Um novo e extraordinário trabalho do Luís Quinta e do Ricardo Guerreiro, uma coprodução da AMRS com a Traduvários, sobre o património cultural da Arrábida, visando a sua valorização e promoção.
Um novo e extraordinário trabalho do Luís Quinta e do Ricardo Guerreiro, uma coprodução da AMRS com a Traduvários, sobre o património cultural da Arrábida, visando a sua valorização e promoção.
Azul sobre azul. O Sado e a Arrábida fazem-nos esquecer, por momentos, o dia-a-dia. Momentos mágicos de beleza e tranquilidade numa simbiose quase perfeita.
Na imagem, em primeiro plano, a popular praia de Albarquel, a estância do povo de Setúbal. Ao fundo divisa-se a fortaleza de Santiago do Outão e as instalações do complexo cimenteiro .
Começo este escrito com um obrigado à Biblioteca Municipal de Setúbal pela disponibilidade mostrada pelos seus funcionários e pelo acervo histórico local que contém e pode ser consultado, e que, penso, não é conhecido por uma grande parte da população que vive nesta cidade. A coleção de jornais e outros documentos, muitos dos quais vindos do século XIX é um verdadeiro maná para se estudar a história local.
Realizei uma investigação, já lá vão quase sete anos, acerca de um dos amores da minha vida: o parque natural da Arrábida, a serra com o mesmo nome e a embocadura do rio Sado. De algumas das conclusões a que cheguei vou aqui dar conta em alguns capítulos.
«… A Arrábida lembra aquelas jóias raras, postas de lado por falta de técnico para as lapidar. Grandiosidade, vegetação luxuriante, mar límpido, recantos de maravilha, tudo o Criador lhe presenteou com abundância. Compete ao Homem – ser inteligente e empreendedor – servir-se daqueles atributos naturais para tornar a vida mais alegre, feliz e saudável». (Jornal “O Setubalense”, de 18-7-1949).
O Parque Natural da Arrábida, com a área de 10.821 hectares, abrange parte dos concelhos de Setúbal, Palmela e Sesimbra. É uma área classificada pelo Decreto-lei n.º 622/76 e posteriormente reclassificada pelo Decreto Regulamentar n.º 23/98 com a alteração dos seus limites e inclusão de uma área de Parque Marinho. Está ainda inserido na Rede Europeia de Reservas Biogenéticas (Conselho da Europa), classificado como biótipo CORINE e inserido na SIC, Sítio do Interesse Comunitário – Arrábida / Espichel da Rede Natura 2000. Continuar a ler
A contestação à coincineração no Parque Natural da Arrábida sofreu mais um revés judicial. Desta vez foi o Supremo Tribunal Administrativo que rejeitou um recurso de revista interposto pelos municípios de Setúbal, Sesimbra e Palmela.
Ainda que o advogado dos municípios conteste a interpretação que o Ministério do Ambiente fez desta decisão, o essencial é que, a não ser que haja mudança de Governo e o PSD, o mais provável candidato a ocupar a Presidência do Conselho de Ministros, honre o que tem defendido sobre a matéria, a coincineração na cimenteira da Secil está para ficar e nada a tirará de lá.
Esta é apenas mais uma das que Sócrates – e neste caso é mesmo Sócrates, que, ainda ministro do ambiente, lançou o processo, contra populações e autarquias – fez aos setubalenses. Este é, aliás, um dos mais lamentáveis processos da democracia portuguesa nos últimos vinte anos, um processo em que se impõs às populações e autarquias dos concelhos que partilham o território do PNA a queima de resíduos industriais perigosos, sem que existam as mais absolutas certezas sobre a inocuidade do processo, sobre os potenciais efeitos nocivos que esta queima pode ter na saúde das pessoas.
Percebe-se que a Secil defenda a queima de resíduos e nem sequer se deve condenar, execessivamente, a postura da empresa. Afinal de contas, havendo uma autorização do governo para tal e pareceres científicos, ainda que não sustentados em estudos epidemiológicos de médio e longo prazo, o que poderia impedir a cimenteira de avançar? Já quanto ao Governo, muitos seriam os motivos que o poderiam ter impedido de avançar… Talvez a vontade popular, que se manifestou, expressivamente, desde 2000, quando tudo começou, mas quem, neste Governo, quer saber disso? Talvez a opinião das autarquias sobre a matéria, mas afinal de contas, para quê ouvir a opinião das câmaras municipais, ainda que sejam órgãos de poder eleitos democraticamente e com uma representatividade muito apurada dos eleitorados locais?
O processo da coincineração na Arrábida, instalada num Parque Natural onde o Ministério do Ambiente gastou dezenas de milhares de euros para demolir a casa “ilegal” de um pastor que faz mais pela preservação e limpeza do parque do que as próprias autoridades; instalada onde existe um parque marítimo em que as restrições às actividades humanas atingem o absurdo; instalada numa área protegida onde quem tem casa “legal” nem um ramo de árvore pode cortar sem autorização do PNA, é uma das maiores vergonhas de que há memória em Portugal. José Sócrates, primeiro ministro de Portugal, é o responsável por esta vergonha. Mais uma…
Infelizmente, habituámo-nos há muito a comer e a calar. Por isso, continuaremos a viver paredes meias com a queima de resíduos industriais perigosos. Esperemos que o processo de classificação da Arrábida como Património Natural da Humanidade e a eleição do Portinho como uma das maravilhas de Portugal sejam um primeiro e decisivo passo para alterar esta situação e para que Sócrates “engula” tudo o que nos tem feito.
Para os setubalenses, o Portinho da Arrábida sempre foi uma Maravilha Universal e o seu reconhecimento num concurso televisivo como uma das maravilhas naturais de Portugal é apenas a confirmação do que todos sabíamos há muito.
Com a mediatização das virtudes e belezas da praia e da serra veio, também, o reverso da medalha que é a gestão descuidada deste espaço natural de valor inestimável. Aos nossos olhos surgiu o desleixo das várias entidades que partilham a gestão daquela praia e que permitiram a sua quase total destruição e abandono. Surgiu a deficiente administração do Parque Natural da Arrábida e da Reserva Natural do Estuário do Sado, duas entidades em choque com as missões que lhes estão atribuídas e que manifestamente não são capazes de cumprir.
A atribuição deste prémio ao Portinho da Arrábida pôs a nu a enorme contradição que existe em Portugal entre o discurso ambientalista dos sucessivos governos e a prática que existe no terreno, uma prática de desinvestimento, de desatenção, de permissividade apenas quando interessa, isto num país que decreta rigorosas providências cautelares por causa de meia dúzia de sobreiros que têm de ser abatidos e replantados noutro local para instalar uma empresa que vai criar centenas de postos de trabalho.
O poder da televisão terá, porém, uma enorme vantagem para o Portinho. O aparecimento de todas estas contradições aos olhos do público obrigará os poderes públicos a encontrar soluções para resolver os problemas do Portinho e, mais importante do que isso, lançará, finalmente a discussão séria sobre a preservação de toda a Arrábida e do que ainda lá está a fazer a Secil e enormes explorações de pedra. Esperemos que assim seja…
O território concelhio de Setúbal é ocupado, numa parte bastante significativa, por duas áreas protegidas, a Reserva Natural do Estuário do Sado e o Parque Natural da Arrábida, que impõem um vasto conjunto de restrições a uma série de actividades. Em nome da protecção do ambiente, a construção é bastante limitada, as actividades turísticas são restringidas e a utilização das zonas marítimas é quase interdita. Contudo, a actividade de extracção de matéria prima para a indústria cimenteira e de pedra para a construção e outros fins não só não é interdita, como quase parece ser estimulada, como aqui recordou o Carlos Anjos.
A ideia de constituir duas áreas protegidas na Arrábida e no Sado e o seu posterior desenvolvimento é, sem dúvida, uma mais valia para Setúbal e é de fundamental importância para a protecção da natureza e da biodiversidade. O dever de todos os setubalenses é estimular o reforço destas áreas, protegê-las e divulgá-las. Esta é uma constatação que nem deveria ser necessário apresentar, não fossem as contradições e equívocos em que sucessivos governos se deixaram envolver na gestão destas duas áreas.
A maior contradição é, julgo que ninguém duvida, a existência de uma indústria cimenteira em pleno Parque Natural da Arrábida e de uma série de pedreiras que estão a destruir irremediavelmente a serra, sem que haja capacidade de pôr cobro a este verdadeiro crime ambiental.
Outra contradição, esta com cada vez maior amplitude, é a atroz falta de meios, humanos e materiais, nas duas áreas protegidas. Além da incapacidade de, quer o PNA, quer a RNES, vigiarem e protegerem eficazmente o território que lhes está consignado, por falta de guardas em número suficiente, incapacidade de colocar em funcionamento um sistema de videovigilância da reserva instalado há anos e que não funciona nos moldes previstos, inexistência de viaturas capazes para fazer a vigilância e falta de verbas para pôr em movimento toda a máquina, não se sabe hoje quem é o director do Parque ou o director da Reserva porque o Instituto de Conservação da Natureza e da Biodiversidade foi reestruturado e existem apenas departamentos responsáveis por áreas como a Gestão de Áreas Classificadas ou Gestão de Áreas Húmidas. Este último integra a Reserva Natural do Estuário do Sado e a sede situa-se em Alcochete. O director deste departamento tem a seu cargo, além da RNES, todas as reservas desde Aveiro, a das Dunas de São Jacinto, até ao Algarve, onde está situada a reserva do Sapal de Castro Marim e Vila Real de Santo António. Situação semelhante se passa com o Parque Natural da Arrábida.
Facilmente se conclui que a actual configuração orgânica do ICNB, na qual deixou de haver lugar para directores de cada um dos parques e reservas para passar a existir um único director para uma série de áreas — existindo um caso em que apenas um director dirige todas as áreas húmidas entre Aveiro e o Algarve — não permite uma gestão de proximidade e de reflexos rápidos perante os problemas. Conclui-se, também, que as autoridades locais deixaram de ter interlocutores acessíveis para tratar dos problemas em tempo útil. Perante este quadro de óbvio desinteresse na gestão das áreas protegidas e de desinvestimento é forçoso perguntar para que servem estes parques e reservas (a propósito, vale a pena visitar a sede do Parque Natural da Ria Formosa, onde se paga bilhete para entrar, para perceber o estado de degradação a que se deixou chegar estas áreas protegidas).
A questão assume uma relevância muito particular no caso de Setúbal, onde o PNA continua a “fingir” que não existem pedreiras nem uma cimenteira onde se faz coincineração de resíduos perigosos, mas onde também, muito estranhamente, se dá uma importância desmesurada à casa de um pastor que apenas vive dos rendimentos gerados pela actividade agrícola desenvolvida nos pequenos terrenos que rodeiam a habitação localizada na Aldeia da Piedade.
Outro exemplo da inoperância do Parque encontra-se na praia do Portinho da Arrábida, onde a degradação das estruturas de apoio e do areal gerou um justo movimento de exigência de reposição das condições aceitáveis para uma praia que é candidata a maravilha de Portugal.
O Parque e a Reserva são obviamente de importância crucial para o nosso futuro. Mas é absolutamente legítimo que, perante o quadro em que vivem estas organizações, se questione a sua viabilidade, o que faz com que seja absolutamente necessário que nos expliquem para que é que servem, neste quadro, as áreas protegidas de Setúbal. De outra forma seremos obrigados a concluir aquilo que ninguém quer concluir…
Palavras para quê? Basta ver as imagens publicadas na edição de 04 de Setembro do jornal “Expresso” para se ter uma ideia clara (e chocante) do que representa a actividade de exploração de pedreiras e inertes em diversas zonas da cordilheira e parque natural da Arrábida, nos concelhos de Setúbal e Sesimbra.
As imagens de Luiz Carvalho falam por si. Claro que são preocupantes as construções, algumas clandestinas, que vimos surgir um pouco por todo lado e que – legitimamente – tanto interesse mediático suscitam . Mas, mais preocupante é a dimensão das crateras quando observadas em altitude, pelo impacto brutal que representam numa paisagem dita protegida. Algumas situadas mesmo a poucos metros das arribas.
Claro que estas explorações são legais. E o problema é esse. Mas… como podem ser legais? A criação de um Parque Natural – e o da Arrábida data de 1976, apesar de o seu Plano ser bem mais recente – deveria contribuir para arranjar formas de lidar com problemas justamente desta natureza e dimensão. Com estratégias adequadas e aplicadas paulatinamente ao longo dos anos. Mas pergunte-se: seria diferente se não houvesse Parque Natural? É que a medíocre resposta que o Estado tem conseguido dar ao longo desses anos peca por escassa e causa-nos o horror que as imagens transmitem.
Não será despicienda a questão económica representada pela actividade deste sector: os postos de trabalho, os inertes extraídos, i.e. a riqueza produzida. É por isso que qualquer solução teria (terá) que ser projectada e acordada entre as partes a médio e longo prazo. Soluções que conduzam a um redimensionamento em baixa das explorações, com vista à sua cessação num horizonte temporal contratualizado e definido. Mas também não é isso que vimos. Ainda recentemente (2007), por exemplo, a cimenteira SECIL foi autorizada a aumentar a sua cota de exploração de pedreiras em profundidade ”de 120 para 60 metros na pedreira de calcário e de 100 para 40 metros na pedreira de marga”. Assim não chegamos lá. É completamente contraditório com os tais objectivos proclamados em 1976, em letra de lei, de “proteger os valores geológicos, florísticos, faunísticos e paisagísticos locais” da Arrábida.
Temos que exigir mais de um Parque Natural.
Um dos mais interessantes acontecimentos ocorridos este verão em Setúbal foi a mobilização de algumas centenas de cidadãos para protestar contra a degradação a que se deixou chegar a Praia do Portinho da Arrábida.
O mais interessante deste protesto está no facto de ter nascido de uma iniciativa espontânea, nascida e organizada na Internet, via Facebook, por um cidadão que é, há longos anos, frequentador assíduo da praia. O que começou por ser uma mera página no FB onde se dava conta do descontentamento com o estado a que se deixou chegar a praia, rapidamente se transformou num movimento apoiado por milhares de pessoas descontentes com a forma como é gerido um espaço público reconhecidamente de grande beleza e que é parte de uma candidatura a património mundial da humanidade.
Os media, impressos e electrónicos, descobriram também a página e acabaram por apoiar a ampliação do protesto, dando-lhe espaço em entrevistas radiofónicas e páginas de jornais.
O ponto central do protesto reside no estado de abandono a que as entidades responsáveis pela praia deixaram chegar o espaço. Areal cada vez mais reduzido, escassa limpeza, caminhos de circulação e de emergência inexistentes ou destruídos fazem parte do rol das queixas que apenas podem ter como destinatário as duas entidades com responsabilidades na gestão daquele espaço: Parque Natural da Arrábida e Administração da Região Hidrográfica.
Estas são as duas entidades responsáveis por tudo o que se passa naquele local, a começar na cobrança de taxas e licenças pela ocupação de espaços. É, pois, de esperar, que sejam também estas entidades a ser responsabilizadas por tudo que se passa naquele espaço e que não façam de mortas, como muitas vezes acontece, na esperança que, face à sua inoperância, os protestos se virem, como sempre acaba por acontecer, para o poder que está mais perto das pessoas, que é, obviamente, a Câmara Municipal.
No caso do Portinho, sabe-se há longos meses que o caminho de emergência que liga o Creiro ao Portinho, no qual estão enterradas algumas infraestruturas, foi danificado pelos temporais do inverno passado. A autarquia disponibilizou, sem que tivesse obrigação de o fazer, apoio para realizar os projectos necessários à reparação do caminho, até porque ele é essencial à circulação de viaturas de combate a incêndios e outras viaturas de emergência, naturalmente no pressuposto, mais do que justo, de que as entidades que têm a jurisdição da praia avançassem com as verbas necessárias ao arranjo do caminho. E o que aconteceu nestes meses todos? Nada.
Os dirigentes destas entidades sabem que as populações acabam sempre por responsabilizar as autarquias por tudo o que de errado se passa nos seus territórios e, por isso, certamente, pouco se importam com as reacções populares à sua incapacidade de resolver os problemas. A complexidade das responsabilidades na gestão destas praias não é acessível a qualquer simples mortal e, ainda que devidamente explicadas as atribuições de cada um, haverá sempre quem diga que, enfim, a Câmara Municipal tem o dever de reparar, limpar, construir ou outra coisa qualquer. Mas não pode nem deve ser assim.
Feitas as contas no fim, quem compreenderia que uma autarquia desviasse recursos para resolver problemas que não são da sua lavra, quando, provavelmente, tem outros problemas bem mais graves, e esses sim, da sua lavra, para resolver?
Como seria de esperar, houve quem quisesse empurrar as responsabilidades desta situação para a autarquia. Uns, porque sim; outros porque dá jeito; outros porque têm contas passadas a ajustar. Basta ler a página do “luto pela Arrábida” no FB para perceber isto… A verdade é que assacar essas responsabilidades à Câmara Municipal, que as tem, certamente, noutros casos, que não neste, é um disparate, em especial quando se sabe que nada se pode fazer no PNA e nas respectivas praias sem que o ICNB ou a ARH autorizem.
Terá sido por isto que a presidente da Câmara Municipal de Setúbal participou no protesto e fez muito bem. De uma assentada explicou a quem cabem as responsabilidades na gestão da praia e explicou que a autarquia está disponível para aceitar a gestão destas áreas, na certeza de que fará melhor e que evitará situações como a que se vive no Portinho. Caso não o tivesse feito, uma vez mais os verdadeiros responsáveis pelo estado de degradação a que chegou o Portinho continuariam na obscuridade dos seus gabinetes, confortáveis com a responsabilização de outros pelas suas incapacidades. E neste caso, não restam dúvidas, os responsáveis são o PNA e a ARH e ninguém mais, por muito que alguns queiram daí desviar as atenções…
A cimenteira SECIL consegue em Setúbal uma proeza digna de registo. Se, por um lado, é o maior contribuinte financeiro privado do movimento associativo do concelho; é, por outro, das empresas cuja actividade no Parque Natural da Arrábida maiores preocupações ambientais provoca.
A SECIL acaba de realizar uma “cerimónia de formalização de protocolos de colaboração e financiamento”, como é descrita pelo tri-semanário “O Setubalense”, no montante total de 200 mil euros e envolvendo 86 associações culturais, desportivas e de inclusão social sediadas em Setúbal. A empresa é, assim, o maior mecenas privado do associativismo sadino. Releva-se o seu empenho social e a sua preocupação de abranger um universo alargado de associações. Até porque a generalidade do tecido empresarial setubalense – ou, mais grave, das grandes empresas nacionais que actuam em Setúbal – peca pela ausência. Certamente que as colectividades estarão muito gratas à SECIL.
O processo teve início em 2003, era Carlos Sousa (CDU) Presidente da Câmara Municipal de Setúbal, sendo já o histórico Pedro Queiroz Pereira dirigente máximo da empresa. Câmara e SECIL andaram durante alguns anos de braço dado no apoio ao movimento associativo. O Município, conhecedor do universo associativo, analisava as candidaturas e a SECIL tratava de passar os cheques. A cerimónia era a meias. A partir de 2007 as relações azedaram com o decisão de instalar a queima de resíduos industriais perigosos (co-incineração) nos fornos da fábrica do Outão e o consequente movimento de contestação apoiado pela Câmara de Setúbal. Movimento que segue ainda os seus trâmites nos tribunais. Os caminhos separaram-se e a cimenteira (à semelhança da Cimpor em Souselas) tornou-se o parceiro local para a co-incineração, actividade que se tornou numa lucrativa fonte de receita para a empresa.
A SECIL, aprendido o procedimento e conhecidos os players associativos de Setúbal, tratou de chamar a si a exclusividade de condução de todo o processo. Sem a participação da Câmara Municipal.
A exploração que a SECIL faz na serra da Arrábida é uma actividade ambientalmente agressiva, que está sob escrutínio e que merece a desconfiança de largos sectores da opinião pública local e nacional. Uma actividade iniciada há mais de uma século, apesar de a constituição da SECIL datar de 1930. A empresa sabe que os danos que tem causado no coberto da serra, em pleno Parque Natural – que tem procurado minimizar através de programas de reflorestação – merecem a maior censura.
A estratégia de apoiar o associativismo local, se, admitamos, obedece a uma genuína preocupação de cidadania, procura também minimizar os danos na imagem pública da empresa através de uma acção de marketing político: seduzir (e, porventura, “silenciar”) os dirigentes associativos enquanto líderes comunitários. São sabidas as dificuldades financeiras com que o movimento associativo se confronta – e, assim sendo, a ajuda da SECIL é mais que bem-vinda. Mas, atenção. Não permite esquecer a realidade que lhe está subjacente.
Associando-se à autarquia, num primeiro momento, e posteriormente substituindo-se às incapacidades dos poderes públicos no apoio financeiro ao movimento associativo, a SECIL colocou-se como um parceiro de primeiro plano. Inteligente!
No momento em volta a estar na ordem do dia a demolição de construções ilegais no Parque Natural da Arrábida, vale a pena deixar um dos protagonistas da vida política setubalense do pós-25 de Abril, e que viria mais tarde a ser eleito presidente da Câmara Municipal em dois mandatos consecutivos, contar um interessante episódio ocorrido em pleno PREC, na Praia do Creiro, que envolve, também, aquele que é considerado um dos primeiros ambientalistas portugueses.
Francisco Lobo, na época um dos elementos da Comissão Administrativa que governava a autarquia no período que antecedeu a realização das primeiras eleições autárquicas democráticas, relatou os acontecimentos no livro que publicou em Maio de 2008, intitulado “Histórias de Setúbal – 1974 a 1986”, livro que é um contributo fundamental para conhecer a história recente de Setúbal e a razão de algumas opções políticas da altura.
O episódio relatado pelo antigo presidente da Câmara Municipal tem, naturalmente, um fundo moral aplicável a muitos ambientalistas que importa reter e até transpor para os dias de hoje. E revela também um dos muitos equívocos que foram ocorrendo na Arrábida ao longo das últimas décadas, equívocos que aparecem agora da forma mais crua, com demolições que em nada acrescentam à protecção da natureza e de um parque natural que não pode ter uma casa de um pastor, mas pode ter ao lado pedreiras e cimenteiras que esventram todos os dias o nosso mais precioso património natural.
Aqui fica a história, contada na primeira pessoa por Francisco Lobo.
Num dos últimos meses de 1975 recebi um telefonema, em casa, pedindo para comparecer numa reunião que se iria realizar, nesse fim-de-semana, na Casa do Povo de Vila Nogueira de Azeitão. A justificação apresentada foi a Arrábida. Lá compareci. Casa cheia. Muitas vozes antes do início da sessão faziam prever uma reunião escaldante. Presente também o Secretário de Estado do Ambiente, arquitecto Ribeiro Telles, com o seu Staff, do qual só tive conhecimento naquele momento.
O objectivo da reunião foi-me sendo esclarecido com o seu desenvolvimento. Assentava na obtenção da autorização para a construção de mais duas dezenas de barracas no sopé da serra, na zona do Creiro, com a justificação de que se destinariam a pessoas altamente interessadas na defesa da Arrábida. Esta defesa teria já sido justificada pela acção de limpeza que levavam a efeito aos fins-de-semana, recolhendo as sujidades que os utentes deixavam espalhadas pela praia, e participando também na vigilância da própria serra. Mercê da sua acção, uma camioneta camarária ia recolher, semanalmente, o lixo que colocavam num contentor junto à estrada, através de um caminho que abriram do Creiro até à via, acção que, naturalmente, deveria ter contado com o apoio dos três restaurantes que se situam na praia. Caminho esse que mais tarde se alargou, permitindo o acesso a carros e a criação de parquea-mentos. Na altura existiam já algumas dezenas de barracas.
Opus-me à pretensão, o que me valeu um forte coro de protestos e de ameaças, e não me livrei de ser molestado fisicamente, embora de forma ligeira. Finalmente interveio o arquitecto Ribeiro Telles, que inicia a sua intervenção dizendo que a Arrábida é uma preciosa jóia nacional – mais do que isso, internacional – que deve ser preservada no seu estado mais natural e que teríamos a obrigação de a transmitir nesse estado aos nossos vindouros. Depois de uma intervenção com este cariz, que durou quase uma hora, na qual defendeu a ausência de electricidade e outras infra-estruturas, termina pela cedência à pretensão apresentada, justificando que a acção dos requerentes contribuía muito não só para a sanidade da praia como para a própria segurança da serra.
Tal desfecho, que teve o aplauso da assistência, caiu-me como se tivesse levado uma forte cacetada. Conhecia Ribeiro Telles já há algum tempo e a ele recorri várias vezes a propósito de pretensões para as quais estava na altura muito sensibilizado. Dessa relação nasceu em mim uma certa admiração pelo homem que me falava em coisas sobre a natureza e a necessidade de a defender, com argumentos que nunca tinha ouvido e que me marcaram profundamente, pelo que a decisão tomada naquela reunião me surpreendeu porque era contrária a tudo aquilo que aprendera nas nossas reuniões. Mas o que mais destroçou a imagem que então criara foram as palavras que, já no final, me dirigiu, dizendo que eu tinha sido a única pessoa com coragem naquela reunião. Acrescentou, como estratégia para anular a decisão, que só iria autorizar a construção das barracas no planalto do Creiro. Como eles pretendiam pô-las no sopé da serra, talvez assim desistissem da ideia, pedindo-me, de seguida, para eu lá ir no fim-de-semana seguinte com os interessados marcar o local onde as barracas deveriam ficar. Aí acabou a nossa relação. Disse-lhe que não ia e virei-lhe as costas. Não foram mais vinte barracas que se construíram na Arrábida, mas sim à volta de 400. Todas no sopé da serra e estendidas pela praia.
Quando já desempenhava o cargo de presidente do município, muitas foram as pressões para que a Câmara procedesse à demolição das barracas, o que sempre recusei, pois entendia que tal obrigação era governamental. A Câmara só interveio na remoção dos Iglos colocados nas praias da Figueirinha e Galapos. As barracas foram removidas, alguns anos mais tarde, num dos mandatos de Mata Cáceres.
A paródia mediática que rodeou a demolição de duas casas ilegais na área do Parque Natural da Arrábida (PNA) vem recordar-nos a ineficácia do Estado e da sociedade portuguesa em lidar com a chamada paisagem protegida. E vem fazer incidir as atenções sobre uma área que, sendo candidata a património mundial, é atravessada por tantas e tão complexas contradições.
Dizem-nos que as habitações têm cerca de 30 anos de construídas. Pergunta: Como se leva tantos anos para demolir o que é ilegal? Outra pergunta: São iguais os casos de primeira habitação e apoio a actividades agrícolas – que parece ser o caso de Florentino Duarte – com outros de 2ª ou terceira residência? E ainda mais outra pergunta, óbvia: São só estes os casos ilegais? Serão 48, segundo avança a edição de hoje do JN.
Mas há uma pergunta mais incómoda. Como é que numa área de paisagem protegida – onde as limitações e os constrangimentos à construção são conhecidos – continuam a laborar unidades industriais (cimenteira SECIL e pedreiras) que têm demolido sistematicamente a serra ao longo de décadas de exploração intensiva, a ponto de provocar consideráveis alterações na própria morfologia dos terrenos e nos cobertos vegetais? E onde, para cúmulo, foi ainda instalado um muito contestado sistema de co-incineração de resíduos industriais perigosos?
A criação do Parque Natural da Arrábida (a sua legislação data de 1976), visando “proteger os valores geológicos, florísticos, faunísticos e paisagísticos locais bem como testemunhos materiais de ordem cultural e histórica” foi o reconhecimento da Arrábida como um valor inestimável que carecia de protecção e planeamento. Mas, passados mais de trinta anos, o balanço não parece ser o melhor. Parte dos problemas dever-se-á à apetência urbanística do seu território e à sua proximidade à Grande Lisboa.
Repare-se em alguns dos constrangimentos e contradições:
1. A desproporção entre as limitações extraordinárias à utilização do espaço por parte dos seus habitantes, e o impacto esmagador da actividade de industrias ambientalmente agressivas que há muito deviam ter sido banidas ou, no mínimo, drasticamente limitadas. Recordemos que, em 2007, a cimenteira SECIL foi autorizada a aumentar a sua cota de exploração de pedreiras em profundidade ”de 120 para 60 metros na pedreira de calcário e de 100 para 40 metros na pedreira de marga”, conforme então informou o Ministério do Ambiente, assim viabilizando a permanência da empresa na serra por umas quantas décadas. A atitude séria seria definir um prazo razoável para a desactivação da exploração.
2. A ineficácia da repressão sobre os factos consumados ao nível do edificado – justificada pelo arrastamento dos casos ao longo de anos na Justiça ou até, por razão mais comezinhas, como terá sido a inexistência de verbas no orçamento do ICNB para demolições (razão adiantada à TV por T.Rosa, Presidente daquele organismo).
3. Há muitos anos que paira um mau estar sobre as condições para construção na área do Parque. Seria útil e ajudaria à boa imagem do parque que se soubesse quantos casos de infracção existem e qual o respectivo ponto da situação. O conhecimento pelo público e a eficácia das demolições teria certamente uma dimensão pedagógica. Até para que não fique instalada a ideia de que apenas ricos poderosos conseguem construir “legalmente”.
4. E a adiada viabilidade turística do Parque? Apesar de todo seu valor intrínseco (praias, paisagem, ambiente natural), a Arrábida está longe de ter uma valência turística forte; faltam infra-estruturas de apoio.
5. Com um pano de fundo de tantas contradições, a Associação de Municípios da Região de Setúbal anunciou recentemente a candidatura da Arrábida a património mundial. Uma candidatura baseada no seu importante património natural e imaterial. Um bom desafio onde não vai ser possível esconder à UNESCO as “nódoas” que caíram no nosso “melhor pano”.
Carlos Vieira de Faria é um sociólogo sobejamente conhecido pelos seus trabalhos sobre Setúbal, a cujo estudo se dedica há mais de trinta anos. Em boa hora entendeu a Câmara sadina convidá-lo para palestrar sobre o futuro de Setúbal, no âmbito das comemorações do 150º aniversário da elevação a cidade.
Vieira de Faria veio relembrar-nos o que já todos sabíamos: a gradual perda de importância de Setúbal no contexto regional e nacional. Perda política e económica mas, se calhar e mais preocupante, perda simbólica.
Todos sabemos que o distrito de Setúbal é uma realidade cada vez mais desconexa – aliás, há mais de uma década que os distritos estão para ser extintos. Os municípios alentejanos do sul do distrito há muito que optaram por se integrar nas estratégias para o litoral alentejano . Os concelhos ribeirinhos do Tejo mantém importantes interacções com Lisboa.
Já havíamos também percebido que o modelo das pré-regiões (NUT’s II) deixou Setúbal na periferia de “região” de Lisboa e Vale do Tejo, fazendo fronteira com o Alentejo, de que faz parte a metade sul do seu (ainda) distrito. Machadada de grande simbolismo e nefastos efeitos, pelo menos até à data, foi a extinção da Região de Turismo da Costa Azul e a delegação da nossa promoção turística numa agência com sede em Santarém.
Mas, voltando a Vieira de Faria, ele veio chamar-nos a atenção para o mapa de Setúbal. E pediu-nos que reparássemos nesse conjunto extraordinário formado pela Arrábida e pelo Sado. E lembrar-nos da histórica ligação com Palmela, com quem Setúbal já constituiu um concelho único. E aí temos uma pequena região formada pelos actuais concelhos de Setúbal, Palmela, Sesimbra a que podem ser associados outros concelhos do arco ribeirinho do Sado – Alcácer do Sal e Grândola. Um conjunto com cerca de 267.000 habitantes…
Não precisamos de muita imaginação para ver sinergias entre estas “terras”, tão próximas e tão historicamente ligadas. Claro que há que ter alguma imaginação para ultrapassar os circuntancialismos político-administrativos actuais, isto é, dificilmente deixaremos de estar integrados na “região” de Lisboa e Vale do Tejo. Mas poderemos avançar para outras formas de relacionamento com os municípios da Arrábida/Sado.
Uma discussão que deve começar a ser feita para reposicionar Setúbal no lugar que merece.