O edifício dos Paços do Concelho de Setúbal, a mais notável construção edificada na Praça do Bocage, sofreu, nos quase cinco séculos de existência na localização onde ainda hoje se encontra, variadíssimos danos. Os fenómenos da natureza são os principais causadores da degradação do edifício ao longo de centenas de anos, mas a acção humana, como recorda Maria Conceição Quintas na sua Monografia da Freguesia de São Julião, teve também um papel preponderante, em particular na fase mais recente do edifício.
A nova sede do poder concelhio abriu as portas em 1533 com todas as condições necessárias para a administração local do poder real. Mas, passados 276 anos, em 1709, o peso da idade e do uso motivou as primeiras obras de restauro, obras que Conceição Quintas classifica como «elementares, pois que 13 anos mais tarde, em 1722, era urgente a sua reconstrução». O edifício seria reconstruído dois anos depois, «com o auxílio da magra bolsa dos setubalenses», que, orgulhosos do feito, insistiram em aplicar por cima da porta principal uma inscrição onde «lembram aos vindouros esse facto», explica a historiadora.
Esforço inglório, o dos setubalenses, perante a força destrutiva do terramoto de 1755. Mais uma vez os Paços do Concelho precisavam de obras de reconstrução e a vereação de novo local para trabalhar. O forte de Brancanes foi o local escolhido e para aí transitou também o arquivo municipal.
O poder telúrico voltou a manifestar-se em 1858 e foi necessário esperar mais 15 anos para que a sede municipal fosse reerguida.
Nem três anos durou a tranquilidade dos administradores do município. Em 11 de Novembro de 1876, exactamente 121 anos depois do grande terramoto que arrasou Lisboa e Setúbal, fortes temporais fustigaram a
O poder das revoluções no velho edifício fez-se sentir já no século XX, quando os revoltosos republicanos, na tentativa de hastear a bandeira do novo regine no mastro principal dos Paços do Concelho, provocaram um incêndio que apenas deixaria as paredes de pé. Um sinal de que novos tempos começavam sobre as cinzas de um velho regime moribundo…cidade e destruíram as obras que estavam em curso nos Paços.
Para a reconstrução do edifício como hoje o conhecemos, foi necessário esperar mais 29 anos. Em 1939, eram finalmente inaugurados os novos Paços, redesenhados pelo arquitecto Raul Lino, como nos conta a historiadora Maria Conceição Quintas nos excertos que aqui se publicam da sua «Monografia de São Julião».
No século XV o «Paço» que o conselho mandara fazer, para vereação e audiências, situava-se na Praça do Castelo ou da Ribeira e era propriedade da Ordem de Santiago em 7 de Abril de 1397 (era de Cristo – 1425). Foi no reinado de D. João e de sua iniciativa a construção do novo Paço. De 1526 a 1533 decorreram as obras de construção dos Paços Municipais num terreiro que depois se chamou Largo da Praça do Sapal e hoje conhecemos como Praça de Bocage. Foi encarregado da obra o pedreiro Gil Fernandes, que construiu o Paço do Trigo, a Casa da Câmara e Audiências e os Açouges. Para o efeito procedeu-se ao alargamento da dita Praça do Sapal para que um espaço mais amplo e moderno surgisse ali.
O Regimento que autoriza estes trabalhos é ditado de Almeirim a 31 de Janeiro de 1526, e reza assim: «Braz Dias e Fernão de Reboreda esta é a maneira que vos mando que tenhais na obra da praça nova, que ora mando fazer na Vila de Setúbal e das Casas da Câmara, Paço do Trigo, Açougue e Cadeia que na dita vila se há-de fazer e que encarrego a vós Brás Dias devedor e recebedor e que vós Fernão de Reboreda de escrivão. E para que saibais o modo em que a obra se há-de fazer, os dinheiros que nela se hão-de gastar donde vos serão dados, e as casas que serão derribadas vo-lo aqui declaro.» (…)
Em 1526 começaram então a ser demolidas as casas para o alargamento do largo e construção e construção do edifício dos Paços do Concelho.
O projecto de dois pisos compreenderia: no rés-do-chão o «Paço do Trigo e Açougue, a cadeia e outras casas e compartimentos, e no superior a Casa da Câmara e das audiências judiciais e outras casas para diversas repartições».
As obras foram contratadas entre Bartolomeu de Paiva, «amo e do Conselho D’El-Rei e do seu Conselho e a Gil Fernandes, mestre pedreiro que residia em Lisboa, segundo os débitos que daí haviam sido feitos e assinados por ambos». (…)
Ao longo dos anos Setúbal sofreu muitos danos, com perdas de vidas e haveres motivados por terramotos, tempestades e pestes.(…)
No início do século XVIII os Paços do Concelho estavam muito arruinados.
Devido aos vários terramotos e por acção do tempo (eram passados 267 anos desde o distante ano de 1533 em que se acabaram as obras dos Paços do Concelho) era urgente que se procedesse à sua reconstrução, porque estavam muito necessitados de reparações.
Então, em 1709, por alvará régio de 26 de Setembro, a Câmara foi autorizada a gastar na reedificação do Paço Municipal 460$000 réis dos sobejos do usual, com encargo também de consertar os aquedutos.
O trágico incêndio – 1910
Mais uma provação havia de atingir os Paços do Concelho. Um incêndio devorador destruiu o edifício e com ele toda a documentação e obras de arte – tudo foi consumido pelas chamas na noite de quatro para cinco de Outubro de 1910.
À Praça do Bocage confluiu, nessa noite, uma enorme multidão que se manifestava alegre, dando vivas à República e aos seus líderes.
A polícia, sedeada no rés-do-chão do edifício camarário, estava de prevenção.
Para melhor avaliarmos os factos recorramos à acta da segunda reunião do executivo depois dos acontecimentos dramáticos daquela noite, na altura em que o setubalense Paulino de Oliveira pedia a palavra para lamentar o acontecido. Começou por felicitar a Comissão Administrativa e congratulou-se por ver, enfim, implantada a República no seu País.
«Passou depois a apreciar os acontecimentos que se deram n’esta cidade, lamentando profundamente que os Paços do Concelho tivessem sido destruídos pelo incêndio, nada se aproveitando das belas obras de arte que ali existiam como a sala nobre das sessões, nem das preciosas colecções da Biblioteca Municipal tão trabalhosa e carinhosamente reunidas; acrescenta que a dois factos principais talvez se possa atribuir um acto, que a justificá-lo só pode ter sido a profunda má vontade do povo setubalense à polícia cruel, cuja esquadra se encontrava no mesmo edifício, pelas perseguições extremas que sobre ele exercia; primeiro, essa mesma polícia que recebeu a tiros os manifestantes que pretendiam içar a bandeira republicana nos Paços do Concelho; segundo, ao abandono em que os dirigentes deixaram esses mesmos manifestantes, não indo ter com eles fazendo-lhes ver as consequências do acto que iam praticar, o que isso faria se aqui estivesse nessa situação (…) Usa depois da palavra (…) Joaquim Brandão, que sente como o cidadão Paulino de Oliveira a perda dos Paços do Concelho, com todas as sjuas preciosidades e expõe, que, se tal facto se deu, não foi porque da parte do partido republicano nesta cidade não se fizessem todos os esforços possíveis para o evitar, com é público e notório, mas que a efervescência popular, excitada ao máximo pela atitude agressiva do chefe da polícia de quem o povo tinha grandes agravos, foi até à destruição pelo fogo da esquadra onde a polícia estava, sem se lembrar, porque essa não era decerto a sua intenção, de que atrás da esquadra arderia o edifício todo.»
Mais adiante o vogal da Comissão Administrativa, o cidadão José Rocha, tomou a palavra:
«Confirmando as declarações do seu colega vice-presidente, propõe que na acta dessa sessão se consigne um voto de vivo reconhecimento a todos aqueles que se puseram ao lado dos republicanos fazendo o policiamento da cidade, evitando-se assim outros atentados como o que, segundo lhe consta, estava projectado contra a capela do Corpo Santo.»
(…)
No final do ano de 1938 as obras de reconstrução dos Paços do Concelho chegaram ao seu termo.
A Comissão Administrativa, em reunião de 8 de Setembro, dá conhecimento de um ofício da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais em que se informava que por despacho do Ministro das Obras Públicas e Comunicações se dignara comunicar que a entrega do edifício dos Paços do Concelho só poderá ser feira depois de concluídos todos os trabalhos.
No entanto, só a 4 de Maio de 1939 o Estado faz a entrega do edifício, conforme se lê na acta da sessão desse dia. (…)
Defronte das oito arcadas dos Paços do Concelho foi inscrita numa placa a legenda: EDIFÍCO RECONSTRUÍDO PELO ESTADO NOVO – 1933-1938.
Também se podiam ler na própria calçada as seguintes frases a recordar factos importantes da história de Setúbal:
– MUITO NOTÁVEL VILA AOS 16 DE SETEMBRO DE 1525
– CIDADE AOS 19 DE AGOSTO DE 1860
– CAPITAL DE DISTRITO AOS 22 DE DEZEMBRO DE 1926
Terminadas as obras houve depois que mobilar todas as salas e transferir os serviços que estavam sedeados no Liceu Bocage desde 1910 para que toda a vida do município pudesse prosseguir na sua legítima sede já construída de raiz.
O arquitecto dos Paços do Concelho – Raul Lino
Nasceu em Lisboa a 21 de Novembro de 1897 e faleceu a 13 de Julho de 1974. Estudou arquitectura na Alemanha.
Em Portugal desempenhou os cargos oficiais de Chefe de Repartição de Estudos e Obras de Monumentos do Ministério das Obras Públicas e Superintendente dos Palácios Nacionais.
Muitas das obras que assinou revelam concepções da arquitectura tradicional portuguesa.
Entre as obras mais importantes que publicou referem-se: A Casa Portuguesa, A Nossa Casa, Casas Portuguesas, Auriverde Jornada, Quatro Palavras.
Foi colaborador de vários jornais e revistas, entre eles: Diário de Notícias, Diário Popular, Diário de Lisboa, Panorama, Atlântida, etc.
Foi membro fundados da Academia Nacional de Belas Artes e seu secretário.
Na sua profissão respeitou sempre a tradição portuguesa, tanto nos edifícios urbanos como nos rústicos.
Entre as suas obras arquitectónicas destacam-se: Solar dos Patudos, em Alpiarça, Cinema Tivoli, em Lisboa, Casa de Ribeiro Ferreira, em Lisboa, remodelação do parque e edifício do Bom Jesus do Monte, em Braga, arranjos arquitectónicos no Jardim Zoológico, de Lisboa, idem na Casa dos Ciprestes, em Sintra.
A Casa da Comenda, em Setúbal, é obra de Raul Lino.
Em 1927 veio a Setúbal, a solicitação da Câmara Municipal, para se informar do estado em que se encontrava o edifício dos Paços do Concelho. Foi então encarregado de elaborar o projecto da sua reconstrução [pelo qual cobrou dez mil escudos].
Veio várias vezes a Setúbal, tendo entregado o projecto em Junho de 1928. (…)
À data da morte era presidente da Academia Nacional de Belas Artes.
In Quintas, Maria Conceição, Monografia de São Julião – Setúbal, edição da Junta de Freguesia de São Julião, 1993
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