Política

História, sim!

Grande luneta pintada por Veloso Salgado existente na Sala das Sessões da Assembleia da República e que representa as Cortes Constituintes de 1821 – que elaboraram a Constituição de 1822, a primeira da história constitucional portuguesa – reunidas na biblioteca do Palácio das Necessidades em Lisboa.

Sendo certo que a coligação PSD-CDS foi a lista mais votada nas eleições de 4 de Outubro, também é certo que ela não reúne a maioria dos deputados no parlamento. Numa democracia representativa o governo deve ser entregue à vontade da maioria. A haver no parlamento um conjunto de forças políticas que assegure essa maioria e confirmando-se que subscrevem um programa, então os aparentes vencedores passam a vencidos. Qual é o drama? Não é assim nas mais avançadas democracias europeias?

A governação dos últimos quatro anos ficou marcada pelo flagelo social que se abateu sobre um grande número de portugueses. Sujeitos às condições draconianas do “resgate” financeiro, o governo de P. Coelho, para além de ter adoptado o “memorando de entendimento” como programa, fez questão de ser mais troikista que a troika. Mais preocupado em ultrapassar as exigências dos credores do com o sofrimento do povo que lhe confiou a governação. Retirou rendimentos e direitos sociais, vendeu património ao desbarato e empurrou para a pobreza e a emigração largas camadas da população.

O diálogo entre os partidos da esquerda parlamentar, visando a sustentação parlamentar de um governo, constitui uma importante alteração no modelo de funcionamento da política portuguesa. Haja ou não governo da esquerda, está aberto um novo ciclo. O sistema político passa a dispor de novas opções e as consequências serão certamente profundas.

Uma mudança estratégica na política portuguesa e na esquerda em particular.

Apesar da elevada resistencia dos seus principais protagonistas ao longo das quatro décadas de regime democrático, o sistema partidário português tem mantido uma fragilidade evidente – as forças genericamente classificadas como da esquerda, que facilmente dialogavam e acordavam matérias do chamado foro de consciência, revelavam-se incapazes do mesmo diálogo quando se tratava de abordar soluções de governação. Bem ao invés dos partidos da direita.

A concretizar-se um acordo parlamentar ou uma coligação PS-BE-PCP-PEV, tal significará um facto radicalmente novo na política portuguesa. Uma primeira vez que pode contribuir para ultrapassar traumas nascidos com o período revolucionário post 25 de Abril e que separou os partidos de esquerda por muitos e longos anos. Esse sistema cristalizou tornando o PS um partido central do sistema, posição que agora se acentua, mas que só admitia alianças à sua direita – com o CDS em 1978 e com o PSD entre 1983 e 1985.

A vaga conservadora iniciada na Europa por M. Tatcher nos anos oitenta (com R. Reagan nos EUA) associada ao colapso da URSS e do pacto de Varsóvia, abriram caminho à globalização néo-liberal. Disso foram demonstração a massiva desregulamentação dos mercados financeiros e das relações de trabalho ou a privatização generalizada de serviços públicos.

Grande parte dos socialistas europeus, capitaneados pelo New Labour de T. Blair, alinhou na tese do “fim da história” (F.  Fukuyama), a vitória do capitalismo como consequência da queda do bloco do leste europeu. Esse movimento conduziu à rápida descaracterização da origem trabalhista dos socialistas, capturando-os para estratégias e opções da direita dos interesses económicos e financeiros, que na União Europeia viriam a ser plasmados, anos mais tarde, em documentos como o tratado orçamental.

Um novo pragmatismo na esquerda – que se aproxima do que sempre existiu à direita. Continuar a ler

Advertisement
Standard
Geral

Grécia, a morte anunciada

OXI

O que, de certo modo pelo andar dos acontecimentos, seria expectável aconteceu. O Syriza abandonou a sua fachada de esquerda que a conservadora e reaccionária Europa adjectiva de radical, para assumir a sua matriz social-democrata.

Depois de fazer um referendo em que os gregos disseram claramente NÃO, Tsipras e o Syriza, a maioria do Syriza, aceitaram tudo, quase integralmente tudo o que a troika exigia. Aumento do IVA, grandes cortes nas reformas, privatização dos transportes, dos portos e dos aeroportos, etc. Uma capitulação em toda a linha, submetendo-se a todas as medidas que dizia rejeitar, depois de ter sido eleito com um programa em que afirmava que nunca iria aceitar. No Parlamento grego faz um discurso vergonhoso, trocando os pés pelas mãos, numa releitura miserável do resultado do referendo. Votaram NÃO às propostas da troika, mas NÃO votaram a favor da saída do euro. Para não sairmos do euro, temos que aceitar as medidas contra as quais se votou no referendo. Para a miséria moral, a vigarice intelectual ser completa, faz uma pirueta e inventa uma nova treta “este acordo levará a um programa europeu. O FMI terá apenas papel de consultor técnico. A troika, como a conhecemos, chegou ao fim.”. Para o quadro das tretas, mentiras e mentirolas ficar completo orgulha-se de evitar o grexit e de se ir discutir pela primeira vez a sustentabilidade da dívida, quando todo o mundo sabe que a dívida grega é impagável

Com o que vai desabar novamente sobre a Grécia, sem que o problema estrutural da dívida seja resolvido, o país vai entrar nos cuidados paliativos, com a morte anunciada. Ficará para sempre a lição de dignidade do povo grego que, contra todas as miseráveis  e violentas chantagens, votou NÃO, uma lição de democracia, de luta contra os poderes dominantes! O povo não cedeu. Cedeu o governo e o partido em que o povo tinha confiado.

Para uma certa esquerda que embandeirou em arco com o Syriza, as esperanças que se iria mudar a face política da Europa esfumaram-se com o desabar do castelo de cartas do programa Syriza. Esperanças infundadas se tivessem olhado atentamente as práticas do governo de Tsipras que nada fez para adquirir força nas negociações, Se atentassem ao seu demissionismo que os fez não se dotar com as ferramentas mínimas que seriam uma base, mesmo frágil, para reverter a situação catastrófica em que a Grécia estava mergulhada. Ferramentas e meios que tinham quando assumiram o governo e que desprezaram por vício ideológico, como referimos aqui no blogue.

Para a direita e direitinhas, o grande gozo de terem quebrado o Syriza. Verem-no de braço dado com a direita e centro-direita grego, a Nova Democracia, o Pasok, o To Potami, além do Anel, com quem já estavam coligados. É a alegria do triunfo da Europa, afirmando-se como um espaço não democrático. Da exibição pública de uma Europa subordinada ao grande capital e aos seus interesses financeiros, especulativos.

O Syriza colocou a Grécia em estado de coma profundo, ligada à máquina. Um dia, não será muito longínquo, a máquina será desligada para mal do povo grego. Farfalharem esperanças numa nova política que nunca existiu por não terem dado um passo, um só passo firme nessa direcção. Uma política de muitas parras sem um bago de uva, para entretém das hostes de esquerda por esse mundo fora. Uma política que enganou sem absolvição o povo grego, comprometendo o seu futuro. A História não lhes perdoará a traição.

Para a esquerda no seu todo, da mais firme à mais vacilante, é uma derrota. Para uns, o Syriza anunciava uma grande vitória sobre a Europa de burocratas sem alma nem sentido político, guiados por falsos pragmatismos que os transformam em eunucos de guarda ao harém do grande capital. O que não aconteceu, nem aconteceria. Para outros o abrir de uma pequena brecha na cidadela política e ideológica da CEE, do BCE, do FMI, fazendo entrever uma vereda no beco sem saída em que está estacionado em estado agónico o mundo actual. O que poderia ter acontecido.

Estes seis meses de tropeções, ambiguidades, vacilações Syriza, as ilusões que borboletearam, demonstram a actualidade do Radicalismo Pequeno Burguês de Fachada Socialista, de Álvaro Cunhal. Impõem-se reler a sua Introdução de uma meridiana clareza na análise ideológica e política que faz da emergência desses grupos, nos seus aspectos positivos e negativos.

Para a esquerda, para as esquerdas, analisar, estudar e perceber as lições syrizas é trabalho urgente. A História também não lhes perdoará se não o fizerem.

PS. Por cá, os porcos refocilam no chiqueiro. Numa das linhas da frente um idiota contabilista que agora julga que o decorrer dos sucessos lhe dão razão. Publica um tweet de um amigo o aconselhava a mudar de opinião em relação à Grécia. O amigo é um tonto como ele. Ele não mudou, nunca mudaria, nem mudará. A noz de massa cinzenta que lhe ocupa o crânio não lhe dá hipótese. Para ele um tweet: Zé, li o teu tesxto a agradecer o pacote de austeridade ao Syriza. Continuas estúpido como sempre! Nem vale a pena recordar-te que a dívida grega é impagável A dívida grega como a portuguesa, são impagáveis! É a verdade, estúpido! Impagáveis e com as políticas do PSD/CDS/PS/SYRIZA/PASOK/NOVA DEMOCRACIA ou outros quejandos, a agravar a vida de portugueses e gregos! A economia nunca sairá da cepa torta! As tuas contas são uma merda! Tentas enganar o pagode! Nem para isso tens jeito! Se tivesses alguma vergonha e um minimo sentido de auto-crítica já tinhas deixado de debitar parvoidades! O Brassens é que te topa , a ti e aos teus parceiros de ginjeira! 

Standard
Política

Há uma alternativa à esquerda?

Nude with calla lilies, de Diego Rivera

Nude with Calla Lilies, de Diego Rivera

O velho debate sobre a união das Esquerdas está de regresso na sequência dos efeitos devastadores da austeridade e do paulatino desmantelamento do modelo social construído após o 25 de Abril – o resultado da conjugação das maiorias da Direita com o “memorando de entendimento” com a tróica.

Repetindo reflexos condicionados que vem pelo menos desde 1976, as esquerdas partidárias tem atravessado o período do “ajustamento” sem esboçarem aquilo porque anseiam muitos dos que se reconhecem na Esquerda e nos seus partidos – a criação de uma alternativa política consistente, susceptivel de defender com eficácia um país mais justo e equilibrado.

Assobiando para ar

A inércia parece vir fazendo o seu caminho. Apesar de todos os ataques soezes ao Portugal de Abril e àquelas que são as próprias bandeiras dessas Esquerdas: o aviltamento da escola pública, a degradação do serviço nacional de saúde e da segurança social, assim rasgando contratos há muito estabelecidos com os cidadãos; desregulamentando as relações laborais em proveito do factor capital e liquidando a contratação coletiva; privatizando e vendendo ao desbarato empresas estratégicas para o interesse do público.

Malgrado o Portugal que protesta nas ruas em manifestações massivas que reúnem gente de todos as condições e sectores, as Esquerdas tem-se revelado incapazes de, pragmaticamente, se constituírem como uma alternativa que possa catalisar o sufrágio dos eleitores. Disso dão conta os também relativamente débeis ou mesmo contraditórios sinais que nos chegam das sondagens.

Chegados que sejamos às eleições legislativas de 2015 (ou antes) teremos provavelmente essas Esquerdas pouco ou nada mais fortalecidas do que estão no presente. Com o jogo político a regressar à velha e conhecida casa de partida – o PS no poder.

As Esquerdas e o PS

O Partido Socialista é, em Portugal, como na maior parte da Europa, um partido centrista fortemente condicionado pelos poderes dominantes na União Europeia. A sua família política é, aliás, corresponsável pelo estado a que as coisas chegaram. E em matéria de governação o PS rapidamente se alia à Direita – tem sido essa a sua história.

Quando e se chegar ao poder, o partido socialista será confrontado com mudanças profundas: o degradado ou mesmo desmantelado Estado Social, o Portugal empobrecido da mão-de-obra barata e com classes médias a definhar. Com um forte desiquilíbrio social, penalizador de quem trabalha. E não será esse PS que fará muito diferente do que se tem visto. Seja por si só, seja aliado à Direita. PS que tem aliás vindo a ser habilmente assediado para compromissos na manutenção de muitas das opções da atual maioria.

Mas há que atender que, como grande partido de eleitores, o partido socialista cobre amplas faixas desse eleitorado que se reconhece na visão solidária e social da Esquerda. A participação de sectores socialistas num projecto alternativo não pode ser excluída.

Eleitores fora da governação

Será que o PCP e o BE, que são hoje os dois principais polos à esquerda, podem criar uma nova e credível alternativa? São eles as Esquerdas que desde há décadas estão excluídas (mas que de certo modo se excluíram) do chamado “arco da governação” – essa curiosa expressão criada para representar o rotativismo.

Representaram nas eleições de 2011 13 por cento dos votos expressos, num total de mais de 730 mil eleitores, então com uma abstenção a rondar os 42 por cento. Nas legislativas de 2009 haviam atingido uma votação superior a um milhão de votos, quase 18%.

Constatamos que há um potencial de cerca de vinte por cento de votos expressos sistematicamente bloqueado e sem perspetivas de contribuír para uma solução de Governo! Um eleitorado de que se não conhece a potencial dimensão, representado em partidos e outros agrupamentos políticos, mas não só. E que dizer dos diversos movimentos sociais oriundos ou dinamizados nas Esquerdas?

A apresentação a sufrágio de uma nova mas consistente plataforma política pode concretizar esse potencial eleitoral. Pelo factor novidade, por representar o encontro de áreas politicas distintas mas em convergência. Enfim, por autorizar uma esperança aos seus eleitores. E que poderá ser um real factor de mudança – seja pela dimensão da sua expressão, seja pela recomposição do equilíbrio de forças no centro e na esquerda do espectro partidário.

Conhecemos a traumática história de dissensões que divide as Esquerdas “à esquerda” do PS. Na sua maior parte são velhas e bolorentas questões quando confrontadas com o desastre que se abate sobre o país. O que é notável é que elas nunca tenham sido pragmaticamente ultrapassadas, ou colocadas entre parenteses, para que pudesse ser oferecida ao eleitorado uma alternativa eleitoral credível e com expetativa de poder contribuir para alterar qualitativamente o quadro do poder político em Portugal. Para alterar o também velho e caduco rotativismo que governa o país há quase quatro décadas. Será possível essa reforma?

Reforma e revolução

Estarão essas Esquerdas a “guardar-se” para o post regime se este falhar? Ou para a revolução? É que se o regime falir correm o risco de ir pela “pia abaixo” junto com os restos desse regime de que, de uma ou outra forma, fazem parte e são também corresponsáveis, apesar de todas as diferenças.

Será que basta influenciar e ter um papel central nas estratégias sindicais e dos movimentos de opinião? Ou nas autarquias? Ou na rua? Esta estratégia, que tem virtudes e resultados, tem também limitações.

O PCP é um grande, disciplinado e influente partido, porventura o mais influente partido comunista da Europa. Mas tem parecido não ambicionar a mais que guardar as fortalezas e condicionar a governação a partir de fora. Temerá porventura o “abraço de urso” que resultou da extraordinária experiencia governativa dos seus camaradas franceses por ocasião do Governo do programa comum que PCF e PS levaram à prática no princípio dos anos oitenta no primeiro mandato de F. Mitterand? Mas registe-se também o exemplo recente da Front de Gauche (ver aqui) que os comunistas franceses desta geração propõem actualmente aos eleitores.

Quanto ao BE, o seu futuro é uma incógnita, a acreditar nas sondagens, dadas as cisões e dissidencias. Mas mantém uma reconhecida influência no mainstream.

As dificuldades de um programa

Falta pois o principal: a constatação da existência de uma vontade, a sua expressão e um programa comum. Não será seguramente um debate fácil: como financiar a divida pública; o euro; que nível de federalização para a UE; qual o papel do Estado na economia; como pagar o Estado Social; pacto orçamental europeu…

Há sinais de movimentação. Sinais contraditórios, é certo. Algo se move, mas que carece de expressão pública. Surgiu o Manifesto 3D (Dignidade, Democracia e Desenvolvimento) e mais um partido, o Partido Livre. Mas, em boa verdade, sem o empenho das duas grandes forças da Esquerda, não se anteveem mudanças de fundo. Irá o PL trazer mais votos às Esquerdas? Ou contribuirá para a sua ainda maior repartição e perca de eficácia eleitoral? A pergunta poderá ser respondida nas eleições europeias de Maio.

PCP e BE mantêm um “acordo de cavalheiros” no parlamento. Tem havido diligências comuns. É positivo. E o assunto reentrou com força no debate público. Já se percebeu que são pequenos os passos e que a mudança do status quo não será fácil.

Há muita coisa em jogo e muitas trincheiras do mesmo lado por aproximar. Mas oxalá esses pequenos passos conduzam rapidamente a uma proposta sólida. O tempo escasseia.

Standard
Política

Moção de censura? Sim. E depois?

A credibilidade e a capacidade política do governo Passos Coelho ficaram seriamente danificadas com a questão TSU. Representando um veredicto popular sobre as políticas da troika, a manifestação popular de 15 de Setembro (e certamente também a de 29) bem podem significar o principio do fim deste governo e desta maioria. E o que tem a Esquerda para oferecer ao povo?

Percebe-se que a capacidade de decisão de P. Coelho foi seriamente afectada e que o governo navega à vista, tendo interiorizado a imensa contestação que, “orgânica” ou “inorganicamente” alastra pelo país. Pressionado pelos agentes da troika e pelo povo em sentidos contrários, o governo dá mostras de desorientação.

Um governo está, por regra democrática, a prazo. E no actual contexto esse prazo pode vir a ser muito breve. Se a coligação PSD-CDS for apeada do poder, quem lhe pode suceder? Com a atual composição parlamentar só a reedição do bloco central PSD-PS reuniria uma maioria; ou como recurso um governo de inicial presidencial.

Mas a verdadeira questão é como se pode gerar uma verdadeira alternativa de políticas, susceptível de ser sufragada pela maioria dos portugueses.

O crescente afastamento dos portugueses face aos “políticos” e o desprestígio da vida partidária não abonam em favor de uma sociedade moderna e democrática. Mas demonstram também que não tem sido geradas alternativas suficientemente credíveis no interior do actual sistema político-partidário.

Apesar de as responsabilidades pelo actual estado de coisas ser claramente atribuível aos partidos do auto-designado “arco da governação” (PS, PDS e em menor medida o CDS), que se reveza na governação há mais de trinta anos, os políticos são todos “farinha do mesmo saco” para uma parte muito significativa dos portugueses.

Atenhamo-nos ao espectro partidário existente, já que não parece que estejam em vias de por aí surgirem novos protagonistas…

Os partidos

O PS. É o partido central do actual sistema político, oscilando entre a social-democracia e “terceira via” néo-liberal. Os trágicos resultados da anterior governação socialista irão pairar por muito tempo sobre o partido. É credível uma alternativa à Esquerda que inclua o PS? Se sim, como poderão os socialistas compatibilizar a aceitação do memorandum de entendimento, de que foram primeiros responsáveis, com o repúdio pelas medidas que ele implica e cujo fracasso está à vista? Como desatará a Direcção socialista este nó?

O PCP. Mais que nos votos, a influência do PCP mede-se nas organizações sociais e nos sindicatos. A sua área de poder é tradicionalmente o mundo autárquico. Desde 1976 nunca foi claramente perceptível qualquer aposta táctico-estratégica do PCP para aceder ao poder executivo. Está assim por perceber se o PCP está disponível para integrar uma solução de convergência com o(s) outro(s) partido(s) da esquerda parlamentar? Ou mesmo uma solução mais ampla e de mínimo denominador comum.

O BE. Parece assente que, com maiores ou menores oscilações nos resultados eleitorais, o Bloco assentou arraiais e o seu peso conta no xadrez político. Percebe-se no seu discurso uma vontade de aceder ao poder. A mudança de liderança em simultâneo com um novo modelo dual é uma fase crítica para este partido que ainda mantém diversas formações políticas no seu interior.

Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português não estão aparentemente afastados por muito. Votam conjuntamente no parlamento com frequência. Partilham, cada um na sua trincheira, muitas lutas. Mas há escolhos históricos por ultrapassar, aqueles que derivam ainda dos enfrentamentos entre o PCP e a extrema-esquerda nos primórdios do regime democrático.

Com as posições actuais a Esquerda está longe de se constituir como uma alternativa consistente e credível. Tem contra si um histórico de desentendimento, face a uma direita pragmaticamente coligável. Mas como o “caminho faz-se andando”, vejamos.

Uma plataforma comum

A relação com a troika é hoje central e incontornável.

É possível rejeitar o memorandum de entendimento com a troika e recuperar a soberania? Se o fizermos como se procederá ao financiamento do país? Como se honrarão os compromissos com os credores? Euro, sim ou não?

Qualquer alternativa de Esquerda que se perfile terá que responder, de forma credível e circunstanciada a estas perguntas. E reunir consenso nas respostas e soluções apresentadas. E estar disposta a traduzi-las num programa político e económico e numa coligação ou frente política que o suporte. E a arcar com o ónus de governar. Não havendo soluções de um só partido, poderão haver soluções de programa?

Se a Esquerda não o fizer continuará a ser vista pela maioria da população e do eleitorado como uma não-alternativa! E o rotativismo continuará a fazer o caminho por mais uns tempos.

Standard
Política

A esquerda de Mário Soares

Será que Mário Soares, quando escreve que para ele é “claro que a Esquerda é hoje diferente do passado” e que “precisamos de voltar aos nossos valores [os da esquerda], sem perder de vista as novas carências sociais e políticas de uma sociedade em rapidíssima mudança“, tal declaração equivale a um reconhecimento de que o PS, assim como outros partidos socialistas europeus, se desviaram de tal forma dos “valores” de esquerda que se transformaram em formações partidárias irreconhecíveis que apenas tentam abocanhar a maior fatia que conseguirem do  grande centrão político em que todas se tentaram misturar?

Ia embalado na leitura do artigo de Soares de hoje no Diário de Notícias já  com esta questão na cabeça, para a qual sabia a resposta, e logo aparece o fundador do PS a afirmar que o “Socialismo Democrático, devemos reconhecê-lo, nos anos sombrios de Bush, embarcou no economicismo da “terceira via” defendido por Tony Blair“. A seguir, Soares dá uma sova no que agora se chama a “esquerda radical” (designação que se tornou mais frequente com o rescaldo das eleições gregas), e que, aliás é uma curiosa definição da esquerda quando aplicada no caso português, ou melhor, daqueles que não abandonaram nunca os valores de esquerda no nosso país e sempre os defenderam e, por isso, acabam com a designação, julgo que algo depreciativa na boca de quem a usa, de “radicais”. Uma distinção que apenas visa distinguir a esquerda boa, supostamente a do PS, da esquerda má, a dos comunistas e bloquistas, naturalmente para criar uma nova narrativa de bons e maus, de claro e escuro, do que é a “esquerda democrática”, aquela que, afinal, Soares agora reconhece ser a culpada do estado a que chegámos.

Se assim não fosse, Mário Soares não teria necessidade de afirmar que é necessária uma “refundação socialista” que volte “aos seus valores de sempre” (sempre esquecidos uma vez no poder), que seja “capaz de dialogar em permanência com o movimento sindical, no seu conjunto, com os verdes, tão dispersos e estranhos aos partidos, e adaptar-se às novas realidades do mundo de hoje, para poder sair da crise institucional, social, económica e política, carente de valores e de dirigentes capazes“.  Mais interessante ainda é o recado que Soares envia, sem destinatário identificado, mas que não custa a adivinhar, no qual refere “militantes nacionais” que “algumas vezes se enganaram de partido, faltando-lhes a sensibilidade social e a vontade política para diminuir as desigualdades, entre as pessoas e os Estados e, acima de tudo, conservando sociedades de bem-estar“.

Escreve o ex-presidente que em Portugal, por exemplo, “sempre tivemos, além do socialismo democrático, partidos da Esquerda radical, comunista, mais fechada hoje do que nos tempos de Cunhal (que tinha uma grande flexibilidade tática) e a Esquerda bloquista que ficou, eleitoralmente, entalada ente os partidos comunista e socialista. Mas afirmou-se ainda a Esquerda não partidária, cidadã e a Esquerda dos “indignados”, com laivos anarco-populistas“. Não deixa de ser curioso ouvir Soares a falar, em oposição às práticas da actual direcção do PCP, da “flexibilidade tática” de Cunhal, certamente em tempos e conjunturas absolutamente distintas, e não ser capaz de uma condenação mais eficaz, que não apenas um mero “reconhecimento” do que foi o erro “economicista” da terceira via detectado há muito pela tal “esquerda radical”…

Soares está assustado perante a possibilidade de o PS continuar a perder boa parte da sua influência eleitoral e clama já pelo ruptura com a troyka, reivindicando a necessidade de o partido regressar aos valores que ele diz de esquerda. Por isso aposta já na criação de uma linha entre o que designa, com letra grande, aliás, por Socialismo Democrático e esquerda radical para assustar os mais impressionáveis. Soares sempre viu mais longe que os outros e, perante as vozes crescentes que defendem convergências na esquerda “radical”, ensaia um exercício de triangulação política, que foi, aliás, muito bem executado por François Hollande, no qual tenta apoderar-se dos valores de esquerda que, a acreditar nele, sempre residiram no PS.

Soares, como sempre, é sibilino e não desilude. Sabe muito, mas engana cada vez menos. É que muitos já perceberam que o PS, com Soares à cabeça, padece de um grave problema de dupla personalidade que faz com que pratique no poder o contrário do que afirma quando na oposição.

A esperança, sejamos claros, é que o PCP, como grande e verdadeiro partido de esquerda que é (deixemos o “radical” de lado) seja capaz de caminhar no sentido da construção de plataformas de acção política e, quem sabe, eleitorais, com o Bloco de Esquerda e outros “democratas e patriotas”, para utilizar a expressão incluída no documento preparatório do próximo congresso do PCP, para que se constitua uma força verdadeiramente capaz de influenciar o rumo das políticas do país.

Esta é a discussão que se impõe.

Standard
Internacional, Política

Europa-América

Enquanto a Europa se desilude com uma esquerda que se rendeu às teses da supremacia do mercado, na América do Sul uma esquerda assumidamente ideológica e que aposta no combate à pobreza tem vindo a conquistar o sub-continente. A recente eleição de Ollanta Humala no Peru é mais uma demonstração desse vento que varre o sub-continente.

A América do Sul não faz parte das preocupações da maioria dos portugueses. Mais atentos aos lugares turísticos brasileiros e com a excepção do relato de alguns episódios da política brasileira, quase tudo o que se passa naquele sub-continente pouca relevância merece nos nossos media. Certamente resultado da ligação histórica que a generalidade daqueles países mantêm com Espanha.

Ao contrário da maré neo-liberal que varre a Europa e que tem vencido quase todas as recentes eleições no “velho continente”, no sul do continente americano (13 países, 357 milhões de habitantes em 2003) regista-se exactamente o movimento contrário. Com o final da guerra fria governos ditatoriais e de extrema-direita que dominavam numerosos países daquela parte do mundo, bem representados pelas sanguinárias ditaduras de Pinochet (Chile 1973-1990) e J. Videla (Argentina 1976-1983), foram paulatinamente arredados do poder.

Por via eleitoral Brasil, Argentina, Venezuela, Bolívia, Uruguai, Paraguai e Equador tem hoje governações politicamente à esquerda. Um processo iniciado com a eleição de Hugo Chávez em 1998 (e as importantes medidas que introduziu num país marcado por enormes contrastes) e extraordinariamente acelerado com a eleição do ex-operário Lula da Silva em 2003 para a presidência do maior país da América do Sul. Brasil cuja taxa de crescimento do PIB atingiu 7,5% em 2010. As opções “esquerdistas” dos eleitorados não parecem ter perturbado o crescimento das economias latino-americanas que, com excepção da Venezuela (-1,9%) atingem valores notáveis, 15% no Paraguai, 8,5% no Uruguai, 7,5% na Argentina.

O vento de mudança e de esperança que varre a Sudamérica representa um profundo corte com as imposições geoestratégicas que dominaram o sub-continente nos tempos em que era qualificado como o “quintal” dos Estados Unidos. No Peru (29 milhões de habitantes), com a recente eleição de Ollanta Humala, que há dias tomou posse, esse vento acaba de mais uma vez se fazer sentir. O Peru tem uma história repleta de desigualdades sociais, dramas e traumas tão perturbadores como a hiper-inflação de finais dos anos oitenta, as elevadas tensões sociais ou a sangrenta e feroz luta sem quartel e sem regras que opôs o Estado a grupos revolucionários radicais como o Sendero Luminoso e o Tupac Amaru durante a presidência de Alberto Fujimori.

Com uma América do Sul à esquerda e a crescer economicamente, os posicionamentos parecem referenciar-se a partir de duas principais fontes de inspiração, o Brasil de Lula da Silva (e agora da Dilma Roussef), apresentado como uma declinação reformista e de sucesso que procura garantir conquistas sociais numa economia de mercado, e a Venezuela de Hugo Chaves com a sua revolução bolivariana servida com políticas sociais dirigidas pelo Estado aos estratos mais baixos da população.

Como sempre a questão central do papel e da intervenção do Estado. Por isso o novo presidente peruano afirmou no seu acto de posse que “necessitamos de mais Estado”, tendo anunciado medidas de ataque à pobreza inspiradas nas experiências brasileira e venezuelana.

Standard
Política

Porque Amanhã é Sábado e eles vão-se entender

Em democracia deveríamos legitimamente esperar que houvesse uma competição genuína entre os partidos. Não é isso que acontece e o confronto a que assistimos sobre o Orçamento de Estado 2011, demonstra-o abundantemente. O percurso que tem tido o sistema democrático representativo é em Portugal o da crescente indiferenciação ideológica e programática entre partidos ditos de esquerda, o PS, e os de direita, PSD, CDS e apêndices menores. Reduzem a sua acção e medem a sua representatividade pelos resultados da competição eleitoral, com votos angariados através de programas de brancas convicções socialmente descomprometidas. Essa tem sido a evolução dos sistemas partidários europeus, que os aproximam do sistema partidário norte-americano, em que a democracia representativa deixou de ser o lugar da luta de classes por via pacífica, para andar a reboque dos interesses das corporações económico-financeiras. Os partidos transformaram-se numa finalidade em si. São o prolongamento do aparelho de Estado, representando determinados interesses económicos que lhes dão apoio variável. São organizações eleitorais sem definição nem mobilização ideológica. Reduzem a sua actividade à conquista do voto. São uma inexistência existente, albergues espanhóis onde acontecem todas as mancebias, das mais claras às mais opacas, com quem de facto manda. É um sistema democrático em que se faz a apologia da democracia quanto mais ela tende a confundir-se com os partidos e quanto menos a realidade partidária corresponde ao ideal democrático.

Há sempre uma reserva política e ética nesse sistema e que situa à esquerda. A esquerda que luta para a alteração radical dessa sociedade e que, sem recorrer ao arsenal inexpugnável de verdades axiomáticas que conduz irremediavelmente ao capitulacionismo oportunista, procura um novo espaço onde se redescubra a socialização da humanidade contra a actual atomização da vida. Onde reinventando a actividade laboral, económica, social, política, filosófica, artística e literária, em permanente confronto com essa sociedade, se construa uma sociedade outra, com um novo humanismo.

O que, nos tempos actuais, se passa em Portugal, na Europa e no mundo confronta a esquerda obrigando a repensar-se relendo os revolucionários clássicos, a adquirir uma nova respiração em que, aprendendo tudo com o que é positivo no património revolucionário,  sem esquecer os abismos, alguns negros, por onde se descaminhou, avance para que “ faça o tempo sair dos eixos para o tigre saltar a céu aberto e os tempos nascerem do tempo,” na admirável formulação de Walter Benjamin.

A esquerda, no mundo e em Portugal, tem uma exigente e bela partida de xadrez a disputar, com vários tabuleiros em simultâneo, com as mais variadas aberturas, defesas e gambitos, com a vantagem de saber que a especialidade dos seus adversários é a bisca lambida, como se vê aqui e agora no debate do orçamento, uma pedra de toque, em que dois partidos estão à mesa a cartear os mesmos trunfos e um terceiro mete-se debaixo da mesa fazendo batota com as cartas que lhe dão.

A esquerda terá que enfrentar as barragens de fogo real e fictício dos seus adversários, dos mais medíocres, aos mais idiotas inteligentes e aos de facto inteligentes, que plantam a trivialidade do conformismo às exigências do capital em toda uma comunicação social serventuária, inventando inevitabilidades para salvar um sistema que nenhuma dignidade nem futuro tem para oferecer, construindo a mentira de um muro intransponível.

Há que os combater “contra todas as evidências, com alegria” como escreve Manuel Gusmão num dos seus belos poemas, para que a civilização triunfe da barbárie.

Standard