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Democracia, SARL

Hoje nos Estados Unidos da América vota-se para eleger 37 dos seus 100 senadores os 435 membros da Câmara dos Representantes. As eleições nos EUA têm particularidades que, nalguns casos quase as tornam incompreensíveis. Olhem-se para os boletins de voto das últimas eleições presidenciais, diferentes em cada Estado, para se perceber a complexidade que um eleitor enfrenta, ou para o sistema indirecto da eleição presidencial e todo o aparato que antecedem as nomeações dos candidatos pelos partidos. Para além dessas peculiaridades, dezenas de milhões de norte-americanos nunca se inscreveram para exercer o direito de voto, e dos inscritos a taxa de abstenção é brutal rondando os 50% nas presidenciais e os 80% nas outras.

Dito isto, hoje Obama, tal como todos os seus antecessores nos últimos cem anos, excepção para Roosevelt, a meio da Grande Depressão, e Bush, depois do 11 de Setembro, irá perder a maioria da Câmara dos Representantes para os seus opositores, no Senado a maioria que lhe é favorável estará em risco.

Nada de muito surpreendente para além das peripécias de uma campanha sempre dada a extravagâncias, agora agravadas pelo surgimento de um radicalismo populista de direita, por vezes com traços fascizantes, reunido num movimento multiforme intitulado Tea-Party, ou com a curiosidade de o maior comício ter sido realizado em Washington por dois comediantes.

Pano de fundo desses cenários é a democracia norte-americana ser cada vez mais uma democracia controlada pelas grandes corporações económico-financeiras. O Supremo Tribunal considerou as empresas equivalentes a pessoas com o direito, conferido pela Primeira Emenda, de gastar quantias ilimitadas em material publicitário de cariz publicitário. Mesmo um antigo limite para os donativos foi eliminado, deixando de haver limitações nas contribuições para os comités de apoio ou rejeição a um candidato. Para tudo ainda ser pior, a obrigação dos patrocinadores empresariais se identificarem em vez de mascararem os seus contributos em comités com designações variegadas como “Americanos pela América” também foi rasurada. Agora, com respaldo jurídico, o mundo empresarial, os seus magnatas, mesmo estrangeiros, podem influenciar a seu bel-prazer a política. Já antes o faziam, dentro de um quadro regulamentar com grande largueza de critérios, agora, até esse enquadramento desapareceu.

O resultado dessa legislação é que sem limitação nas suas contribuições, podendo camuflá-las facilmente, os ultra-ricos fazem-no com maior arrogância, já sem necessidade de exibirem qualquer convicção ideológica, mas continuando a garantir, agora com maior desenvoltura, a defesa política dos seus interesses materiais.

“O moderno conservadorismo americano é, em grande medida um movimento moldado pelas multimilionários americanos e pelos seus livros de cheques e os empregos seguros para os ideologicamente fiéis, são um dos pilares do sistema”. Quem o escreve não é um marxista, nem sequer um homem de esquerda, como é entendido na Europa, é Paul Krugman, um liberal, prémio Nobel da Economia.

Economia que enfrenta uma crise que se agrava dia após dia, estagnando num pântano de onde não consegue sair e que, tornando-se mais evidente nos últimos anos Bush, com o rebentar dos subprime, desaba em cima de Obama, tão incapaz como o seu antecessor de a resolver. Os problemas avolumam-se e o que se avizinha poderá ser subitamente bem pior. A política da Reserva Federal de injectar dólares às pazadas no sistema económico-financeiro esperando quev isso incentive o investimento, o que não está a acontecer, terá no futuro próximo mais que previsíveis efeitos devastadores para a já frágil moeda norte-americana. Não é novo, tem dezenas de anos do carrossel da política económico-financeira dos EUA invariável nos seus fundamentos, estejam republicanos ou democratas no poder. As variações nunca são de fundo, mexem só no que é secundário. Não por acaso o actual governador da Reserva Federal, Ben Bernanke, foi nomeado por Bush filho, sucedendo a Alan Greenspan, nomeado por Reagan. Ser o governo dos EUA a nomear o presidente da Reserva Federal, faz parecer que essa instituição depende dele. Não é assim, sem menorizar a importância dessa escolha. A Reserva Federal, que é quem emite a divisa norte-americana,  nem sequer é uma entidade independente, é um banco privado, com objectivo de lucro comercial e os seus accionistas são a nata da banca norte-americana e internacional.

A situação é extremamente grave e insolúvel. Muitos dos especialistas económicos norte-americanos, das mais variadas sensibilidades políticas, consideram que é matematicamente impossível liquidar a dívida nacional dos EUA. Situação que já era anterior à actual administração e que se tem vindo a agravar. Calcula-se que o governo dos EUA deve mais dólares dos que realmente existem e os existentes têm um valor volátil.

Enquanto isso os norte-americanos vão votar neste clima gravíssimo em que o desemprego não abate e não serão os republicanos ou os democratas e muito menos os folclóricos teapartidários que ultrapassarão a situação, para angústia e sobressalto da direita em todo o mundo como repercute José Cutileiro, um homem inteligente, um céptico de direita como se intitula, que considera que “o mundo livre precisa mais do que nunca de uma América forte. E não há tempo a perder. A China acaba de produzir o super computador mais rápido do mundo.” A realidade é que os EUA estão cada vez mais fracos, são um gigante com pés de barro a crescer.

Mas isso são outras histórias e outros post’s.

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7 thoughts on “Democracia, SARL

  1. Manuel Augusto Araujo diz:

    Octávio, você acaba por concordar comigo discordando. Pois é, são aquele rol de factos, a que você chama realidade nua e crua, que determinaram a derrota do Obama nestas eleições para a Câmara dos Representantes e Senado, como determinaram a derrota dos republicanos que deram a vitória ao Obama. O que você não percebe, mais grave parece-me que nunca perceberá, é que de uns aos outros a realidade pura e dura, nua e crua, a que realmente interessa, continua o seu percurso. Muda, está e mudar e, concordo consigo, é inquietante com mais fortes erupções protofascistas que sempre estiveram latentes na sociedade norte-americana. O Obamatório é que é um manto diáfano da fantasia ocultando a dura realidade, os problemas de fundo, o que você julga serem ficções. Republicanos ou democratas a realidade está a passá-los a ferro. Como por cá: qual a diferença de votar entre o PS e o PSD/CDS? A realidade está a triturar-nos mesmo àqueles que estão estuporados , manipulados por uma poderosa máquina de propaganda que vende a realidade como se esta fosse imutável e inultrapassável. Continuam a votar nuns ou noutros e os problemas além de continuarem, agravam-se. O seu Obamatório é uma peça, se calhar dispensável, dessa máquina. Os Murdoch se calhar nem o ouvem, embora saibam que Obamatórios são aos molhos e dão jeito.
    Não fui à Fac. de Letras. Infelizmente o trabalho atropelou-me com coisas menos interessantes na 5º feira e com outras mais interessante na 6º feira que foi o II Encontro de Estudos Locais de Setúbal. Nem sempre somos senhores de fazer opções. Por exemplo já reparou a quantidade de coisas interessantes que acontecem na próximo sábado? Um gajo ainda não alcançou a ubiquidade, infelizmente!

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  2. Manuel, para além das diferenças ideológicas, dois erros há aqui neste texto… e fico à espera que os emende:

    O Tea Party não tem quaisquer «traços fascizantes», nem sequer «por vezes».

    Paul Krugman é um liberal E de esquerda! Nos EUA os liberais são os esquerdistas! Krugman é a favor do aumento da intervenção do Governo na economia. Ele queria que o «programa de estímulo à economia» de Obama tivesse sido maior, era a favor de se gastar ainda mais biliões de dólares!

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    • Manuel Augusto Araujo diz:

      Meu caro Octávio, você não consegue perceber que isto não tem nada a ver com diferenças ideológicas. Esse é o seu logro, o seu primeiro e fundamental erro. Não tenho nada a emendar. O Tea Party existe porque faz parte do arsenal da direita do Partido Republicano e deve muito do seu êxito ao tempo de antena que a Fox News lhe concedeu. Faz invectivas populistas e muitas delas são fascizantes. A não ser que você não considere fascizante um dos seus candidatos, Rand Paul, propugnar que as empresas deviam ser livres de recusar clientes em função da raça. Para si isto é um exemplo de exercício das liberdades e não uma opção fascizante? Hitler foi mais além mas Rand Paul ainda não tem poder para ir, felizmente nunca terá, senão…Os exemplos são mais que muitos e se não são fascizantes, como a de outro destacado membro Tea-Party que ameaça ir para a Câmara dos Representantes armado com um taco de basebol para lidar com a classe política, são casos psiquiátricos como o da Christine O´Donnell que compara a masturbação ao adultério e à bruxaria. Estou a derivar, aliás bem ao seu gosto, nas referências da pequena história. É uma concessão que lhe faço. Claro que o Tea-Party é a reacção populista e inorgânica ao colapso da economia norte-americana, um caldo de cultura protofascista que não é, na sua essência, original na história mundial.
      Em relação ao Krugman você concorre não com os Gato Fedorento mas com os Monty Python. Lá porque nos EUA se considera que os liberais são de esquerda, você pisa logo acelerador e chama-lhe esquerdista, nós, como um bom rebanho de carneiros, abanamos as orelhas e aceitamos a nomenclatura? Que raio de subserviência mental! Não está á espera de me ver a fazer-lhe companhia no meio do rebanho!
      O Krugman é um liberal, como na Europa o classificamos, (o seu estrabismo de direita nem conseguiu ler esse pormenor no texto) acérrimo defensor do capitalismo e do funcionamento dos mercados. Tão defensor quanto o Milton Friedman. Defendem pontos de vista diferentes. Quando o Krugman queria que o programa de estímulo do Obama fosse maior, estava objectivamente a defender o sistema capitalista norte-americano. Pode estar errado, mas isso é outra questão. Coisa que você não apreende como nunca conseguirá distinguir o que é essencial do que é acessório. Sendo um habitante emigrado para o Planeta Fox, vive dramaticamente essa irreversível confusão. Calculo que nunca a resolverá. Problema seu.
      Não tenho nada a emendar, ponto final! Apesar disso, entendo-o, pelo que conte com a minha máxima compreensão e indulgência para perceber que você nunca conseguirá enxergar porque é que não são erros o que você julga serem erros.

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      • Manuel, para já fico à espera que indique a fonte dessa suposta afirmação de Rand Paul. Também fico à espera de alguns desses tais «exemplos são mais que muitos», e «fascizantes», do Tea Party.
        Essa do «bastão de baseball» foi do candidato dos republicanos a governador de Nova Iorque, Carl Paladino, mas referia-se, simbolicamente, ao sistema político nova-iorquino corrupto, que precisa de limpeza «não com uma vassoura mas sim com um bastão». Porém, que se saiba, ele em ninguém bateu. E, se quiser, arranjo-lhe casos de democratas que agrediram mesmo opositores.
        Quanto à Christine O’Donnell… você não sabe mesmo do que se trata. Mais uma vez, fico à espera que me indique alguma declaração dela, recente, que «compara a masturbação ao adultério e à bruxaria», e não afirmações dela de há 20 anos em que criticava a masturbação e o adultério, ou quando namorava com um rapaz dado a «bruxarias». Quer verdadeiros «casos psiquiátricos»? Leia mais o Obamatório, onde eu não cito «por ouvir dizer»; eu indico as fontes, muitas vezes com som e imagem.
        Sobre Krugman: o sistema capitalista norte-americano é incompatível (em termos de efectivo desenvolvimento económico, de crescimento, de criação de empregos) com um programa de «estímulo» como o que Obama aplicou… porque teve efeitos quase exclusivamente na administração pública.
        E antes estar no «Planeta Fox» do que no «Planeta “Alô Presidente” Chávez» ou nos «planetas» das TV’s chinesa e norte-coreana.

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      • Manuel Augusto Araujo diz:

        Octávio
        Você já nem repara que esta sua réplica é confrangedora por se centrar exactamente naquilo que eu disse ser uma concessão que lhe fazia, apontando alguns factos avulsos, mais que de segunda linha. Lá pequenas histórias, correios do leitor, o meu tipo inesquecível, são a sua especialidade. É de facto extraordinário! Se está à espera que vá vasculhar donde saquei aquelas informações, pode apagá-las de imediato, só as fiz para o satisfazer. Se reparar não têm relevância no contexto. O seu Obamatório, tirando o nome que é curioso, não passa de um repositório de acontecimentos secundários, donde não se extrai nada de importante. É uma lista de fait-divers. Obamatórios deve haver vários de direita, como o seu, e em espelho, canhotos. É assim e também podiam ser assado, enchem espaço e tempo e depois…depois nada! Você não percebe que o seu obamatório, como outros obamatórios, amigos ou inimigos, não adiantam nem atrasam. São listas ociosas de episódios. Acreditar na sua importância seria acreditar na importância em ler e tentar decifrar as listas da lavandaria de Metterling.
        Fique pelo Planeta Fox, sabendo de ciência certa que não me encontrará nos outros planetas que você refere e que, ao contrário do você poderá vesgamente pensar, não são nem melhores nem piores que os da Fox. Você é que está aí como poderia estar num qualquer dos outros. Estaciona-se lá por convicção apostólica, oportunismo, parvo deslumbramento, até sobrevivência material ou imaterial, sei lá o que mais, nunca pela razão.
        Ao contrário de você, não tenho certezas absolutas como as que você exibe, por exemplo, em relação à incompatibilidade dos programas propostos por Krugman com o sistema capitalista norte-americano e das conclusões que foi sacar a um qualquer fazedor de opinião de direita. O que é fundamental, é isso que lhe escapa repetidamente, é que, com pontos de vista antagónicos, os Krugmans e os anti-Krugmans procuram sair de uma teia que sufoca a economia norte-americana, em que as crises se somam às crises e as soluções para as solucionar repetem-se, com variantes mas repetem-se, enquanto os sintomas se avolumam. Como você é claramente um leitor de vulgatas deve pensar que estou a anunciar o fim do capitalismo norte-americano num curto ou médio prazo. Uma patetice em que embarcam os desconhecedores das teses de Marx, tanto os de esquerda como os de direita, ambos carregados de fé histórica.
        Tenho, isso sim princípios ideológicos fundamentados, sempre postos em causa, olhando para o mundo com hipóteses concretas e certezas provisórias, como a dialéctica marxista propugna. Estamos portanto em pólos opostos já que você, além de estar munido de verdades teológicas afunda-se com contumácia no acessório, o que transparece claramente nos seus comentários. Já uma vez lhe disse e vou repetir-me: você é como aquela pessoa que vê que está a chover ( li isto algures? se li, onde foi?) vai à janela vê um homem a andar na rua protegido por uma gabardina e conclui que está a chover porque o homem vestiu a gabardina. Se dúvidas houvesse é ler o que escreveu e, principalmente, sobre o que escreveu.

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      • Manuel, aquilo a que chama «factos avulsos de segunda linha», «pequenas histórias», «correios do leitor», «acontecimentos secundários», «fait-divers», «listas ociosas de episódios», mais não são do que… a realidade, pura e dura, nua e crua. E é esta que interessa sempre, em última análise. Vai continuar a insistir que os «ideais», as «boas intenções», têm mais importância, primazia, sobre os factos que as desmentem?
        Olhe, foram precisamente todos esses factos, histórias, acontecimentos, episódios aparentemente insignificantes – mas que, todos somados e contextualizados, «pintam» um quadro inquietante – que eu tenho relatado no Obamatório que estiveram na origem da viragem política verificada nas eleições de terça-feira nos EUA. A maioria dos norte-americanos (tal como eu) prefere a «nudez forte da verdade»; o «manto diáfano da fantasia» fica… para as ficções.

        E por falar em ficções… gostaria de o ter visto ontem na Faculdade de Letras para se encontrar comigo e com o António de Macedo… que vai lá estar de novo na sexta de manhã (eu estarei à tarde).

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  3. João Pinheiro diz:

    Quem quiseer aprofundar o seu “gosto” pela história da “democracia” dos EUA pode fazê-lo lendo “A Peoples’s History of the United States:1492 to present” porHoward Zinn, um ponto de vista dos explorados política e economicamente. Também há uma tradução em espanhol, “La Otra Historia dos Estados Unidos”

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