Cultura, Geral

Sem Título

  Não tem título porque não consigo encontrar um título que exprima a minha perplexidade, para não usar ou acrescentar outro adjectivo. Chega-me às mãos um recorte do Guia da Folha de S.Paulo, o mais lido no Brasil e com circulação nacional,  com uma crítica literária que destaca “A Maldição de Ondina” de António Cabrita, em que o crítico literário Nelson de Oliveira, um dos mais conceituados do Brasil, o considera Imperdível! e lhe atribui a classificação Óptimo!

Por cá, o livro não existe. Quem o quiser ler terá que encomendar pela internet ou numa livraria com ligações ao Brasil, onde foi editado pela LetraSelvagem.

Não deixa de ser estranho que um livro de um autor português não seja publicado por uma editora nacional e que faça, posteriormente, o seu caminho no Brasil. Não se conhecem autores brasileiros que tenham feito esse percurso.

António Cabrita está há seis anos em Moçambique, onde ensina no Instituto de Cinema e desenvolve intensa actividade nos meios culturais desse país. Entre outras coisas da sua sempre vulcânica agitação intelectual, alimenta um blogue interessantíssimo. Escreve muito e escreve bem. Um dos seus últimos livros, de literatura infanto-juvenil, “O Pastor de Ventos”, é uma obra-prima. Passou quase sem uma referência tal como “Tormentas de Tintin e Mandrake no Congo”, um retrato carregado de humor de uma geração que deambula entre amores e desamores, bons e maus costumes e que, de quando em vez, é varrida por transes melancólicos.

O que aconteceu agora ainda é pior. Não encontrou editor em Portugal para a “A Maldição de Ondina”. Bateu a várias portas onde delicadamente, isto é tudo gente de refinada educação, foi posto do lado de fora. Alguns até permitiram que pusesse o pé lá dentro, numa insinuação que o deixariam entrar se seguisse sábias recomendações de carpintaria que tornariam o livro publicável. Umas aplainadelas na truculência. Aligeirar o peso do texto, que isto do peso imaterial dos livros é muito pior que o seu peso real, veja-se a quantidade de confitables books, para os mover quase exigem meios mecânicos, que se vendem como milho na época de envernizar de cultura o natal. Arrancar uns pregos que podiam ferir os dedos do leitor arrasado por intertextualidade e referencias que continham o perigo oculto de curto-circuitar as milhares de conexões sinápticas entre os biliões de neurónios do leitor médio português. Perigo de catástrofe nacional a somar à catrástofe em curso, orquestrada pela troika internacional e seus serventuários lusitanos, desastre iminente que nem o anticiclone dos Açores alimentado a espinafres seria capaz de deter, pelo que os diligentes editores teriam que actuar preventivamente. A protecção civil também passa pela literatura.

Um sobressalto. Que raio será esse animal: leitor médio português! Pela quantidade de títulos que são publicados e a não correspondente qualidade, pelas listas dos tops poder-se-á ter uma ideia do que será o leitor médio de um país onde a iliteracia é o que se sabe (é fazer uma passagem rápida pelas centenas de comentários às noticias dos jornais desportivos – três jornais desportivos diários com tiragens arrasadoras, um record europeu talvez mesmo mundial depois de tratamento estatístico), onde os escritores que mais vendem têm a extraordinária peculiaridade de não saberem escrever.

No meio de tanto papel impresso, livros magníficos de várias literaturas mas também livros de escritores que são excelentes escritores mas de quem se publica tudo e mais alguma coisa, muita dessa coisa é despicienda só salta para os escaparates com canina esperança editorial nos compradores desavisados que irão ferrar o dente não no conteúdo mas no nome do autor. Livros de ensaios nas mais diversas áreas, completamente descartáveis, em que os que derramam o pensamento são mais astrólogos que investigadores ao lado de políticos a proclamarem inanidades e mais uns tantos impudentes pensadores. Livros de auto ajuda e transes esotéricos para arredondar as esquinas da vida. Entre tantos livros bons, assim-assim e assim-assado, para não falar dos livros que não são livros e que nem devem cumprir bem o seu melhor uso endireitar mesas ou sofás coxos, não há espaço para a “ A Maldição de Ondina”?

O leitor português não médio tem que ir ao Brasil se o quiser ler?!

Não serei tão ditirâmbico quanto o Nelson Oliveira, sou amigo do António Cabrita que fez o favor de mo enviar via electrónica antes de ser impresso, não me ficava bem classificá-lo de imperdível, mas “A Maldição de Ondina” é um dos melhores livros em língua portuguesa publicados em 2011 e lá ficará para além da sua primeira edição.

Não deixa de ser indignante que nada aconteça aqui, tudo aconteça do outro lado do atlântico. É um livro a ler e que exige aos leitores portugueses um esforço acrescido para o lerem por incúria do nosso concentrado editorial. Enquanto por cá o silêncio continua a ser de chumbo, no Brasil as recensões literárias sucedem-se. Leiam o posfácio de Adelto Gonçalves para melhor se entender este inexplicável, mais um adjectivo cordato, buraco negro editorial.

.

Standard

4 thoughts on “Sem Título

  1. Pingback: A MALDIÇÃO de ONDINA | Praça do Bocage

Comente aqui. Os comentários são moderados por opção dos editores do blogue.