Política

Que parvos somos!

Não posso deixar de sentir alguma estranheza pela enorme discussão que uma música do grupo “Deolinda” provocou, nas últimas semanas, na sociedade portuguesa.

O problema, claro está, não reside nas boas intenções do grupo, mas sim na forma como os portugueses reagem aos problemas, na forma como lhes dão atenção, ou melhor, na forma, artificial, como a agenda mediática acolhe determinados temas.

O drama da precariedade laboral, alimentada por recibos verdes e mal pagos e por estágios não remunerados, é um tema presente na sociedade portuguesa há muitos anos, um tema que os sindicatos, em especial, têm feito um enorme esforço para colocar na ordem do dia. O problema não é novo, nem sequer é exclusivo desta geração, e nem por isso mereceu noutras alturas a atenção que agora merece dos media.

A música dos “Deolinda” acaba, também, por ser o pretexto para exercícios de uma hipocrisia sem limites. Ainda há dias se assistia, na SIC, a uma extensa reportagem sobre a “Geração à Rasca” capaz de pôr as pedras da calçada a chorar, mas ignorava-se, olimpicamente, a prática dos órgãos de comunicação social nacionais, SIC incluída, de recorrer a estágios não remunerados, cobiçados por fornadas de recém licenciados em jornalismo que ambicionam por um qualquer trabalho que lhes permita pôr em prática o que aprenderam.

À boleia da discussão gerada voltam a aparecer aqueles para quem os direitos são sempre excessivos e constituem os maiores obstáculos à criação de emprego. São os defensores da desregulação total, aqueles que têm a crença absoluta no funcionamento dos mercado (crença que produziu e produz os resultados que já todos conhecemos); aqueles que defendem que para haver emprego é preciso aumentar o desemprego primeiro, como se as pessoas fossem meras peças descartáveis que apenas têm a finalidade de pôr a economia a funcionar …

O destaque que a questão alcançou por via de uma mera música bem intencionada acaba também por fazer justiça ao nome da própria canção. De facto, que parvos que somos para esperar por uma qualquer música para que comecemos a reagir. Só podemos estar perante mais um sinal do entorpecimento a que a sociedade portuguesa foi conduzida por anos e anos descredibilização do Estado, por via de agentes políticos mais interesseiros do que interessados.

Temos mesmo de ser muito parvos para andarmos tanto tempo a ignorar apelos consequentes ao protesto, à luta. Ainda há dias, por ocasião da greve geral de Novembro de 2010, ouvimos as reações de muitos dos agora indignados protagonistas da discussão em curso sobre a precariedade das novas gerações. Cheios de certezas lá nos foram dizendo que os problemas não se resolvem com greves; que as greves só contribuem para agravar o estado do país: em suma, que não vale a pena lutar. Eis que, perante a possibilidade de ficar bem no retrato da discussão mediática, com artistas à mistura, todos querem lutar contra os recibos verdes e afins…

E, contudo, ainda bem que finalmente se consegue fazer uma discussão alargada em torno da precariedade sem que, de imediato os media a desvalorizem por ser coisa de sindicatos ou de partidos de esquerda.

Felizmente, não pode haver parvoíce que dure sempre…

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