economia, Política

Um mestre. E um aprendiz?

"O Escudeiro-Mor", charge à política financeira de Salazar, por Francisco Valença, na capa do "Sempre Fixe" de 31 de Janeiro de 1935.

Ninguém poderia pensar que este duro trabalho da nossa reconstituição financeira se faria sem repercussões mais ou menos extensas e graves na economia nacional. Tudo o que o Estado gasta de menos, e tudo o que aos indivíduos exige a mais, deixa de activar o comércio, de alimentar os trabalho, de irrigar as economias individuais, por consequência de fomentar a produção. Mas sendo isto incontestável, o que haveria a discutir era apenas se outro caminho nos ficava aberto para nos salvarmos com segurança e com honra” – assim justificava António de Oliveira Salazar as contas de gerência do Estado de 1928-1929.

Mais de oitenta anos após sobraçar a pasta das finanças, em plena ressaca do 28 de Maio de 1926, a explicação avançada por O. Salazar para as suas opções orçamentais assenta que nem um luva no presente e revela-se de uma actualidade preocupante. Passos Coelho não poderia ter melhor mestre. Conhecem-se os resultados dolorosos da opção expressa por Salazar no final daquela já longínqua década de vinte: “o milagre financeiro” do ditador forçou orçamentos equilibrados e com superavits durante quase cinquenta anos, no final dos quais os portugueses eram um povo de poucos ricos, alguns remediados e muitos pobres e emigrantes, num país com três frentes de guerra. Mas era então o tempo do Portugal “orgulhosamente só”.

Da nação orgulhosamente só ficámos fartos e rapidamente embarcámos no sonho europeu. Sonho que fez com que o país se modernizasse em muitos aspectos, mas que o manteve com muitas das mesmas fragilidades de há um século. E que deu lugar ao pesadelo da recessão, com mais e mais impostos, menos salários, menos emprego. Só nos restando mesmo a emigração, agora promovida com indisfarçável desfaçatez por aqueles que, escolhidos pelo povo, tem a obrigação de procurar soluções. Insolência tamanha que nem no tempo da outra senhora tal se viu! Têm “o rei na barriga”, tal a arrogância de que estão apossados!

Para mal dos seus (nossos) pecados, o país associou-se agora à exigência de um futuro deficit orçamental de 0,5% (!) do PIB decidida na última cimeira europeia de 8 e 9 Dezembro. Oxalá não tenhamos, tal como no tempo do Estado Novo, uma “prosperidade financeira”, “como expressão vexatória: – do esmagamento tributário da nação; – do desaparecimento das suas grandes regalias colectivas; da opressão de todas as suas classes laboriosas (…) Como produto do desequilíbrio social e do rebaixamento moral da nação que ela algemou!” – como escrevia o autor anónimo de “Neste transe doloroso da Pátria”, um opúsculo não autorizado de crítica às contas de gerência de Salazar.

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Política

Separados à nascença?

As declarações de Sócrates, no Congresso dos Exportadores, conjugadas com o que se soube hoje sobre a destruição pela TMN dos registos das escutas telefónicas feitas no âmbito do processo Face Oculta invocam de uma forma cristalina os mais notórios defeitos do salazarismo e trazem à memória algum do arsenal argumentativo do cavaquismo da década de noventa.

A TMN, escondida atrás de um imponente conjunto de justificações técnico-jurídicas, tenta explicar por que destruiu os registos, deixando, porém, claro, que mais um jeito se fez ao primeiro-ministro suspeito e respetivos amigos. A eliminação de registos e documentos não apaga, contudo, os factos que são conhecidos e muito menos anula a perceção que os cidadãos têm sobre Sócrates e os esquemas em que se terá envolvido. No salazarismo a anulação de registos e de notícias, por via do visto prévio, funcionava porque existia, de facto, um aparelho repressivo que zelava pelo bom funcionamento do sistema, aparelho que, como sabemos, impediu durante décadas que os portugueses pudessem exercer plenamente a sua cidadania e livre arbítrio. Hoje não existe tal sistema generalizado — ainda que existam formas de coerção, nomeadamente a económica, muito mais eficazes do que o próprio aparelho coercitivo clássico do estado e quase impercetíveis — mas existe uma crença ilimitada dos detentores do poder na capacidade de influenciar decisões judiciais apenas por via de vícios formais dos processos, nem que para isso, como aconteceu agora, seja necessário destruir registos apenas para que mais tarde se possa invocar a sua inexistência numa qualquer sede investigatória ou judicial.

Já as declarações de Sócrates no Congresso das Exportações, se não foram copiadas de um qualquer discurso de Salazar, bem que podiam ter sido. Quem afirma que “este não é o momento para que a política se entretenha com questões de poder e se entretenha a discutir crises” e que  “isto não é acerca de partidos, não é acerca de poder, isto é acerca do país” só pode ser alguém plenamente convencido da sua infalibilidade política e incapaz de perceber que o seu tempo chegou ao fim. Mas, a verdade é que, de insubstituíveis está o cemitério cheio.

Sócrates recorre ao argumentário anti-política e anti-partidos para convencer os portugueses que apenas ele tem a solução para os males do país. Salazar fez o mesmo, com algum sucesso, reconheça-se…

Num momento em que o que prevalece é, e bem, o primado da política; num momento em que os constituintes do sistema democrático anunciam que podem recorrer aos instrumentos constitucionais para provocar uma mudança de política e de governo, interpretando o que consideram ser os sentimentos e expectativas dos cidadãos, Sócrates diz-nos, implicitamente, que quem o faz está a atacar o país. Exactamente a mesma técnica que Salazar utilizava, traduzida na ideia de que quem não está connosco é porque é contra nós, neste caso contra o país.

Por estas e por outras, sabe muito bem saber que o PCP pondera apresentar uma moção de censura para acabar de vez com esta podridão política em que o governo PS deixou cair o país. E sabe bem saber que o PCP, com a ideia da moção de censura, ganha dianteira na condução do debate político, arrastando o Bloco de Esquerda, que, perante a eventualidade de derrubar Sócrates, é incapaz de expressar com clareza uma posição sobre a matéria.

Já basta de taticismos e de esquemas. É tempo de acabar com isto.

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