Em 2006, Luís Amado foi a uma comissão de inquérito na Assembleia da República sobre as suspeitas de o governo português ter autorizado os voos da CIA no nosso espaço aéreo e a utilização da base aérea dos Açores, no transporte de prisioneiros para Guantamano. Garantiu que era tudo mentira. Uma monstruosa cabala. Com a coragem dos bravos, afirmou que se demitiria na hora em que isso fosse provado.
Agora que os documentos publicados pela Wikileaks provaram insofismavelmente que o Ministério dos Negócios Estrangeiros sabia de tudo, Luís Amado cala-se como um rato, refugiando-se na banalidade de “não comento”. Um homem tão lesto a por o lugar á disposição para possibilitar uma coligação PS, PSD, CDS para supostamente ultrapassar a crise que as políticas desses mesmos partidos provocaram, uma contradição que não o incomoda, agora não cumpre a palavra que tão veementemente proclamou deixando-se de preocupar com o seu bom nome e dignidade. Entre a ameaça e a proposta de demissão há uma evidente jogada politiqueira. A primeira era um truque para acabar com a inquirição, a segunda é feita para que se lhe reconheça a “grandeza” do gesto e o recompensem.
No meio disto há um episódio patético: Portugal autorizava os voos da CIA com a condição de os prisioneiros não serem torturados. Ficámos sem saber se o governo português fornecia pulseiras coloridas, do género das que se distribuem nos hospitais, para distinguir aqueles que tinham o privilégio de passar por território nacional. A parvoíce não mata, se não o ministro nem teria tempo de se demitir.
O incómodo causado nos meios diplomáticos é evidente e faz perder a trasmontana mesmo aos mais inteligentes e dotados. Seixas da Costa, embaixador em Paris, publicou no blog que alimenta, um post intitulado Coscuvilhices onde acaba por afirmar que os documentos publicados pela Wikileaks sustentam o “voyeurisme” pateta de alguns setores sente-se deliciado com o acesso àquilo que deveria permanecer num registo discreto. É um belo teste de caráter, idêntico ao que qualifica quem revela conversas ouvidas nos locais públicos ou promove a divulgação de escutas telefónicas de natureza privada. Que se há-de fazer? São os novos “bufos”, as modernas comadres da eterna coscuvilhice.
O que não deixa de causar uma certa perplexidade num blog em que muitos post’s contam histórias curiosas, muitas se assemelham a inocentes coscuvilhices. Já é pouco suportável e mesmo condenável etiquetar de novos “bufos” quem revela factos importantes que desmascaram indignidades políticas, suportadas numa rede de mentiras. Pateta é argumentação do senhor embaixador construída com sofismas de pacotilha metendo tudo no mesmo saco, o que é irrelevante e distrai do que é importante, e o que é relevante para desmascarar as mentiras que nos vendem como verdades para manter o estado da arte a bem dos verdadeiros mandantes nos governos do mundo. Não fazer essa distinção é tem o propósito manifesto de baralhar.
Há que distinguir as opiniões sobre a personalidade e idiossincrasias deste ou daquele governante ou a solicitude em acariciar Luís Amado. São revelações que pouco ou nenhum interesse têm, abastecem onzeneiros e revistas ociosas. Agora saber que o Ministro dos Negócios Estrangeiros mentiu descarada e convictamente a uma Comissão de Inquérito da Assembleia da República, é relevante e o seu conhecimento é de interesse público.
Claro que quando as mentiras do patrão são desnudas na praça pública o corpo diplomático, com forte espírito corporativista, acorre a vozear que o rei não vai nu, isso enquanto muita espadeirada invisível e silenciosa se deve estar a cruzar no Palácio das Necessidades e suas sucursais distribuídas pelo mundo.
Nota: a transcrição do post de Seixas da Costa é fiel ao original, escrito pelo novo acordo ortográfico.
Caro Manuel Augusto Araujo
Nao o “fazia” parte desses saudosos tempos de Sintra e do nosso Bartolomeu. E fico grato por ler o meu blogue. Nele tenho pretendido deixar alguma memoria, em tom ligeiro, sem nunca enveredar – espero eu! – pela “coscuvilhice”, que e’ sinonimo de intriga, “arte” a que nunca me dediquei.
Quanto a Guantanamo, as coisas parecem-me simples:
– as autoridades portuguesas foram, em tempos, acusadas de saberem que voos americanos PARA Guantanamo, que pousaram no nosso paus, levavam prisioneiros. Que eu saiba, nunca isto foi provado, quer em comissoes parlamentares (PE e AR) quer pela PGR. Quem quiser pode duvidar, mas ninguem provou nada.
– as autoridades portuguesas sempre reconheceram que deixaram passar por Portugal voos DE Guantanamo (um ate trouxe dois antigos prisioneiros, que vivem entre nos), com prisioneiros repatriados, tendo sempre tido o cuidado de se assegurar previamente que, no destino desses detidos, lhe nao seria infligido, no destino, um tratamento nao aceitavel.
O que agora o WikiLeaks apresenta diz respeito apenas a estes voos de repatriamento. Por que razao sao chamados a terreiro os outros voos? Sera’ um “desforco” de quem foi derrotado na discussao em torno desses voos? A quem interessa explorar a confusao entre dois assuntos bem distintos?
Com cordiais cumprimentos
Francisco Seixas da Costa
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Caríssimo Francisco Seixas da Costa
Prefácio
Um colega de blog, em cima da hora, notificou-me do seu comentário. Só agora respondo o que merece uma justificação. Só agora cheguei a casa, fui ler o seu comentário e comecei a teclar. Isto de fazer pela vida, por vezes, tem destas violências
1º Questão
Li o telegrama publicado pela Wikileaks, anunciado como o primeiro de um lote de centenas. Tem inúmeras ambiguidades e subentendidos, o que se espalha pelos comentários que suscitou e suscita. Claro que não tenho a fina e sofisticada rede interpretativa de um embaixador com o seu cabedal, pelo que não consigo joeirar devidamente tudo o que dali se poderá deduzir.
Presumo que o Francisco Seixas da Costa estará em condições de me elucidar claramente e até mesmo garantir que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e o seu titular; Luís Amado, nada sabiam nem nunca autorizaram voos de ida ou de volta para a base de Guantamano, atravessando o espaço aéreo português e/ou utilizando a base aérea dos Açores.
Mediofácio
Nos saudosos almoços de Agosto na casa de Sintra do Bartolomeu, e só refiro esses almoços porque não me lembro, pode ser lapso meu, de o encontrar nos fins de ano, naquele alegre e salutar convívio muito do tempo gastava-se/ganhava-se com bem-humoradas pequenas histórias que muito animavam aquelas horas que não são fáceis de esquecer.
2ª Questão
Como já percebeu sou leitor do seu blogue. Aprecio as pequenas histórias que o polvilham e que vai desenrolando com escrita límpida e bem temperada de graça. Foi isso que classifiquei de inocentes coscuvilhices, sublinho o inocentes por causa dos maus-olhados. É uma classificação excessiva? Provavelmente, mas não me parece que, do modo como a utilizei e que aplicaria igualmente às que se sucediam em Sintra, tenha algum pendor depreciativo ou que embacie o perfume cosmopolita do que vai relatando para deleite de um clube de fãs, em que me incluo.
Posfácio
No centro de qualquer argumentação haverá sempre a necessidade e urgência de distinguir o que é essencial do que é acessório. A escrita “blogueira” que se caracteriza pelo imediatismo não está particularmente vocacionada para alcançar esse desiderato. Isso não significa que não o deva perseguir e sobretudo que não seja esse o seu alvo.
3ªQuestão
Quando o Wikileaks inunda o universo comunicacional com milhares de informes o que é relevante arrisca-se a ficar soterrado no que é irrelevante. Numa leitura diagonal pelos órgãos de comunicação social, mesmo daquela que normalmente é apelidada de imprensa de referência, isso é uma evidência. Essa avalanche informativa facilita e suscita a desvalorização do que é realmente importante e que coloca em causa o travejamento ético, social, ideológico desta sociedade, apesar de já sabermos que tem bem pouca dignidade para nos oferecer.
Daí a meter na centrifugadora o que é relevante e o que é irrelevante para enfiar tudo no mesmo saco e o atirar para o caixote de lixo do voyeurismo vai um passo curto, que não é aceitável mesmo na escrita rápida de um blogue.
As melhores saudações
Manuel Augusto Araújo
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Nem o acordo ortográfico justifica que me tenha escapado o erro no “coscuvilhice”, no fim do meu comentário anterior, quando fui eu o primeiro a usar a palavra…
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Caro Manuel Augusto Araújo
As acusações feitas ao governo português sobre um possível encobrimento do conhecimento dos voos da CIA que transportavam detidos para Guantanamo são uma coisa.
O que os telegramas diplomáticos revelados pelo WikiLeaks agora revelam referem-se a outra coisa bem diferente: ao repatriamento de alguns desses mesmos detidos, à sua saída de Guantanamo.
Está na sua mão (ou na sua escrita, com ou sem acordo ortográfico) a decisão de confundir ou não as duas coisas, como se se tratasse do mesmo assunto.
Como também está o ter ou não a amabilidade de esclarecer-me quais os posts do meu blogue que configuram a qualificação de “cuscovilhices”.
Atenciosamente
Francisco Seixas da Costa
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