Com a devida autorização do autor, aqui fica um artigo do médico setubalense José Poças sobre a forma como muitos profissionais de saúde vêem hoje o que se está a passar no Serviço Nacional de Saúde.
“… aqueles que tornam impossível a revolução pacífica, tornam inevitável a revolução violenta…” (sic.) John F. Kennedy (1917 – 1963)
“… a Europa ainda não morreu, mas muitos europeus já envergam um luto antecipado … “ Viriato Soromenho Marques (sic), in Visão, 2012/03/01
Alguns dos cidadãos deste País pensarão, no momento presente, que estão apenas a viver um mero pesadelo…
Outros porém, numa tentativa “lógica” de se evadirem de uma realidade que lhes é demasiado penosa para ser consciencializada quotidianamente, procuram abstrair-se dela, ainda que sub-conscientemente, através das mais diversas estratégias, que passam, por exemplo, pela recusa sistemática em tomarem atenção aquilo que a comunicação social ou os políticos lhes vão dizendo, pela retoma obsessiva do consumo de substâncias mais ou menos (i)lícitas, pela persistência compulsiva em manter um padrão consumista que sabem intimamente ser ruinoso, ou pela procura incessante de novos (ou repetitivos) motivos de interesse que os abstraia da crua realidade (futebol, televisão, cinema, religião, etc).
Ainda uns quantos, com uma importância numérica seguramente crescente, incapazes de se contentarem com a mediocridade de um futuro sem futuro, ou impelidos por dificuldades verdadeiramente insuportáveis no seu dia-a-dia, decidem corajosamente embarcar rumo ao desconhecido, deixando para traz família, amigos, vizinhos, colegas de trabalho (ou de infortúnio), haveres, e projectos profissionais (ou frustrações!), à procura de poderem ver os seus mais básicos e legítimos anseios correspondidos numa outra terra, por mais distante que ela seja, tal como o fizeram inúmeras gerações de seus compatriotas ao longo dos muitos séculos de existência desta nossa Nação.
Um outro grupo, contudo, apesar das crescentes dificuldades, recusa-se a desistir de dar o seu melhor contributo à Sociedade, e a deixar de ter (alguma) esperança no (longínquo?) futuro (individual e/ou coletivo), estando, no entanto, fundadamente, cada vez mais descrente nos exemplos e nas capacidades das nossas elites governativas (passadas, presentes, e vindouras?).
Porque …
“… quando já não houver dinheiro para pagar impostos nem dinheiro para tratar dos doentes, estes ideólogos do empobrecimento enriquecedor irão, finalmente, cantar vitória: estão a ver, nós não dizíamos? Agora vamos começar a crescer…” (sic) Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 2012/03/03
Não se vê falar inteiramente verdade. Por exemplo, cada vez há mais cidadãos a não cumprirem integralmente com as posologias dos medicamentos prescritos pelos seus médicos, ou a adquirirem na sua farmácia apenas alguns dos que constam das respectivas receitas, porque, pura e simplesmente, não os conseguem pagar na íntegra, sob pena de deixarem por liquidar outras despesas também fundamentais (alimentação, água, luz, gás, telecomunicações, educação, prestações da casa e do carro, etc).
De igual forma, um número cada vez maior deixa de comparecer às consultas externas (sejam elas de rotina, ou de recurso) porque, compreensivelmente, entendem que há outros compromissos mais imperiosos do que pagar o respetivo transporte ou a correspondente taxa moderadora. Idêntico fenómeno é possível de ser constatado no sector da educação, onde começam a abundar os abandonos (sobretudo entre os alunos do ensino superior), pela incapacidade económica manifesta das suas famílias poderem continuar a abarcar com as despesas inerentes (propinas, alimentação, transportes, alojamento, material didático, etc).
Assiste-se, sistematicamente, ao eterno recurso aos mesmos subterfúgios demagógicos. A título de mero de exemplo, constata-se que se continua a afirmar repetidamente que “… os doentes nunca sairão prejudicados com a reorganização da rede de cuidados que corajosamente se está a implementar … “. Como é que se pode sequer imaginar, por exemplo, as consequências efectivamente muito nefastas decorrentes da hipotética concentração da assistência a todos os doentes com patologia oncológica nos três Institutos de Oncologia e nos três grandes hospitais centrais universitários de Lisboa, Porto e Coimbra como chegou a ser recentemente aventado? Desconhecerão os decisores políticos que o que se gastaria em transportes, e o que se perderia em qualidade de vida para esses doentes, seria verdadeiramente incomensurável, para além do facto, nada despiciendo, que não existe, de todo, capacidade logística ou humana especializada para tal nessas instituições?
Confirma-se a cada passo o anúncio da implementação arrepiante de legislação completamente inexequível e desfasada da realidade. Por exemplo, decretou-se há pouco tempo que “… os hospitais só poderão adquirir medicamentos cujo custo efetivo seja suportável pelo dinheiro existente em tesouraria num prazo de 90 dias…”! A realidade, contudo, é que não só Portugal, mas pela evolução da crise vigente à escala planetária, cada vez menos países conseguirão suportar os custos da inovação tecnológica (sobretudo farmacêutica), pelo que, uma de duas opções se colocará em breve, de uma forma mais ou menos generalizada: Ou deixamos de tratar os doentes conforme o temos feito nos últimos anos (o que representaria um recuo civilizacional inimaginável), ou a dívida às multinacionais crescerá indefinidamente, até que, conforme foi anunciado recentemente, estas começam a recusar o fornecimento de mais medicamentos a crédito, e então …
Perguntar-se-á pois, porque é que o Estado não reactivou já uma central de compras para todos os hospitais públicos, permitindo assim negociar descontos de quantidade que nenhum dos hospitais isoladamente o conseguirá jamais fazer, em vez de pressionar ao limite do absurdo os Administradores Hospitalares e os Diretores de Serviço? E porque não também, como já propus há alguns meses num artigo de semelhante teor publicado na mesma revista, uma indexação dos preços dos medicamentos ainda protegidos por patente, segundo a mesma classe farmacológica e respetiva geração? Não será que estas duas medidas (sérias e transparentes), de entre outras possíveis de imaginar e implementar, poderiam contribuir decisivamente para a ambicionada e necessária sustentabilidade financeira do atual sistema de saúde, em detrimento de cortes “cegos” que só têm prejudicado, de facto, tanto doentes, como profissionais, e mesmo as próprias instituições?
Desconhecerão os governantes que existem hospitais neste momento a recusar a inscrição de novos doentes com certas patologias, e a transferir compulsivamente outros para o hospital da área de residência, cujo único pecado é afinal preferirem (no cumprimento efetivo do espírito e letra da Constituição em vigor) um determinado médico, serviço ou hospital, nuns casos por lógica questão relacionada directamente com a confiança pessoal e/ou institucional, e noutros, para fugir à temida descriminação social associada a determinadas doenças. Será que quererão que voltemos ao que acontecia com os leprosos na longínqua e tenebrosa Idade Média?
Ao contrário ainda do que se propala, a realidade é que cada vez é mais difícil fazer investigação clínica em Portugal. Não só porque as verbas específicas a ela diretamente destinadas são cada vez mais escassas, mas também porque a burocracia inerente ao desencadear dos respetivos processos continua a ser enorme. Existe um número crescente de técnicos superiores altamente especializados que só sobrevivem à conta dos sucessivos projetos que vão sendo apresentados (até quando?), muito tempo para além do que seria suposto pela própria legislação e pela simples decência, após terem terminado os respetivos mestrados ou doutoramentos, mas que, para além disso, desempenham simultaneamente funções que são fulcrais à garantia do funcionamento regular de toda uma rotina estabelecida em muitos desses laboratórios, no claro benefício das populações.
Pior ainda, com a empresarialização dos hospitais públicos e o seu crónico sub-financiamento, cada vez menos amostras são remetidas a certos laboratórios (INSA, CEVDI, IHMT, etc.), quando era precisamente a rotina que permitia canalizar fundos para alguns projetos de investigação, e que os fez granjear um merecido reconhecimento científico generalizado. Tudo isto, contudo, enquanto algumas das análises em que eles são verdadeiramente especializados, passaram a ser realizadas quase sistematicamente em laboratórios institucionais que, compreensivelmente, nunca atingirão os mesmos padrões de experiência e qualidade.
Por último, referiria ainda o verdadeiro e inadmissível desmantelamento progressivo das Carreiras Médicas e do próprio SNS, levado metodicamente a cabo nos últimos anos, de que a premeditada formação excedentária de médicos é apenas um dos seus últimos epifenómenos, mas que em conjunto, começaram já a produzir os efeitos ocultamente desejados por certas hierarquias (púbicas e privadas): O início do desemprego, a abjeta precarização contratual, a perigosa pulverização da actividade clínica por um número exagerado de postos de trabalho, a proposta de salários vexatórios (materializada em cifras que se situam abaixo daquilo que se auferia há quase uma década), a ausência de uma periódica avaliação inter-pares (isenta de pressões burocráticas ou políticas), etc., tal como de resto já o tinham conseguido fazer com os profissionais do sector de Enfermagem.
Mas afinal, quais serão as reais vantagens para a generalidade dos cidadãos, passar a ter que recorrer a profissionais de saúde sem a necessária experiência, física e psiquicamente extenuados, desinseridos de uma salutar hierarquia funcional, sem a realização profissional devida, e sobretudo, legitimamente preocupados em primeira instância com a sua própria sobrevivência económica?
Os exemplos que dei, são pois mais do que suficientes para chamar a atenção a QUEM de DIREITO para uma triste realidade que cada vez mais pesa sobre uma percentagem crescente da população, e que, longe de promover a confiança, a compreensão e a determinação imprescindíveis para se ultrapassar num prazo razoável as inegáveis dificuldades do momento presente, quer pela sua magnitude, quer também pela sua instalação relativamente súbita, está a provocar sentimentos precisamente opostos e contraproducentes: Descrença, intolerância e revolta.
É que, convém ter sempre bem presente, sobretudo quando se tomam decisões importantes sobre a generalidade da Comunidade (em particular, os mais vulneráveis e desprotegidos), que o País já tem (oficialmente…) quase 15% de desempregados, o número dos que subsistem com contratos precários ou apenas os famosos “recibos verdes” colocam-nos na vergonhosa liderança da Europa Comunitária, a emigração aumenta progressivamente, e ao contrário da que se verificou em algumas décadas do século passado, não abrange somente os trabalhadores sem qualificações específicas, mas abarca cada vez mais, também, a nossa elite intelectual e científica, e mesmo um certo sector mais empreendedor do nosso patronato, mau grado ir-se infelizmente sabendo das condições de vida extremamente difíceis pelas quais muitos estão presentemente a passar por esse mundo fora.
Alguns desses nossos compatriotas têm inclusive que ocultar (envergonhadamente) as suas doenças e/ou a sua frágil condição social, e outros, ao contrário do que é afirmado nos respectivos tratados comunitários, nem sequer têm direito efectivo ao mesmo tipo de assistência médica a que estavam habituados, ao ponto de preferirem deslocar-se algumas vezes por ano, de novo, ao País que tinham tomado a iniciativa de abandonar, suplicando emotivamente o envio da medicação necessária por correio, por intermédio de familiares, amigos ou simples conhecidos, etc …
À classe média, já foi retirado uma parte muito significativa do ordenado mensal (após quase uma década de estagnação), nalguns casos a totalidade dos subsídios de férias e de Natal (se a crise é nacional, porque é que o esforço imposto não respeita os princípios básicos da proporcionalidade e da equidade…), os estímulos à poupança são cada vez mais impercetíveis (o impacto na tributação paga anualmente pelos cidadãos e pelas famílias ao Estado, relativo às suas despesas com saúde, educação, ou com seguros complementares de reforma, vida, ou incapacidade, foi fortemente atenuado). O acesso ao crédito para a compra de habitação, deixou praticamente de ser possível, e está sujeito a taxas bancárias cada vez mais elevadas. O denominado fosso social entre os mais ricos e mais pobres, não tem parado de se acentuar nos últimos anos, etc., etc., etc.
Efetivamente, somos forçados a concluir que se chegou a um ponto tal em que, por mais que o Governo aumente os impostos, o que irá recolher na respetiva coleta será, ao invés do esperado, cada vez menos, impedindo pois a vital circulação de capitais. Não sendo especialista na matéria, arriscaria a antecipar (desejando sinceramente estar enganado!) que, este ano, pelo “andar da carruagem”, a diminuição do PIB será cerca do dobro do previsto pelas autoridades (competentes?).
Quando a meio do corrente ano os nossos governantes se confrontarem eventualmente com este (dantesco) cenário, será que decidirão como até aqui, respondendo que a solução para o problema é a aplicação da mesma receita, ou seja, de ainda mais austeridade? Não será tempo, pois, de humildemente compreenderem que a parir de certo nível, o ciclo infernal do empobrecimento não se quebrará jamais com a adopção do mesmo tipo de soluções, e que o que nos esperará em tal contexto socio-económico, é a inevitável falência em catadupa das pequenas e médias empresas (incluindo o comércio), e a celebérrima e costumeira deslocalização de algumas das multinacionais para os paraísos fiscais ainda existentes?
Nós, MÉDICOS, há centenas de anos que aprendemos com os nossos venerandos Mestres, que o “DOENTE, ALÉM DA DOENÇA, TAMBÉM PODE MORRER DA CURA”!
Em suma…
“… viver é ser outro … cada um de nós é uma sociedade inteira …” (sic.) Bernardo Soares, in Livro do Desassossego (1914)
Como é que neste cenário, nos vêm ainda dizer, do alto da sua insuportável pose altiva e demagógica, para termos paciência, esperança, pouparmos mais, e invertermos o desastroso declínio da natalidade, para assim ajudarmos a salvar a nossa ditosa Pátria? Não estaremos mas é a transformar paulatinamente o modelo da nossa Sociedade de hoje, não como o Europeu com que (ingenuamente?) ousámos sonhar, mas antes com o latino-americano, e quem sabe mesmo se num futuro não muito longínquo, no chinês, que sempre nos habituamos a considerar como a personificação da desumanidade?
Uma sociedade moderna e sustentável só sobrevirá se tiver uma significativa e salutar capacidade de procura interna, e não esteja cada vez mais dependente da vinda mítica de estrangeiros armados em “salvadores da nossa galinha dos ovos de ouro”: O turismo, ou ainda, na versão mais moderna, a sua variante assistencial, vocacionada para os idosos ricos dos países nórdicos nossos amigos que, mesmo assim, têm continuado a conseguir auferir por estas paragens (até quando?), alguns dos “privilégios” que há muito lhes foram retirados nos seus países de origem!
Por vezes, é precisamente nos momentos mais difíceis que há que ter o discernimento e a ousadia de saber fazer uma pausa, e maturar bem nas ideias de uma chocante atualidade perene, de quem soube refletir como ninguém o “genuíno espírito da nossa muito saudosa alma lusitana”, com reconhecida inteligência, ironia e sensibilidade: “… em Portugal, a emigração não é … a transbordação de uma população que sobra, mas a fuga de uma população que sofre …” (sic.) Eça de Queirós (1845-1900), para obter a resposta certa à “equação dos impossíveis, e evitar o caminho irreversível para o anunciado abismo …”
Quando é que chegará afinal o tempo em que os povos de todo o mundo clamem bem alto que deixou de haver lugar para agiotas no seio da nossa sociedade, de modo a evitar a concretização daquilo que lapidarmente foi recentemente “profetizado” por um conceituado politólogo italiano: “… arriscamo-nos a ficar não apenas sem trabalho e sem pensão. Mas sem futuro. E sem presente …” (sic.) Ilvo Diamanti (in Público, 2012/03/25).