagar roerá
a colher na mão e a boca na. colher,
e no sangue imóvel o pudor da imagem onde
coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam
assimetria festiva e sagaz das invenções.
–Cai
no s11ênc1o da llngua a colher tao brusca.
Herberto Helder é uma voz extraordinária e rara do grande e sublime mistério que é a poesia, porque, como ele escreveu, nada pode ser mais complexo que um poema/organismo superlativo absoluto vivo/apenas com palavras/apenas com palavras despropositadas/ movimentos milagrosos de míseras vogais e consoantes/nada mais que isso, /música,/e o silêncio por ela fora