Cavaco Silva especializou-se em falar sem dizer nada. É uma arte que requer longa aprendizagem e experiência, ainda que por vezes, quando menos se espera, aflorem lapsos de monta, em especial quando fala de pensões de reforma.
Cavaco sabe que quanto mais fala, mais se enterra, como diz a sabedoria popular, e, por isso, aperfeiçou ao limite a arte de abrir a boca sem que retire do que disse qualquer conclusão válida, exceto a de que não se quer comprometer. Claro que arte de falar sem dizer nada admite exceções. No caso do Presidente da República, a exceção chama-se Sócrates, inimigo de estimação que, com ele, partilha algumas das maiores malfeitorias de que fomos alvo. Os “bons” espíritos encontram-se sempre.
Cavaco conseguiu até fazer uma campanha de reeleição sem dizer praticamente nada. Lá está, quanto mais falasse mais se enterrava. Há tempos distraiu-se com as pensões de reforma e foi o que se viu.
O mais recente exercício bem sucedido de falar sem nada dizer é a declaração que Cavaco produziu em Singapura, muito longe, já se vê, a propósito de Miguel Relvas andar a ameaçar dizer quem é o homem que vive com uma jornalista do “Público”:“A mais de 15 mil quilómetros de distância, as polémicas que lá correm [em Portugal] chegaram aqui de forma imprecisa. Estou convencido de que tudo acabará por ser esclarecido e com a devida transparência, mas não devo acrescentar mais nada“.
Curioso. Chegaram de forma imprecisa a Singapura, diz Cavaco, em quem se nota o incómodo de ter de falar do amigo Relvas, em particular depois de alguns outros dos seus mais diletos amigos, como o antigo líder parlamentar do PSD cavaquista Duarte Lima, o secretário de estado dos assuntos fiscais dos seus governos Oliveira e Costa, e o conselheiro de estado por si nomeado Dias Loureiro, terem caído nas malhas da justiça. Se o rol das acusações ainda ficasse pelo desvio de uns milhões, ainda vá lá. Mas, segundo as acusações que chegam do Brasil, a coisa mete pistolas e mortes, o que já incomoda um pouco mais…
É curioso que Cavaco afirme que as informações lhe chegaram de forma imprecisa. Há trinta anos, no tempo dos telexes, que aquela coisa nem acentos tinha, ainda se acreditava em alguma imprecisão. Mas hoje, alguém acredita nisso? Mesmo que se esteja em Singapura?
Curioso mas não original em Cavaco. A declaração de Singapura mais não é do que uma actualização da síndroma do Pulo do Lobo, da qual Cavaco padece com grande intensidade. Em 1994, era ele primeiro-ministro, perante questões dos jornalistas sobre críticas que lhe haviam sido dirigidas pelo Presidente da República, Mário Soares, no contexto do congresso “Portugal, Que Futuro?”, Cavaco limitou-se a responder que no Pulo do Lobo, entre Corte Gafo e Mértola, onde estava nesse momento, não chegavam as ondas rádio e, por isso, não conhecia as notícias do dia. Enfim, naquele tempo quase se levava mais tempo a chegar ao Pulo do Lobo do que a Singapura, mas mesmo assim…
A história repete-se com Relvas. Cavaco diz que está convencido de que tudo acabará por se esclarecer, e de forma transparente, claro, mas sobre a situação em si, nem uma palavra…
O que pensa o Presidente da República de um ministro dos assuntos parlamentares que conhece, sem que se saiba como ou porquê, a vida privada de uma jornalista que lhe faz perguntas incómodas? O que pensa o Presidente da República sobre um minsitro dos assuntos parlamentares que ameaça um jornal com um blackout informativo de todo o Governo? O que pensa o Presidente da República de um ministro dos assuntos parlamentares que se expõe desta forma e se deixa envolver com um espião com a mania das grandezas?
O que ele pensa sobre esta matéria é que os portugueses gostavam de saber.
Cavaco, se pensa, não o diz. Está no Pulo do Lobo de Singapura…
Nota: Hoje apeteceu-me exercitar o Acordo Ortográfico. Poupem-me…