Anos a fio lutei, lutámos muitos, para que a forma de tratar os doentes do foro psiquiátrico mudasse e muito havia para mudar. Foi uma dura batalha que se prolongou mesmo 25 de Abril adentro, embora as portas que se abriram muito tenham ajudado, sobretudo, para se poder falar livremente sobre a situação em que os serviços de psiquiatria portugueses se encontravam. Progressivamente as vitórias foram chegando, vitórias que foram muito palpáveis nas reformas profundas dos hospitais e dos serviços de consulta externa, mas também mais subtis, mais difíceis de apontar, mas essenciais para que se consolidassem aquelas. Refiro a mudanças de mentalidades, de preconceitos existentes que eram tão poderosos que mesmo técnicos da saúde e gestores os perfilhavam.
E hoje? O que está a acontecer? Uma destruição silenciosa, mas que se vai tornando cada vez mais visível e que, brevemente, os doentes e as famílias irão perceber até que ponto foi profunda, dos serviços prestadores dos cuidados psiquiátricos.
Em Setúbal, conseguiu-se um serviço de internamento para doentes agudos em 2001 e com ele a consolidação de um serviço de urgências de 24 horas muito mais próximo dos doentes, embora ainda muitos deles tivessem de vir de zonas como Santiago de Cacém. Contudo, já não tinham de ir sistematicamente para Lisboa onde até ali eram atendidos. Quilómetros de distâncias, horas e horas de espera para, não raro, serem devolvidos à procedência com uma receita nas mãos a qual tanta vez não alterou o estado do doente que teria de voltar mais uma, duas vezes, tantas vezes sem conta, ao serviço de urgência em Lisboa, no Hospital Miguel Bombarda.
Pois bem, a partir das 20 horas e até às 8 horas já não existe uma urgência psiquiátrica na Península de Setúbal. Antes, havia ambulâncias, bombeiros disponíveis, para o transporte. E a partir de agora? Pobres doentes e pobres famílias que irão repetir o calvário de outros doentes e outras famílias para as quais o fascismo respondeu com a maior das indiferenças. Paulo Macedo estaria muito bem nesse tempo, porque consegue ser ainda mais indiferente, cínico e cruel.
Hoje, os fascistas estão mais encapotados, utilizam um linguajar modernaço, termos enganadores, falaciosos que depois a TV se encarrega de repetir para que as pessoas aceitem a inevitabilidade de tudo o que estes capatazes dos poderosos deste mundo põem em marcha, depois de umas aulas práticas nos Clubes Bilderberg’s ou nos hotéis de muitas estrelas onde os instalam para que percebam como a vida pode ser boa e luxuosa (recordo-me das palavras escritas por John Perkins no livro Confissões de Um Assassino Económico) se forem bem comportados para com o sistema iníquo de que se tornam escravos.
Mas não são só os doentes do foro psiquiátrico que estão a ficar sem urgências na Península durante a noite. Já assim estão os de oftalmologia e outras especialidades virão, e outros “programas” estarão na forja com as anti-medidas tomadas pela ARS (Administração Regional de Saúde) de Lisboa e Vale do Tejo a que pertence a Península de Setúbal, com o beneplácito do Ministro e do Governo e a complacência e cumplicidade de médicas/os que ocupam lugares na gestão /administração dos serviços de saúde.
Voltaremos rapidamente aos tempos em que as urgências estavam concentradas em Lisboa, no Hospital de S. José e Santa Maria o que, de resto, parece ser o fim último deste governo a quem foi “explicado” que as funções sociais do Estado são um dos inimigos a abater. Tudo privatizado para lucro dos detentores do capital.
Pode haver retrocessos, conquistas que se perdem, mas os trabalhadores já demonstraram ao longo dos séculos que têm, contêm em si, a força capaz de provocar mudanças, roturas que levem a sociedade a caminhos do progresso.
Como diz a canção: “ E se Abril ficar distante deste país, deste povo, a nossa força é bastante para fazer um Abril novo”.
A luta organizada é a nossa arma mais poderosa; foi ela que preparou o caminho para aquela manhã clara, nítida e libertadora. Outra faremos, até porque os mortos também vão ao nosso lado.