
Nude with Calla Lilies, de Diego Rivera
O velho debate sobre a união das Esquerdas está de regresso na sequência dos efeitos devastadores da austeridade e do paulatino desmantelamento do modelo social construído após o 25 de Abril – o resultado da conjugação das maiorias da Direita com o “memorando de entendimento” com a tróica.
Repetindo reflexos condicionados que vem pelo menos desde 1976, as esquerdas partidárias tem atravessado o período do “ajustamento” sem esboçarem aquilo porque anseiam muitos dos que se reconhecem na Esquerda e nos seus partidos – a criação de uma alternativa política consistente, susceptivel de defender com eficácia um país mais justo e equilibrado.
Assobiando para ar
A inércia parece vir fazendo o seu caminho. Apesar de todos os ataques soezes ao Portugal de Abril e àquelas que são as próprias bandeiras dessas Esquerdas: o aviltamento da escola pública, a degradação do serviço nacional de saúde e da segurança social, assim rasgando contratos há muito estabelecidos com os cidadãos; desregulamentando as relações laborais em proveito do factor capital e liquidando a contratação coletiva; privatizando e vendendo ao desbarato empresas estratégicas para o interesse do público.
Malgrado o Portugal que protesta nas ruas em manifestações massivas que reúnem gente de todos as condições e sectores, as Esquerdas tem-se revelado incapazes de, pragmaticamente, se constituírem como uma alternativa que possa catalisar o sufrágio dos eleitores. Disso dão conta os também relativamente débeis ou mesmo contraditórios sinais que nos chegam das sondagens.
Chegados que sejamos às eleições legislativas de 2015 (ou antes) teremos provavelmente essas Esquerdas pouco ou nada mais fortalecidas do que estão no presente. Com o jogo político a regressar à velha e conhecida casa de partida – o PS no poder.
As Esquerdas e o PS
O Partido Socialista é, em Portugal, como na maior parte da Europa, um partido centrista fortemente condicionado pelos poderes dominantes na União Europeia. A sua família política é, aliás, corresponsável pelo estado a que as coisas chegaram. E em matéria de governação o PS rapidamente se alia à Direita – tem sido essa a sua história.
Quando e se chegar ao poder, o partido socialista será confrontado com mudanças profundas: o degradado ou mesmo desmantelado Estado Social, o Portugal empobrecido da mão-de-obra barata e com classes médias a definhar. Com um forte desiquilíbrio social, penalizador de quem trabalha. E não será esse PS que fará muito diferente do que se tem visto. Seja por si só, seja aliado à Direita. PS que tem aliás vindo a ser habilmente assediado para compromissos na manutenção de muitas das opções da atual maioria.
Mas há que atender que, como grande partido de eleitores, o partido socialista cobre amplas faixas desse eleitorado que se reconhece na visão solidária e social da Esquerda. A participação de sectores socialistas num projecto alternativo não pode ser excluída.
Eleitores fora da governação
Será que o PCP e o BE, que são hoje os dois principais polos à esquerda, podem criar uma nova e credível alternativa? São eles as Esquerdas que desde há décadas estão excluídas (mas que de certo modo se excluíram) do chamado “arco da governação” – essa curiosa expressão criada para representar o rotativismo.
Representaram nas eleições de 2011 13 por cento dos votos expressos, num total de mais de 730 mil eleitores, então com uma abstenção a rondar os 42 por cento. Nas legislativas de 2009 haviam atingido uma votação superior a um milhão de votos, quase 18%.
Constatamos que há um potencial de cerca de vinte por cento de votos expressos sistematicamente bloqueado e sem perspetivas de contribuír para uma solução de Governo! Um eleitorado de que se não conhece a potencial dimensão, representado em partidos e outros agrupamentos políticos, mas não só. E que dizer dos diversos movimentos sociais oriundos ou dinamizados nas Esquerdas?
A apresentação a sufrágio de uma nova mas consistente plataforma política pode concretizar esse potencial eleitoral. Pelo factor novidade, por representar o encontro de áreas politicas distintas mas em convergência. Enfim, por autorizar uma esperança aos seus eleitores. E que poderá ser um real factor de mudança – seja pela dimensão da sua expressão, seja pela recomposição do equilíbrio de forças no centro e na esquerda do espectro partidário.
Conhecemos a traumática história de dissensões que divide as Esquerdas “à esquerda” do PS. Na sua maior parte são velhas e bolorentas questões quando confrontadas com o desastre que se abate sobre o país. O que é notável é que elas nunca tenham sido pragmaticamente ultrapassadas, ou colocadas entre parenteses, para que pudesse ser oferecida ao eleitorado uma alternativa eleitoral credível e com expetativa de poder contribuir para alterar qualitativamente o quadro do poder político em Portugal. Para alterar o também velho e caduco rotativismo que governa o país há quase quatro décadas. Será possível essa reforma?
Reforma e revolução
Estarão essas Esquerdas a “guardar-se” para o post regime se este falhar? Ou para a revolução? É que se o regime falir correm o risco de ir pela “pia abaixo” junto com os restos desse regime de que, de uma ou outra forma, fazem parte e são também corresponsáveis, apesar de todas as diferenças.
Será que basta influenciar e ter um papel central nas estratégias sindicais e dos movimentos de opinião? Ou nas autarquias? Ou na rua? Esta estratégia, que tem virtudes e resultados, tem também limitações.
O PCP é um grande, disciplinado e influente partido, porventura o mais influente partido comunista da Europa. Mas tem parecido não ambicionar a mais que guardar as fortalezas e condicionar a governação a partir de fora. Temerá porventura o “abraço de urso” que resultou da extraordinária experiencia governativa dos seus camaradas franceses por ocasião do Governo do programa comum que PCF e PS levaram à prática no princípio dos anos oitenta no primeiro mandato de F. Mitterand? Mas registe-se também o exemplo recente da Front de Gauche (ver aqui) que os comunistas franceses desta geração propõem actualmente aos eleitores.
Quanto ao BE, o seu futuro é uma incógnita, a acreditar nas sondagens, dadas as cisões e dissidencias. Mas mantém uma reconhecida influência no mainstream.
As dificuldades de um programa
Falta pois o principal: a constatação da existência de uma vontade, a sua expressão e um programa comum. Não será seguramente um debate fácil: como financiar a divida pública; o euro; que nível de federalização para a UE; qual o papel do Estado na economia; como pagar o Estado Social; pacto orçamental europeu…
Há sinais de movimentação. Sinais contraditórios, é certo. Algo se move, mas que carece de expressão pública. Surgiu o Manifesto 3D (Dignidade, Democracia e Desenvolvimento) e mais um partido, o Partido Livre. Mas, em boa verdade, sem o empenho das duas grandes forças da Esquerda, não se anteveem mudanças de fundo. Irá o PL trazer mais votos às Esquerdas? Ou contribuirá para a sua ainda maior repartição e perca de eficácia eleitoral? A pergunta poderá ser respondida nas eleições europeias de Maio.
PCP e BE mantêm um “acordo de cavalheiros” no parlamento. Tem havido diligências comuns. É positivo. E o assunto reentrou com força no debate público. Já se percebeu que são pequenos os passos e que a mudança do status quo não será fácil.
Há muita coisa em jogo e muitas trincheiras do mesmo lado por aproximar. Mas oxalá esses pequenos passos conduzam rapidamente a uma proposta sólida. O tempo escasseia.
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