Nos nossos dias, a desregulação económica neoliberal constrange a produção estética a integrar-se na produção geral dos bens de consumo, com a frenética urgência da fabricação de aparentes novidades. Essas exigências económicas têm reconhecimento institucional de todo o género. Tudo é permitido porque tudo é cinicamente aceite por uma burguesia entediada pelo seu próprio tédio. Essa cultura global tem o seu principal centro difusor nos Estados Unidos, é aceite e seguida pela União Europeia, corresponde a uma dominação económica e militar sobre uma sociedade em que os ricos são cada vez menos e estão cada vez mais ricos, que é imposta com tudo o que deveria ser contrário à cultura, guerra, medo, sangue, tortura, mentira, que se plasma nos produtos culturais e é difundida pelos meios de comunicação social em todo o mundo, para se tornar banal. Supremacia, política, económica, cultural sustentada por um cosmopolitismo que celebra uma prosperidade de alguns, resultante de formas de governação e concorrência impostas pelos seus principais braços armados económico-financeiros: FMI, Banco Mundial, BCE, OMC ao serviço dos megapólos financeiros, eufemisticamente denominados por “mercados”. Na cultura, nas artes a ideia central é ocupar o conceito de arte e cultura pelo seu valor material. É o triunfo do mercador de Brecht “ não sei o que é o arroz, nunca vi o arroz, do arroz só conheço o preço”.
Em Portugal tudo se agrava porque se cumprem os ditames dessa cartilha com incompetência, ignorância, estupidez. Exemplo próximo é o episódio das obras de Miró, em que à demagogia do PSD-CDS se contrapõe a demagogia do PS. Em que o primeiro-ministro, com o pelouro da cultura, mete os pés pelas mãos ao dizer que o Estado teria que comprar obras que pertencem ao Estado e o secretário de estado da cultura lavra um despacho em que autoriza a exportação das obras quando elas já estavam em Londres. Gente sem escrúpulos, com a ganância do lucro que olha para tudo como se fossem empresas. Em o que o interessa é o valor material das coisas. Para quem a ilegalidade é irrelevante. Governo de gente digna de Al Capone que, oito dias antes de ser preso, afirmava numa entrevista: “Hoje, as pessoas já não respeitam nada. Dantes punham-se num pedestal a virtude, a honra, a verdade e a corrupção campeiam nos nossos dias. Onde não se obedece a outra lei, a corrupção é a única lei. A corrupção está a minar o país. A virtude, a honra e a lei esfumaram-se das nossas vidas”. (*) Gente doblez que reduziu em mais de 75% o orçamento da cultura desde o pirótécnico ministro Carrilho, até aos irrelevantes 0,1% o OE actuais. Rumo que vinha de longe. Que se agravou desmedidamente com o governo PSD-CDS.
Destroem-se os alicerces da cultura, desmantelando as suas já frágeis estruturas, retirando-lhes meios humanos, materiais e técnicos, pervertendo os fundamentos de um serviço público. O princípio é que a empresa privada é sempre melhor que uma empresa pública. Nessa óptica o sistema público da cultura, arte, museus, monumentos, será melhor administrado se o for por empresários conhecedores do valor de mercado, transformando a cultura numa mercadoria, explorando esse nicho de mercado. Por cá, já temos um empresário de eventos musicais a fazer parcerias com Institutos Públicos. Já se concretizou a privatização dos palácios de Queluz e Sintra para a Parques Sintra-Monte da Lua, SA. Um modelo que está em marcha para ser aplicado em Belém com o novo Museu dos Coches e o antigo for transformado em picadeiro. Com esses golpes o Estado prescinde de receitas para as drenar para os privados. No caso do Monte da Lua quase dois milhões de euros/ano. Nos museus o referido empresário dita os preços de bilheteira a um Estado que, à pala da austeridade, acaba com as entradas gratuitas nos museus mas mantém-os em Serralves, uma Fundação público-privada onde um visitante custa aos contribuintes quase mais quatro vezes que um visitante do Museu de Arte Antiga, ou que autoriza que as entradas sejam sempre gratuitas para ver a colecção Berardo, que não paga nada usa os recursos instalados para estar instalada no CCB. Estado que usa as privatizações para favorecer a apropriação privada dos bens públicos, em linha com a feroz ideologia dos mercados. Agora, esses decisores, em vários tons e sons, nos jornais da finança internacional, proclamam que “se deve privatizar edifícios, terrenos, monumentos, recursos naturais que são um enorme valor à espera de ser desbloqueado”(**). O que resta da cultura e das artes está a ser triturado nessa engrenagem de ganância, de usura.
Com a usura homem algum terá casa de boa pedra
cada bloco talhado em polidez
e bem ajustado
para que o esboço envolva suas faces,
com usura
homem algum terá paraíso pintado na parede da sua igreja
herpes et lux
ou onde a virgem receba a mensagem
e um halo projecta-se do inciso,
com usura
homem algum vê Gonzaga seus herdeiros e concubinas
pintura alguma é feita pra ficar
nem pra com ela conviver
só é feita a fim de vender
e vender depressa
com a usura, pecado contra a natureza,
sempre teu pão será rançosas côdeas
o teu pão será de papel seco,
sem trigo da montanha, sem farinha forte
com usura uma linha cresce turva
com a usura não há clara demarcação
e homem algum encontra sua casa
O talhador não talha a sua pedra
o tecelão não vê o seu tear
COM USURA
não vai a lã até `feira
os carneiros não dá ganho com usura
a usura é uma peste, usura
torna romba a agulha nas mãos da virgem
E só pára a perícia de quem fia. Pietro Lombardo
não veio via usura
Duccio não veio via usura
Nem Piero della Francesca, Zuan Bellini não pela usura
nem foi pintada «La Calumnia» assim.
Fra Angelico não veio via usura; nem Ambrogio Praedis
Não veio igreja de pedra talhada
Com a incisão: Adamo me fecit
Nem via usura Santo Trófimo
Nem via usura Santo Hilário,
A usura oxida o cinzel
Ela enferruja o ofício e o artesão
Ela corrói o fio no tear
Ninguém aprende a tecer ouro em seu modelo;
O azul é necrosado pela usura,
não se borda o carmesim
A esmeralda não encontra o seu Memling
A usura mata o filho nas entranhas
Impede o jovem de cortejar
Levou paralisia ao leito, deita-se
entre a jovem noiva e seu noivo
CONTRA NATURAM
Trouxeram meretrizes para Eléusis
Cadáveres dispostos no banquete
às ordens da usura(***)
A defesa da cultura é uma luta política patriótica e de esquerda. Uma luta por uma cultura que preserva e aprofunda a identidade nacional, que defende o que existe e o que fica impedido de existir com as políticas de austeridade. Que defende os criadores culturais e artísticos e a fruição cultural regular com a consequência óbvia de ampliar públicos, originar uma maior capacidade crítica, tanto quantitativa como qualitativa, aumentar os padrões de exigência – tanto de produtores como de consumidores. De contrariar os efeitos nefastos da generalizada oferta de entretenimento que não exige reflexão, nem sintoniza sentimentos, que se afunda num degradado gosto homogeneizado e acéfalo que atira para a fornalha da iliteracia global um número crescente de pessoas que, por via da exclusão cultural, ficam cada vez mais incapacitadas e afastadas da possibilidade de possuírem ferramentas para exercerem os seus direitos de cidadania.
É urgente, tanto em Portugal como na União Europeia, por fim a essa política de desastre. É urgente lutar por uma política cultural para transformar a vida, apoiada num verdadeiro serviço público, da política cultural à comunicação social, inscrita na luta pela emancipação do homem e do trabalho.
Em defesa da língua portuguesa da língua de Camões esta mensagem não adopta o
“Acordo Ortográfico” de 1990, devido a este ser inconstitucional, linguisticamente inconsistente, estruturalmente incongruente, para além de, comprovadamente, ser causa de crescente iliteracia em publicações oficiais e privadas, na imprensa e na opulação em geral.
(*)Entrevista a Al Capone feita pelo jornalista Cornelius Vanderbilt Junior, publicada na revista Liberty, 17 Outubro de 1931
(**)Editorial do Economist, com o título “The $9 Trilion Sale”, 17 de Janeiro 2014
(***)Canto XLV, in CANTOS, Erza Pound, tradução José Lino Grunewald, Assírio e Alvim, Novembro 2005
Entre a academia do contemporâneo e a bordelização do património se define um novo paradigma cultural que é sobretudo uma contrarevolução do espectaculo e pelo espectáculo onde o unico valor, embora por vezes bem escondido é este $.
Infelizmente este mal não é só nacional ele é cada vez mais mundial.
José Luis Porfírio
GostarGostar
Reblogged this on O Retiro do Sossego.
GostarGostar