Cultura, Geral

A ETERNIDADE DE UM VIAJANTE DO SOL

O Museu Jorge Viera, em Beja, reabriu depois de um período de remodelações de vária natureza. É uma excelente notícia para a cultura, evidenciando, mais uma vez, o enorme contributo que as autarquias dão para a cultura, quando o Estado continua a derrapar ruidosamente.

Este ano em que, se fosse vivo, Jorge Viera faria 90 anos, começa por ser bem assinalado com a reabertura do Museu Jorge Vieira, Aí estão expostas esculturas e desenhos que Jorge Vieira e a sua mulher, a escultora Noémia Cruz, doaram ao município de Beja, e foram instalados, em 1996, na Casa das Artes Jorge Vieira, tornando essa cidade alentejana num ponto de visita obrigatório nos itinerários da arte portuguesa contemporânea. Beja tem ainda duas esculturas públicas de Jorge Vieira que são emblemáticas da sua obra: monumento ao Prisioneiro Político Desconhecido, que, em 1953, ganhou um prémio num concurso internacional, e a que deveria ter sido implantada no molhe de amarração norte da Ponte 25 de Abril, integrada num arranjo arquitectónico do arquitecto Conceição Silva, e que, apesar de ter ganho um concurso público nunca foi concretizada.

Não por ser um lugar-comum, uma verdade inquestionável que não deve deixar de repetir que Jorge Viera é um dos artistas incontornáveis da história de arte portuguesa e o mais marcante escultor português do século XX.

Durante muitos anos não foi nem reconhecido nem encorajado em Portugal, refira-se que só nos últimos três anos da sua vida é que realiza várias obras públicas. Esta distância entre o artista e a sua pátria, vulgar no nosso país, é neste caso mais profunda porque Jorge Vieira era um homem de intransigente verticalidade que não pactuava com a ausência de liberdade, e por ela lutava das mais diversas formas, porque era um homem que não suportava a mediocridade e que não recuava perante a palavra necessária para verberar quem quer que fosse, a começar pelos amigos, que incorresse num comportamento incongruente, ainda que mínimo. Era um homem que nunca deu um passo nos caminhos, mais ou menos oblíquos, da auto promoção, distanciando – se, a mais das vezes acintosamente para não dar margem a qualquer dúvida, da crítica de arte, dos mentores do gosto e dos fazedores de opinião.

Um homem desta têmpera, só podia ser o que era: um homem socialmente empenhado, um artista inquieto a traçar um percurso impar.

Mas a isto, que por si só já é uma raridade, Jorge Vieira acrescentava a centelha de um génio com a vibração metálica do sol, uma força telúrica, uma ironia feroz que estilhaçava o senso comum, um olhar olímpico que radiofotografava o universo.

Jorge Vieira é um artista sem mestre mas com mestres de quem nunca foi díscipulo. Na Escola de Belas Artes de Lisboa os que encontrou, academizantes e monumentalistas, não cabiam no seu mundo, e com os que procurou fora da escola, Francisco Franco, António Duarte e António Rocha desenvolveu uma actividade que incidiu principalmente na pesquisa tecnológica. Mais tarde, em Londres, com Henry Moore e Reg Butler há um trabalho de conhecimento e aprendizagem que lhe dão um plano de referências que cruza com as que tinha colhido nas viagens que, anteriormente tinha feito a Itália, França e Inglaterra.

Com isso e com um saber que estava sempre a actualizar das formas mais diversas, construiu a sua obra escultórica onde em cada uma das suas obras nos ensina a ver, nos ensina a descobrir um mundo outro, um mundo fantástico onde a medida exacta do tempo, fabricada por pacientes e rigorosos mecanismos, é tumultuosamente subvertida pela desmesura de um imaginário muito pessoal, que se vai preenchendo com essas experiências e com o que recolheu de essencial no abstraccionismo, no surrealismo e, principalmente, na arte dos primitivos, onde recupera o sentido imediato do quotidiano, a transcendência ritual que emana de uma linguagem depurada numa geometria muito simples, a intimidade inquietante que estabelecem com os lugares que habitam, a sua utilidade prática.

Esta recolha de conhecimentos transportou-a para o que, desde sempre, foi dominante na escultura, a representação tridimensional do corpo, que é um tema central na obra de Jorge Vieira.

Corpos de seres humanos, com destaque para a mulher, zoológicos, com destaque para o touro, adquirem novas anatomias, equilíbrios impossíveis, dinâmicas extraordinárias.

É um imenso panteão de figurações que celebram a vida no que ela tem de mais eterno: a ritualidade pagã da alegria de viver, o mais vibrante e o mais delicado erotismo, o celebrar a terra na sua contínua transformação.

São criaturas dionisíacas que poderiam ter sido criadas por um deus dotado de uma mão inteligente e excessivamente humana que os inventava com o imenso prazer de os trazer para a pulsão da vida, de uma vida de que só ele possuía o segredo. Se por acaso nos causavam súbita estranheza nas suas anatomias até aí desconhecidas, logo nos assombrávamos quando percebíamos a exactidão do rigor plástico extremamente depurado que lhes tinha dado forma. Passada essa fronteira ficávamos possuídos pela tentação de experimentar o prazer de com eles coabitarmos sabendo que iríamos ser perseguidos pelo seu olhar inquietante, irónico, nunca indiferente. Olhar que o escultor lhes tinha impresso no código genético para acrescentar mundos ao mundo real.

A esfuziante criatividade de Jorge Vieira era plasmada numa soma de saberes (o artífice vivia dentro do artista) que conhecia os segredos mais íntimos dos materiais, fossem o bronze ou o ferro, mais raramente a pedra, preferencialmente a terracota. Mão inteligente que manipulava e moldava os materiais até lhes fazer vibrar a alma, com o prazer bem terreno da emoção da inventiva, criando seres de um imaginário onde a pesquisa permanente, a objectividade das interpretações e o depuramento formal, acentuam os valores simbólicos que conferem aos sinais artísticos a sua polivalência significante.

Jorge Vieira construiu um percurso artístico autónomo, onde afirmou o seu eu enquanto instância individual e socialmente partilhada e onde se cruzam o real e a memória, a ficção e o telúrico. Percurso que, durante meio século, tempestuou o quotidiano porque foi sempre inovador, foi sempre atento, foi sempre ímpar, esteve sempre no seu tempo a questionar o seu tempo.

Para que os 90 anos de Jorge Vieira se comemorem com a importância que merecem, deveria ser reeditado, revisto e ampliado, o catálogo que o Museu do Chiado publicou na oportunidade da retrospectiva que no ano de 1995 dedicou ao escultor e que há muito se encontra esgotado. Não é compreensível nem aceitável que do maior escultor português não se encontre esse catálogo que, na ausência de um catálogo “raisonné”,é um instrumento de estudo e conhecimento indispensável. Percorrendo as edições realizadas pelo Museu do Chiado essa ausência ainda é mais incompreensível, num museu que ostenta o título de Museu Nacional de Arte Contemporânea.

Prisioneiro Político Desconhecido / Beja

Homem Sol / Parque das Nações, Lisboa

aos 25 Anos ,25 Abril / Grândola

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10 thoughts on “A ETERNIDADE DE UM VIAJANTE DO SOL

  1. Irene Gonçalves diz:

    O ESCULTOR Jorge Vieira tinha a simplicidade e a sabedoria dos grandes mestres. Foi o maior, o mais ousado e inovador escultor do séc xx português. A sua escultura tem uma dimensão humana única.
    Se o livro viesse teria grande sucesso e a sua vida daria um filme de emoções fortes.
    É premente a divulgação da sua obra!
    O Jorge Vieira merece, a sua obra merece, nós merecemos o livro e,no mínimo, um documentário na TV.

    Irene Gonçalves

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  2. António Bacalhau diz:

    O Jorge era tudo o que diz no seu texto e a obra que deixou é uma das mais vitais e autênticas na arte portuguesa do século XX.

    O livro fazia falta, já não sei se a reedição do catálogo da retrospetiva do Museu do Chiado se justifica. O “raisonné”, no caso da obra do Jorge Vieira, parece-me uma tarefa (nem sei como dizer)…difícil?

    Mas a reabertura da Casa Museu é muito importante, como é saber que a Noémia Cruz volta a estar ligada à sua atividade.

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  3. Jorge Vieira foi mestre escultor que tinha uma presença maior que ele próprio quando se cruzava no pateo com os alunos à saída da aula dos metais, um olhar profundo e alguns silêncios que todos respeitavamos, o verdadeiro docente, com ele aprendiamos o sentido de cada acção para que o vazio ganhasse conteúdo e se espelhasse à superfície
    O museu em Beja é uma perola na planicie, até o ar transborda humanidade tamanho é o talento.

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  4. Jorge Vieira não foi só um dos melhores escultores portugueses do séc. XX (Talvez até o que deixou a obra mais forte, notável e pessoal). Foi também um Homem amigo, inteiro e leal de caracter, modesto, sereno e independente, desprezando as oportunas conveniências do “mercado”. Por isso pagou caro, até certo ponto, essa ousadia.

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  5. Jorge Silva Melo diz:

    sim era tão bom
    eu que todas as manhãs e fins de tarde escolar cruzei aquela sua escultura na bela loja da Mme Campos (na Alexandre Herculano), agora desmembrada e com a escultura salva sim senhor no Museu do Chiado (mas sem a rua a passar-lhe em frente…)
    era tão bom

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  6. Fernanda dos Santos diz:

    Meu Caro Manuel Augusto,,

    Fiquei muito comovida com o teu post sobre Jorge Vieira. Durante toda a minha vida com o Bartolomeu ouvi falar do Jorge com amizade e admiracao. Varias vezes estivemos prestes a encontrar-nos e nunca deu. Quando das comemoracoes do 25 de Abril em Grandola o Bartolomeu estava radiante e cheio de planos para o reencontro com o amigo. Por isso foi terrivel a noticia da morte do Jorge e comovedor ver a Noemia inaugurar a escultura com tanta dignidade e coragem apesar do luto tao recente. Para ela um abraco.

    Quando o Jorge esteve na Slade School em Londres andava eu por outras bandas mas sempre tive um grande desejo de um almoco ou jantar de convivio com amigos em que a Noemia ele estariam.

    Olhando para o teu post e com prazer que vejo finalmente em Grandola a escultura “Prisioneiro Politico Desconhecido”. So a conhecia na rotunda da estrada o que deu azo a muitas voltas a rotunda para ver melhor. Parece-me que um animal – cabra talvez – ia sendo atroplada pelo Bartolomeu porque tambem ela andava as voltas, escapada um pastor ali por perto! Alem disso naquele local faltava perspectiva etc.

    Concordo com a Marta em absoluto. E necessario um livro sobre Jorge Vieira. E por favor nao me venham com a desculpa da falta de dinheiro que acaba por sobrar para outras coisas bem superfulas. Tambem se fazem favor nao me venham com livrinhos “Kindle”… Nesta casa nao entram!

    Ja que estamos com a mao na massa, porque nao um filme sobre Jorge Vieira? Entao Jorge (Silva Melo) maos a obra Amigo!

    Ated breve

    Fernanda dos Santos

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  7. Uma obra maravilhosa a do Jorge Vieira!
    Os teus textos sobre o Jorge Vieira, como sempre, muito bons.
    Deixo a sugestão, como aliás já te disse pessoalmente, que deveria ser escrito um livro sobre o Jorge Viera, a sua vida e a sua obra.
    O que achas?
    O que acham os leitores do blogue?
    Um abraço
    Marta

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