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Música de Páscoa, Madalena aos Pés de Cristo

mantegna

A Páscoa, o mistério da morte e da ressurreição, é o tempo por excelência dos cristãos das várias confissões. Isso reflecte-se na música, com tema celebrado pelas Paixões, Lições das Trevas,. Oratórios, mesmo de forma mais pagã como na Grande Páscoa Russa. Mas a Páscoa também deu origem a nuita outra música com aspectos laterais do mistério central.

Uma dessas músicas é o oratório Madalena aos Pés de Cristo, de Antonio Caldara. O núcleo é a luta entre o Bem, o Amor Celeste, e o Mal, o Amor Terreno, em que um pretende que Madalena continue a trilhar o caminho do pecado e do prazer e o outro, resgatá-la para a virtude e para  luz, renegando o passado.

O texto bíblico é curto, muito seco, insuficiente para um drama. No, entanto, no século XVII, em Veneza foram produzidos vários textos sobre a arrependida penitente Madalena. Foi baseado num desses textos ,de um escritor praticamente desconhecido. Ludovico Fomi, que Bernardo Sandrinelli, autor de vários libretos para Caldara, escreveu Madalena aos Pés de Cristo.

O compositor escreve um magnifico Oratório, em que dá ao basso continuo grande liberdade, sobre o que evoluem um grupo de instrumentos, o orgão,o cravo, o alúde e a teorba, como instrumentos “polifónicos”, e os violinos, violoncelos, viola de gamba e contrabaixos, como instrumentos “melódicos”, se assim se podem classificar, o que dá um grande brilho cromático a este teatro de igreja.

O Oratório inicia-se com os apelos do Amor Terreno para que Maria Madalena, não abandone o caminho do prazer que concede ao corpo o repouso maravilhoso que só a lascívia  induz, mesmo que sejam sedutoras mentiras. Ao que o Amor Celeste contrapõe a necessidade de acordar de todas as ilusões mentirosas, sair das horríveis trevas, abandonar o caminho que conduz ao prece

ipício do inferno. Discutem nesse tom frente a Madalena que começa a vacilar, a ficar dividida. O drama vai-se desenrolando até intervir a virtuosa Marta que lhe aponta o caminho do céu. Adensa-se com a entrada de Cristo e do Fariseu, um a querer ganhar aquela alma pecadora, o outro a incentivá-la a não abandonar o caminho do vício.

No final, como se conhece do texto da bíblia e teria que acontecer, o bem triunfa. Madalena arrepende-se, entrega-se a Cristo. O Amor Terreno abandona a luta derrotado pelo Amor Celeste. Uma história moral, típica destes tempos de Páscoa dedicados a lavar o pecado, muito ornamentada neste belo Oratório.

Nota: Pintura de Mantegna (1431/1506) Lamentação da Morte de Cristo. Na pinturam figuram a Virgem Maria e São João, a figura parcialmente oculta é atribuída a Maria Madalena

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Ravel

Ravel morreu há 77 anos. Compositor que é sobretudo conhecido pelo Boléro, obra a que ironicamente se referia como “a minha obra prima infelizmente vazia de música”, embora não ficasse indiferente às interpretações. É bem conhecido o episódio em que interpelou Toscanini depois de o ouvir reger o Boléro à sua maneira, duas vezes mais rápido e sempre acelerando.

Ravel, que muito cedo se interessou por música, manteve com o Conservatório uma relação particular, entrando e saindo até completar o estudo de composição com Gabriel Fauré. Completou também o curso de piano, mas não foi concertista que se notabilizasse, ao contrário do seu contemporâneo Rachmaninoff. Dizia que o piano era um instrumento pesado para ele, uma frágil figura, muito afectado por várias doenças ao longo da sua vida. A sua obra para piano, a solo, de camera ou concerto é das mais importantes na história da música, em particular da música francesa. Começou por ter uma forte influência de Debussy, mas rapidamente as diferenças entre as suas obras tornaram-se muito significativas. Raízes de música popular da sua terra de origem , o País Basco francês, o orientalismo que conheceu na Exposição Universal de 1889 e que depois explorou, mesmo o jazz, são decisivas na obra de Ravel. Durante os seus quarenta anos de actividade, distingue-se pela subtileza e por um agudo sentido criativo.

As suas relações com os interpretes eram de grande exigência. Além do episódio com Toscanini, também ficou conhecida a sua fúria ao ouvir as ornamentações do pianista austriaco Paul Wittgenstein, a quem tinha sido amputado o braço direito e que lhe tinha encomendado uma obra para a mão esquerda, de que resultou essa obra prima que é o Concerto para a Mão Esquerda. No pólo oposto muito apreciava o modo como Pedro de Freitas Branco sabia ler as suas obras. Considerava mesmo que La Valse, não conheceria melhor maestro.

Ravel escreveu várias obras primas como o quarteto Xerazade, a fantasia lírica, que é uma ópera L‘Enfant e les Sortileges sobre um poema de Colette, poetisa que não apreciava especialmente, a ópera Dafnès e Chloé, os dois Concertos para Piano, as inúmeras peças para piano, algumas quase em formato miniatura, mas que são notáveis como Gaspard la Nuit,, Le Tombeau de Couperin, Minueto sobre um tema de Haydn. Obras orquestrais com Rapsódia Espanhola, Ma Mére l’Oye, Pavana para uma Infanta Defunta As Valsas Nobres e Sentimentais, só para citar algumas obras.

Sobre Ravel, com esse título, Jean Echenoz escreveu um interessantíssimo romance, reportando-se aos seus dez últimos anos de vida. Não um romance em que se descreve esse período de vida de Ravel, mas um romance em que a vida do compositor se enche de vida, de inquietudes, de fantasias, tudo com uma grande humanidade e ternura.

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Jordi Savall, Cultura e Cidadania

manif

Amanhã a Catalunha vai votar se quer ser um Estado Independente. Um novo país independente ou um país estado independente federado com a Espanha, as duas perguntas são :“Quer que a Catalunha seja um Estado?” E, em caso afirmativo, “Quer que esse Estado seja independente?”, ou permaneça com o estatuto actual que, em resultado dessa consulta, tudo aponta não ser igual ao que vigora. As aspirações catalães à independência são muito antigas. Basta lembrar que em 1640, a Espanha confrontrou-se com duas lutas pela independência, Portugal e Catalunha. Não podendo acorrer eficazmente aos dois lados, um no extremo ocidental outro no extremo oriental da península Ibérica, a monarquia espanhola saiu derrotada em Portugal e vitoriosa na Catalunha.

Esta semana esteve em Portugal um catalão que é um dos grandes músicos de sempre, Jordi Savall. Um catalão convicto que vai votar esteja onde estiver como afirmou. Para lá dos concertos, sempre memoráveis, Jordi Savall, falou com a comunicação social. Uma conversa interessantíssima, que deve ser lida.

O seu pensamento sobre a música, sobre a prática da música, composição e interpretação, recusa liminarmente a arte pela arte, afirmando que “quando a música é só estética, acaba-se em Auschwitz”. Está em linha com Walter Benjamin(*) e todos os que defendem a arte em conflito e unidade com a sociedade. A sua autonomia e a sua dependência dos momentos históricos em que se realiza. Jordi Savall afirma a importância da arte e da cultura como valores de cidadania, dando à música um papel central. “A música é que dá sentido ao ser humano”(…) sem a música não nos poderíamos entender, ela dá sentido às palavras”. O contrário dessa música de consumo, internacional nos sentimentos e anglo-saxónica na forma, pronta a usar e a esquecer, que inunda a comunicação social, com relevo para a rádio e a televisão. Sublinha “as músicas populares que são as que melhor definem a história de um povo e as que têm mais emoção”(:..)músicas que sobreviveram ao esquecimento e ajudaram os povos a sobreviver isso é o que lhes dá força e beleza ainda hoje”. Fazem parte da cultura dos povos. Esse saber e saber fazer, de que a arte é parte importante, sempre em luta contra a alienação da democracia espectacular, o totalitarismo mais acabado, um modo de repressão de fachada democrática, que as atira para o esquecimento, as apaga nas estantes das ultra minorias sonoras.

Jordi Savall explicou as razões da recusa em receber o Prémio Nacional da Música, atribuido pelo Ministério da Educação, Cultura e Desporto. A recusa nada teve a ver com a situação que se vive na Catalunha mas com uma razão de fundo que têm tudo a ver com as políticas culturais. “Foi para dizer em voz alta o que sempre disse: Espanha não se preocupa com a música, com os músicos, não trata do seu património musical. Há falta de interesse”, (…)“Quando me atribuíram o prémio fiquei contente. É um prémio bonito, e ainda vem acompanhado por 30 mil euros, mas depois pensei como posso aceitar o prémio de pessoas que durante anos se esqueceram da música?

Uma lição de dignidade e coerência aos que por cá não se importam de receber prémios em silêncio envergonhado ou com discursos ditos civilizados por quem anda a destruir conscientemente a cultura ou a ser seleccionado e condecorado por um Presidente da Republica que foi primeiro ministro de um governo que censurou Saramago e João César Monteiro, que negou a pensão à viúva de Salgueiro Maia e a concedeu a pides/dgs Enfim, cada um é como quem é, a tentação comendadora de ter o brilho de uma medalha ao peito é muita, embora seja uma decisão bem mais fácil, se não apagarem a memória, que a de Jordi Savall. Maria Teresa Horta fê-lo. Alexandra Lucas Coelho, também o fez de outro modo, ao receber o prémio da APE, com discurso contundente.

Regresse-se a Jordi Savall, à música, a Espanha. Assinale-se o referendo catalão, com a forma possível com o enquadramento de uma lei herdada do franquismo. Ouçam o sempre extraordinário e surpreendentre Jordi Savall que, com Montserrat Figueras, fundou os grupos de música antiga La Capella Reial de Catalunya, Le Concert des Nations e Hespèrion XXI, referências no mundo musical.

(*)Fiat ars—pereat mundus, diz o fascismo que, como confessou Marinetti, espera da guerra a satisfação artística da percepçãoi transformada pela técnica. Trata-se vsivelmente da consumação da arte pela arte. A humanidade que antigamente , com Hopmero, foi objecto de contemplação para os deuses olímpicos, tornou-se objecto dfe contemplação de si-própria. A alienação de si próp+ria atingiu o grau que lhe permite viver a sua própria aniquilação como um prazer estético de primeira ordem. È assim a estetização da política praticada pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a poplitização da arte.

A Obra de Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica, Wlater Benjamin, in A Modernidade, Obras Escolhidas de Walter Benjamin, edição e tradução de João Barrento, Assírio e Alvim, 2006

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autarquias, Cultura, Fascismo, Política, Revolução

Quando ouvem falar em cultura, continuam a puxar logo da pistola

Sem título

Aqui, pelas margens do rio Sado, o CDS e os seus dirigentes continuam iguais a si próprios, fieis à herança e às melhores tradições trauliteiras da direita portuguesa.

João Viegas, dirigente do CDS e Deputado à Assembleia da República, à semelhança do Governo que apoia e para o qual a cultura pode muito bem encaixar-se numa qualquer Secretaria de Estado, não tem qualquer pudor em aprovar sucessivos cortes ao financiamento das autarquias locais, em apoiar o Governo que fecha a torneira para toda e qualquer expressão artística e cultural que não seja oca e de elogio ao regime, em aprovar políticas recessivas que conduzem as economias locais à ruína, em defender um Governo que não cumpre a lei das Finanças Locais e, ainda, apontar o dedo às autarquias que vão promovendo algumas iniciativas e investindo em infra-estruturas e na produção e fruição cultural.

Claro está que, no caso em concreto, ficamos sem saber se o problema está no preço pago pelos espectáculos ou nas comemorações do 25 de Abril, estou certo que se fossem concertos mais perto de um 25 de Novembro ou até de um 28 de Maio a indignação não seria tanta.

Repare-se na subtileza e fino humor do ilustre Deputado ao referir-se a um dos maiores e mais conceituados autores/cantores da língua portuguesa como o «camarada Sérgio Godinho», revelando o facciosismo que lhe tolda o pensamento e a demonstrar que é o preconceito político e ideológico que determina a sua intervenção e não qualquer preocupação com os dinheiros do Município.

Compreendo que quem sistematicamente se comporta desta forma perante as mais diferentes realizações artísticas e culturais tenha dificuldades em compreender a obra do Sérgio Godinho ou dos Naifa, mas já é mais estranho não ouvir nem uma palavra sobre os milhares de Setubalenses que na Praça do Bocage ou no Fórum Luísa Todi festejaram Abril e as suas conquistas, nem uma palavra sobre o papel das autarquias, neste caso do Município de Setúbal, na concretização da obrigação constitucional de garantir o acesso à cultura, promovendo a sua democratização, substituindo muitas vezes à Administração Central (apenas mais um comando constitucional com que este Governo tem dificuldade de conviver), nem uma palavra sobre o extenso programa de comemorações da Revolução em Setúbal.

Enfim, nem uma palavra, porque quando ouvem falar de cultura…

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Cultura, Geral, música

O Maior Educador Musical dos Portugueses

ImageJoão de Freitas Branco foi um dos intelectuais que marcaram o séc. XX em Portugal. Filho de Luís de Freitas Branco e sobrinho de Pedro de Freitas Branco, compositor, maestro e músicos de extrema importância no panorama musical português, estudou matemática integrando, depois de se licenciar em Ciências Matemáticas, o grupo de estudos de matemática de Rui Luís Gomes. Paralelamente frequentou e concluiu o curso do Conservatório Nacional de Música, participando em vários recitais. Sendo um bom instrumentista, provavelmente por não alcançar um grau de excepcionalidade que se impunha a si próprio na linhagem de seu pai e tio, músicos de craveira internacional, começou uma carreira de crítico e divulgador da música sinfónica, onde desenvolveu uma actividade paradigmática, ainda hoje não superada. Poderemos mesmo afirmar que será difícil de superar. Tornava acessíveis, fáceis de entender os mais altos conceitos estético-filosóficos. Isto num intelectual que tem obra publicada que, ao nível conceptual, se poderá equiparar a um seu contemporâneo europeu que também dedicou muita da sua obra à música, Theodor Adorno. Os seus programas «O Gosto pela Música», na Emissora Nacional, ensinaram a compreender a música sinfónica durante quase trinta anos. Verdadeiramente inesquecíveis foram as suas intervenções introduzindo a emissão pela RTP, cumprindo verdadeiramente serviço público, da tetralogia de Wagner, «O Ouro do Reno». Mesmo os mais conhecedores dessa saga operática, descobriram o que julgavam conhecer. A música, a estética e a filosofia imanentes da obra de Wagner foram analisadas com uma linguagem simples que não traiu a profundidade da obra. Essa era uma rara qualidade de João de Freitas Branco que, com a sua inconfundível voz, tornava claros e evidentes os conceitos mais complexos.

Atreva-se uma hipótese. Isso só era possível pela sua formação matemática que se cruzava com o seu profundo conhecimento da música, da filosofia e da estética. João Freitas Branco desmente Platão que, depois de reconhecer a incoercível influência da poesia sobre alma, exclui os poetas da república, por considerar o pensamento um logos e uma lei que tem por seu ponto principal a matemática, enquanto processo explícito do pensamento, uma língua de transparência em oposição à obscuridade da poesia. Substitua-se poesia por música, linguagem poética ainda mais hermética e perceba-se como João de Freitas Branco, matemático e músico, faz convergir esses dois pensamentos. Para ele a música, como a poesia, têm um programa de pensamento, são uma antecipação poderosa, em função de um som que dentro do outro som, geram um processo singular que tende para o infinito, para desvendar o futuro.

Platão bania o poema (a música) porque supunha que o pensamento poético (musical) como algo que não podia ser pensamento do pensamento útil. João de Freitas Branco ensina-nos que devemos ouvir e sentir a música que contém em si a singularidade de um pensamento pelo pensamento desse pensamento. De forma exemplar consegue expor a música, toda a história da música como um destino de todos nós. Foi isso que durante toda a sua vida nos ensinou, nos programas radiofónicos e televisivos. Foi por isso que quando, de 1970 a 1974, assumiu o cargo de director do Teatro São Carlos um enorme salto qualitativo foi dado, colocando a programação operática do São Carlos na primeira linha dos seus congéneres estrangeiros com um orçamento muito mais limitado. Foi também por isso que foi, em 1948, um dos fundadores da Juventude Musical Portuguesa, que rompeu com os estereótipos academizantes impostos pelo Estado Novo, trazendo uma lufada de modernidade à vida intelectual e musical portuguesa.

Homem de esquerda que nunca pactuou com socialismos na gaveta, amigo desse militar revolucionário que foi Vasco Gonçalves, João de Freitas Branco, entre 1974 e 1975 foi Director-Geral dos Assuntos Culturais e Secretário de Estado da Cultura e Educação Permanente. Em 1985 regressou ao Teatro Nacional de São Carlos como Administrador-Director Artístico e da Produção.

A intensa actividade intelectual que muito o notabilizou, de que são testemunho inúmeros prefácios de livros, livros e artigos em vários meios da comunicação social que continuam a ser de referência, os cursos de História da Música que regeu em Portugal e no estrangeiro, coexistia com uma imensa paixão pelo futebol tanto como espectador como praticante, sabendo-se que até ao fim da sua vida não dispensou a audição dos relatos radifónicos e pelo meio rural que o fez, já na fase final da sua vida, a estabelecer-se em Caxias.

Entre as numerosas distinções com que foi agraciado destaca-se o título de Doutor Honoris Causa em Filosofia pela Universidade Humboldt de Berlim a Medalha de Mérito da Secretaria de Estado da Cultura. Se fosse vivo, faria este ano 90 anos.

Como escreveu, Jorge Calado, melómano bem conhecido nos meios musicais nacionais, «João de Freitas Branco foi sem dúvida o grande educador musical dos portugueses»

 

(publicado no jornal Avante! de 13 de Dezembro de 2010)

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Geral

Celebremos Fernando Lopes-Graça

Hoje, há 105 anos, nasceu em Tomar um dos maiores génios musicais portugueses: Fernando Lopes-Graça.

Compositor, músico, pedagogo, investigador, musicólogo, crítico musical é
um dos maiores intelectuais nacionais.

Um génio que sempre assumiu orgulhosamente a sua condição de português e comunista.
Não deixemos que esta data marcante na história de Portugal, da cultura, da música e do pensamento musical fique em branco.

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Geral

O FADO

Depois do flamenco e do tango o FADO é agora património imaterial da humanidade. Nada mais justo. Será de valorizar quatro nomes que estiveram na primeira linha dessa luta.: Carlos do Carmo, Mariza, Sara Pereira, directora do Museu do Fado e Rui Vieira Nery. Dois cantores incontornáveis, a dedicada e competente directora do Museu do Fado, um musicólogo que, entre muitos outros trabalhos relevantes, tem traçado, com o rigor e o conhecimento sempre presentes nas suas invertigações, a história do fado. Para celebrar esse sucesso escolhemos quatro fadistas de quatro gerações diferentes: Alfredo Marceneiro, Amália Rodrigues, Carlos do Carmo e Camané, este num cena do filme “Fados” de Carlos Saura.

Nas músicas e nas letras dois nomes que deram um contributo decisivo para a evolução do fado. Alain Oulman, que recorrendo, a grandes poetas portugueses, marcou uma viragem na música do fado e na carreira, já então excepcional, de Amália Rodrigues, provocando uma alteração tão grande que os músicos acompanhantes da fadista comentavam jocosamente, quando iam tocar um desses fados, “agora vamos tocar as óperas”. O outro nome é o de Ary dos Santos que recupera continuadamente o valor poético para as palavras do fado que, na altura, se arrastavam pelos mais planos e desinteressantes textos.

Não encontrámos um dos fados de Alfredo Marceneiro que queríamos inserir e desmentem o marialvismo que, vulgarmente, se cola ao fado. Nem sempre, mesmo nos fados mais tradicionais é assim. Querem verso mais anti-machista que “ na vida de uma mulher há sempre um homem qualquer”? O fado hoje é nosso e de todo o mundo.

ALFREDO MARCENEIRO

AMÁLIA RODRIGUES

CARLOS DO CARMO

CAMANÉ

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Geral

Música no Dia de Todos os Santos

No Dia de Todos os Santos, esta música em que os crentes se deslumbram perdendo o horizonte da fé e os não crentes, como eu, encontram o sublime prazer da música sem atender o objectivo com que foi produzida. A magnificencia perfeita desta missa de Ockeghem comprova que a arte desconhece o progresso. A música ( ou a pintura ou a literatura) que séculos depois foi genialmente escrita não torna obsoleta a que lhe é anterior.

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Cultura

Jacques Brel – 8


A morte é tema obsessivo em Jacques Brel. Está presente em todos os seus discos. A morte é para Brel o lugar-comum das nossas derrotas, o fim obrigatório de tudo, sobretudo da amizade. Para lá da morte não há nada, ó buraco negro que traga tudo mesmo a amizade. Continuar a ler

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Cultura

Jacques Brel – 7


A sul de qualquer norte, Jacques Brel corre atrás dos sonhos É Jacky que em Knokke lê Zoute  canta para mulheres fatais / com voz de acordeão / em argentino de carcassone para melhor exibir a virilidade a gajas fáceis, maquilhadas como árvores de natal / e cantará em cada noite as canções do tempo em que se chamava Jacky // que tinha os seus dias de ilusão julgando-se governador de Macau/ rodeado de lânguidas mulheres e traficando ópio / ou até ser considerado mestre cantor cantando as suas canções a caminho do paraíso para mulheres com asas brancas lamentando o tempo que viveu na terra e ficar no céu entre Deus Pai e Deus Filho a engendrar um paraíso onde os anjos, os santos e o diabo lhe cantarão a sua canção a canção do tempo em que se chamava Jacky em que tinha a sua hora da sorte, uma hora que só acontece algumas vezes e que afinal é a hora em que chega a sua vez de ser parvo.

É uma canção sempre a correr atrás das ilusões mesmo que só durem uma hora o tempo suficiente para Brel se encontrar, criticando o mundo da canção de variedades, uma certa de forma de estar na vida e as miragens que afinal tanto se plantam neste como no outro mundo.

JACKY

 

 

 

 

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Cultura

Jacques Brel – 6

 

Brel particulariza a crítica à burguesia salientando alguns dos seus espécimes. São as beatas que preservam a virtude defendendo-se do pecado e que envelhecem tão mais rapidamente quanto mais confundem o amor e a água benta. Exibem com tal convicção o seu fervor religioso que até o diabo se castra de raiva e deus perde a fé

LÊS BIGOTTES

As grandes famílias, os emblemas dos valores burgueses, são radiografadas sem complacências e Brel atinge um clímax de causticidade em Grand-Mére. A história de um triângulo constituído pelo Senhor, pela Senhora e pela criada é o pretexto para por a nu toda a hipocrisia das relações burguesas. Enquanto a senhora faz prosperar os negócios manipulando e corrompendo políticos e militares e tranquiliza a consciência pela prática da caridade, o Senhor, lamentando que esses espectáculos não promovam os valores sociais e espirituais na criada, persegue-a enganando a senhora. Ao fim de semana, quando os negócios da senhora entram de férias o senhor arrasta-se choramingando o remorso pelos quatro cantos da casa, é a vez de a senhora enganar o senhor com a criada, explicando-lhe que os homens são todos uns comediantes. Continuar a ler

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Cultura

Jacques Brel – 5

O amor em falência. As mulheres amadas que não chegam ou quando chegam o abandonam ou tornam a vida num inferno. A solidão que cresce à sua volta plantando desertos, torna Brel nostálgico das infâncias que correm atrás de improváveis faroestes, fora disso é a decadência que assume romanticamente. Exibe as frustrações, consente solidariedades fáceis dos que perseguem paraísos artificiais.

São os filhos da noite que se deitam com os primeiros alvores do dia e se levantam à hora das matinas. Elas com a arrogância de exibirem uns seios firmes e belos, eles com a segurança em que se advinha que os papás foram uns felizardos. Eles e elas consumindo as noites lavando melancolias que não sujam as mãos, contando poemas que não leram, romances que não escreveram, amores que não viveram, verdades que não servem para nada. O amor indispõe-os por isso consomem a noite bebendo o último uísque, dizendo a última palavra brilhante, dançando o último tango, vivendo o último desgosto e se principiaram a noite dançando com os olhos pregados nos seios da parceira, acabam-na chorando com os olhos sempre colados ao peito das sócias das noitadas. São os filhos da noite que amanhã terão noite igual a que se seguirá outra igual. Continuar a ler

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Cultura

JACQUES BREL – 4

HOJE, HÁ 33 ANOS, MORREU JACQUES BREL. REGRESSOU DO SEU EXíLIO VOLUNTÁRIO NAS ILHAS MARQUISE. GRAVA UM ÚLTIMO DISCO. MORRE UNS DIAS DEPOIS NUM HOSPITAL EM BOBIGNY. AINDA NÃO TINHA 50 ANOS!

Em Jacques Brel não se encontra uma única canção de amor paixão. Mesmo as que numa primeira audição se aproximam da canção de amor apaixonado como Ne me Quitte pás ou Chanson dês Vieux Amants, quando ouvidas atentamente são na realidade canções quase patéticas que retratam o amor miragem na procura de um absoluto impossível.. Canções patéticas mas belíssimas. Quem não foi, pelo menos uma vez na vida, quem não se sinta capaz de, pelo menos uma vez na vida voltar a ser  l‘ómbre de ton ombre / l’ombtre de ta main / l’ombre de ton chien, não viveu a vertigem do amor,. provavelmente, passou ao lado da vida. Continuar a ler

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Cultura

Jacques Brel – 3

 

 

Marieke é o amor distante que quer reviver e recorda mais pelo envolvimento que pela imagem da paixão. É a única canção de Brel cantada quase integralmente em flamengo, tem um refrão que se altera lentamente, dramatizando a situação do amor impossível até ao completo desespero. Começa por mergulhar na memória “Ai Marieke, Marieke amei-te tanto entre as torres de Bruges e Gand, ai Marieke, Marieke foi há tanto tempo entre as torres de Bruges e Gand”, e viaja pela memória sem que Marieke o ouça, continua a viajar até à última estrofe de delicadíssima angústia: ai, Marieke, Marieke todos os lagos me abrem os braços de Bruges à Gand.

MARIEKE

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Cultura

Jacques Brel – 2

Brel pouco antes de morrer e depois de dez anos de silêncio vem do Pacífico, das ilhas Marquesas, retomando o itinerário de Gaugin, gravar dezoito canções de que ainda hoje só se conhecem doze. É o seu último disco e Brel não o ignora. Todos os seus temas chave: a mulher, os valores burgueses, a hipocrisia, a amizade e a morte revivem noutro tom. A melodia não trai o autor. O texto é depurado pela distância do exílio voluntário. É a última vez que Brel, sem trair a amizade, fala ao mundo do seu mundo, das suas fadigas, das suas ternuras, das suas derrotas dos seus rancores. É a primeira vez que, na sua velhice prematura, não fala da mulher como o carrasco que ostenta os seus artifícios para melhor enredar o homem. Nem compara as mulheres aos cães que oferecem aos homens uma amizade sem contrapartidas e que estes acabam por renegar para se submeter às mulheres.

lES FILLES ET LES CHIENS

No último disco Brel também não fala da mulher como tinha retratado em Lês Biches como o pior e mais belo inimigo dos homens. O seu inimigo de sempre. Primeiro inimigo logo aos 15 anos quando fogem rindo-se pelas planícies de desgosto que provocam. Que continuam a ser o mais belo inimigo quando aos vinte anos, na explosão da flor da idade os enganam com todo o seu corpo, e continuam a ser o pior inimigo quando ultrapassados os vinte anos conhecem o poder de enganar o tédio de um amante com outro amante e desse amante com outro amante enquanto os homens as perseguem enlouquecidos até que elas os caçam com a ponta dos dedos para, no fim da continuaram a ser o último inimigo do homem que nessa altura só lhes serve para lhes iludir o envelhecimento.

LES BICHES

Do pano de fundo traçado em Lês filies et lês Chiens e em Lês Biches, Brel destaca algumas mulheres. Aliás em quase todos os discos de Brel, à excepção do último, há sempre uma mulher zurzida. Matilde é a mulher que fere o homem condenado à maldição do amor. Matilde está de volta e Brel dilacera-se. Recorre aos amigos e à mãe para se proteger: “minha mãe chegou o tempo de rezar pela minha salvação, Matilde voltou. Taberneiro traz-me o vinho hoje irei beber aos meus desgostos , Matilde voltou. Meus amigos não me desamparem esta noite volto para a guerra, Matilde voltou”

Brel luta inutilmente contra a realidade: “ Meu coração pára de palpitar finge que não sabes que a Matilde voltou. Meu coração pára de repetir que ela está mais bela que nunca, lembra-te como ela te despedaçou. Meus amigos não me abandonem digam que não devo voltar a viver com a Matilde que estou a ver à minha frente” .Brel acaba por se submeter à paixão insensata. Corre para Matilde virando as costas a todos a quem tinha pedido desesperadamente apoio. Corre para Matilde sem ilusões sobre o que o espera. “Mãe pára de rezar o teu Jacques volta para o inferno. Amigos não contém mais comigo lixo-me mais uma vez para o céu a minha bela Matilde está aqui”.

MATILDE

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Cultura, Política

Festa do Avante! Grande Gala Ópera 2011

Todos os anos, no princípio de Setembro, a Festa do Avante! marca o calendário político e cultural de Portugal. Excepcionalmente as datas foram outras. É já uma tradição que nunca é rotina. Do ponto de vista musical, foi pioneira dos grandes concertos ao ar livre que hoje vão acontecendo nos festivais de verão. Há uns anos a esta parte, o primeiro grande concerto dos três dias de festa é dedicado à música sinfónica. Milhares de pessoas ouvem, muitas delas o fizeram pela vez, música que exige uma atenção maior, música que apura o ouvido e modela o belo, música cuja fruição amplia a dimensão humana. Para os intérpretes, quando actuam num palco de grandes de dimensões, perante uma plateia de dezenas de milhares de ouvintes, essa também é uma experiência diferente.

Este ano, como em 2009, realizou-se a Grande Gala de Ópera. Cantar várias árias de ópera fora do contexto em que se inscrevem coloca problemas de interpretação que não são despiciendos e o primeiro dos quais é a diferença dos registos musicais e dramáticos a que são obrigados tanto orquestra, como cantores, como coro. Muitas vezes há a tendência para seleccionar sequências de repertórios que destacam as qualidades extra dos interpretes o que, obviamente, estava longe dos propósitos dos co-produtores da 2ª Grande Gala da Ópera, o Ginásio Ópera e o Avante!, que seleccionaram trechos célebres do reportório lírico, de grande exigência técnico-artística. Se alguns são bem conhecidos mesmo dos não iniciados, outros seriam só conhecidos por, e nem todos, os iniciados. Com originalidade intercalaram-se peças corais sinfónicas, que não são ópera e mesmo canções populares, como Granada de Agustin Lara, que, apesar de integrar a música popular espanhola, é de grande exigência para a voz de tenor, como o jovem João Pedro Cabral brilhantemente demonstrou. Bastante menos conhecida mas não de menor importância foi Le Chant du Depart, de Étienne Nicolas Méhul, uma das canções patrióticas da Revolução Francesa que, na época, era tão célebre como a Marselhesa. Continuar a ler

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Cultura

O TANGO DOS TEMPOS MODERNOS

Faz hoje nove anos que morreu Astor Piazzola, o grande renovador do tango. É um dos grandes músicos do século XX. Os seus pais emigraram para os Estados Unidos, Nova Iorque, à procura de melhores condições de vida. Foi aí que nasceu o seu interesse pela música, tem os primeiros contactos com o jazz e os pais oferecem-lhe o primeiro bandeneon. É também aí que tem as suas primeiras lições de piano com Bela Wilde, um pianista húngaro discípulo de Rachmaninov.

Mas é em Paris que a sua vida se irá virar do avesso até se tornar no mais famoso compositor de tangos da segunda metade do século XX. No final dos anos 30, rumou ao Conservatório de Paris para estudar piano e composição. Teve a excepcional sorte de ser discípulo de Nadia Boulanger. Compositora, maestrina, musicóloga, mulher de enorme inteligência e sensibilidade rapidamente se apercebeu das enormes qualidades de Astor Piazzola e da impossibilidade de ele se tornar num compositor e músico de sucesso e relevo no quadro da música sinfónica. Tudo se conjugava para isso não sucedesse, até pela vida a que era obrigado para sobreviver. Astor, antes de ir para as aulas tocava até desoras em bares. Obviamente tocava tangos já com algumas variantes, poucas e tímidas, que os conhecimentos de jazz lhe permitiam. Calcula-se o défice de atenção com que enfrentava as aulas do Conservatório. Nadia Boulanger, conhecedora desses factos, ouvindo-o tocar tangos, incentivou Piazzola a utilizar os conhecimentos adquiridos nas aulas para renovar o tango que estava a repetir retoricamente fórmulas estafadas. Provavelmente com outro professor mais apegado a métodos de ensino mais rígidos e tradicionais, não se teria acendido o rastilho que fez explodir em Astor Piazzola a carga de dinamite que introduziu no tango, inovando-o radicalmente.

Se no principio foi incompreendido e mesmo colocado no índex pelos puristas mais extremados, prosseguiu um caminho que tornou o tango uma linguagem inovadora e universal, dando mesmo novo alento às suas formas mais tradicionais que também se libertaram de serem cópias das cópias, o que é o suicídio das formas de música tradicionais, formatando-as, esclerosando-as.

Com Astor Piazzola o tango ganhou uma nova vida e abriu novos caminhos. Hoje é impossível falar de tango sem falar de Troilo, Gardel e Piazzola,  na linha da frente de talentos que perpetuam esse género musical, do tango tradicional ao tango da modernidade,  em que, no dizer de Cortazar, se inscreve uma serenidade que faz perder a hipótese de regaste. Onde se encontra o equilíbrio precário entre o excesso de sensualidade e o humor triste, que percorre ” todos os registos da sentimentalidade popular desde o rancor irremissível até à alegria do canto pelo canto”.

Tudo isso se reencontra na música inovadora de Piazzola que mergulha nas raízes mais fundas e vitais do tango, libertando-o do provincianismo a que se estava a condenar depois da morte de Gardel, que morreu para mal dele mas para bem para o tango, quando a mão holywoodesca o estava a iniciar nas traições para que a glória cinematográfica empurrava, polindo e descaracterizando a canção “portena” .

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Cultura

MÚSICA e PÁSCOA, Reforma e Contra-Reforma-3

Cristo Crucificado de Salvador Dali

A Reforma procurou rapidamente encontrar reportório musical. Querendo que os seus seguidores participassem e compreendessem a liturgia, assentou esse trabalho em três pilares: o uso da língua comum, uma melodia simples que facilitasse a participação das assembleias, o texto das escrituras.

Numa primeira fase procurou a colaboração de poetas e músicos que pusessem em prática esses princípios que se opunham claramente aos da igreja católica, constituído por assembleias que ouviam textos numa língua estranha, o latim, interpretado por coros em que não intervinham. Havia uma intenção estética, suportada pelos objectivos de ordem sociológica e psicológica de fazer participar todos os fiéis nos actos litúrgicos.

A solução mais próxima foi traduzir as escrituras para os idiomas locais e recorrer a melodias profanas. Nesse primeiro passo, a prioridade era dada á palavra e não à música. Paralelamente a música culta, com o avanço da burguesia, começava a sair das igrejas e dos salões dos nobres para os teatros, para salas mais acessíveis às classes ascendentes. Pouco a pouco o coral luterano vai escrevendo novas melodias em que a inteligibilidade do texto é central, mas em que a música se torna mais elaborada com a participação de solistas e coros. Durante vários séculos esta será a forma mais comum, prolonga-se até Johann Sebastian Bach. Até essa altura estavam compilados mais de cinco mil corais, que o mestre cantor de Leipzig tem á sua disposição. Nascido no seio de uma família de músicos, J.S.Bach é um génio musical que coloca todo o seu enorme talento na música que compõe e que é um dos mais espantosos legados musicais de sempre, pela qualidade e pela extensão. Ao contrário de Palestrina cuja influência foi limitada territorial e temporalmente, J.S.Bach continua a ter uma profunda influência na música e é pedra angular na história da música.

Poderia não ter sido assim. Um pequeno acontecimento poderia ter mudado toda a história da música como a conhecemos, com J.S.Bach genial mas escrever outras músicas que, provavelmente, teriam influência muito diferente da que continuam a ter as obras maiores de Bach.

Em 1733, J.S. Bach escreve a Frederico-Augusto II da Saxónia (…) proponho-me, com uma dedicada submissão e cada vez que Vossa alteza real me fizer a graça de um pedido, executar com um zelo total a composição de música para a igreja e de outras obras para orquestra, consagrando-me com todas as minhas forças ao vosso serviço, testemunhando uma fidelidade eterna e a obediência total de um humilde servidor (…) J.S.Bach desejava mudar de Leipzig para a mais mundana e cosmopolita Dresden. Aproveitava a circunstância do mestre cantor de Dresden, Heinichen, um compositor alemão da escola italiana de Veneza, ter falecido, depois de prolongado período de doença e saber que a sua música era muito apreciada na corte da Saxónia. Se a sua oferta tivesse sido aceite a história da música seria totalmente outra. Augusto, o Forte, pai de Frederico-Augusto II, homem culto e figura proeminente da Reforma e de um novo humanismo, príncipe-eleitor da Saxónia na sequência de herdar o trono da Polónia, país católico e muitíssimo maior que o ducado da Saxónia, converte-se ao catolicismo, com a facilidade de quem muda de camisa, para não abdicar de aumentar enormemente o seu território e o seu poder.

Se o pedido de J.S.Bach tivesse sido aceite não ouviríamos as Paixões, as Cantatas que todos os domingos escrevia para a orquestra e coro da igreja de S. Thomas, nem A Arte da Fuga e a Oferenda Musical. Com a mesma genialidade J.S.Bach escreveria Stabat Matter, Salve Regina, Te Deum, missas totas em vez da Missa em si menor e os Concertos Brandeburgueses seriam substituídos por Concerti per molti instrumenti. Seriam, certamente, obras-primas do barroco… mas a música seria outra coisa, como a música da Reforma seria outra se J.S.Bach não se tivesse cruzado nos caminhos dos protestantes ou tivesse trocado a uma corte protestante por uma corte católica

Para o período da Páscoa J.S.Bach escreveu duas Paixões, segundo S.João e segundo S. Mateus que são obras de uma genialidade transcendente. Extensas, uma tem duas horas de execução a outra ultrapassa as três horas, seguem os trechos bíblicos com grande rigor. Ambas acabam com a morte de Cristo. A ressurreição é excluída.

O enredo é semelhante. O Evangelista vai descrevendo os passos da paixão de Cristo que são cantados pelo coro e solistas. São obras extraordinárias de que seleccionámos algumas árias.

Da Paixão segundo S.João, a primeira a ser escrita tem uma densidade dramática mais intensa. ouça-se “Es ist Volbracht-Tudo está consumado”

Um solo de violoncelo antecede um canto desolado que subitamente é atravessado pelos violinos e violas. A ária torna-se esfusiante anunciando a superação da morte por Jesus, para no final a desolação impor-se ainda com maior angustia.

Zurfelesse, mein Henze in fluten der Zahren “Dissolve-se o coração em rios de tristeza” uma das árias mais conhecidas desta paixão e que muitos fazem equivaler ao célebre Erbamme dich, mein Gott da Paixão segundo S. Mateus

O penúltimo coral “Ruhl wohl, ihr heiligen Gebeine” “Descemos, o corpo sagrado” lindíssima e quase naturalista descrição que nos faz seguir a deposição do corpo de Cristo na gruta.

A Paixão segundo S. Mateus, só foi tocada em Leipzig. Ficou desconhecida até Mendelssonhn, em meados do século XIX executar uma sua versão abreviada em Berlim que tornou J.S.Bach universalmente famoso. A sua monumentalidade, as suas numerosas árias líricas, a utilização de um coro duplo, fazem considerar esta Paixão, a Paixão por excelência.

A sua ária mais célebre é “Erbarme dich, mein Gott”,“Tem Piedade, meu Senhor”. Utilizada nos mais diversos contextos o mais conseguido, o que provoca maior emoção será no último filme de Tartokvski, em que as imagens sublinham um grito de alma dilacerada que se repete, apoiada no solo de violino que ornamenta o que retoricamente figura suspiros e lágrimas sobre o movimento diatónico com os outros instrumentos.

A excelência e a modernidade de J.S.Bach são bem perceptíveis nas árias que fecham este texto.

So ist mein Jesus nun gefangen, Levaram-te meu salvador (*)                                            

e Blute nur, du lieber herz, Sangra, querido coração(*) com a introdução pelo Evangelista

(*) nem sempre conseguimos inserir o video pelo que terão que fazer o favor de clicar sobre o link

Arriscamos aconselhar duas interpretações de cada uma das Paixões.
Paixão segundo S.João

-Collegium Bach do Japão, dirigido por Masaaki Suzuki, BIS

– English Baroque Soloists e Coro Monterverdi, dirigidos por Jonh Elliot Gardiner, Archiv-DG
Paixão segundo S. Mateus-

-Collegium Vocale de Gent- direcção Philippe Herreweghe, Harmonia Mundi
-Concentus Musicus Wien e Coros Arnold Schoenberg e Wiener Sangerknaben,Teldec
Em todas os solistas são excepcionais.

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