Na ocasião de mais um aniversário desta emblemática colectividade, um breve texto sobre a Sociedade Musical Capricho Setubalense não é tarefa fácil, atendendo ao historial de 148 anos de actividade ininterrupta no fomento da participação associativa e na promoção e desenvolvimento cultural e artístico e ao peso de uma produção cultural assinalável. Esta história escreveu-se com o trabalho voluntário de muitas gerações de associados, dirigentes, músicos, actores, atletas, e imensos amigos, que dedicaram o melhor de si a um projecto e a uma instituição sociocultural que é de toda a comunidade setubalense.
Sublinho, por isso, uma só componente da sua acção, a que lhe determina a razão de existir. Em 22 de Novembro de 1867, dia de Santa Cecília, padroeira dos músicos, é fundada oficialmente a colectividade e a sua Banda de Música. Esta formação musical, hoje única na cidade, tocou neste dia como, desde então, foi presença incontornável nos momentos marcantes da vida de Setúbal, como são exemplo a actuação na inauguração do Monumento a Bocage, em 1871, ou ter saído a tocar pelas ruas em 4 de Outubro de 1910, proclamando a República que se implantaria no dia seguinte.
A Banda foi fundada no reinado de D. Luís I, entre a Questão Coimbrã e as Conferências Democráticas do Casino, participou na Revolução Republicana, atravessou meio século de ditadura fascista, assistiu à Revolução de 25 de Abril e viveu o incremento do associativismo cultural desde então.
As bandas filarmónicas, em Portugal, são um produto do século XIX. Para o compreender, há que recuar um pouco no tempo. No final do Antigo Regime o absolutismo marcava a Europa e a produção cultural era, assim, centralizada. A partir de 1750 surge a emergência de uma cultura urbana e nas principais cidades da Europa a classe média desenvolve uma prática de separação do espaço religioso do profano. Criam-se os espaços públicos de sociabilidade e abre-se o espaço doméstico, à imagem do que a aristocracia praticava desde a Idade Média. Em Portugal, todavia, há uma grande limitação ao encontro público fora do contexto religioso, pelo que a sociabilidade se desenvolve no espaço doméstico.
A Igreja perde rendimentos que lhe permitam assegurar uma produção cultural de ponta, passando a garantir apenas a liturgia tradicional. Simultaneamente desaparecem as ordens religiosas, subsistindo unicamente as mendicantes e as assistencialistas. Dá-se o desaparecimento sucessivo dos ducados. Com as revoluções liberais, desenvolve-se, cada vez mais, a cultura urbana, difundindo-se as bibliotecas, a literatura de cordel, a música urbana. O Estado e a Igreja reduzem significativamente o mecenato cultural.
No século XIX, embora o território nacional continue a caracterizar-se por uma prática cultural rural, associada às colheitas e às estações, nas cidades do país afirma-se uma elite burguesa local – os donos das fábricas, das terras, das casas – que enriquece muito rapidamente. Copiam o que vêm em Lisboa e surgem deste modo alguns equipamentos, como os teatros de modelo italiano, algumas bibliotecas, associações. Na impossibilidade de formar músicos e orquestras fora de Lisboa, por iniciativa da média burguesia urbana começam a formar-se bandas filarmónicas, que beneficiarão de ampla disseminação no séc. XIX e durante a primeira República.
As bandas filarmónicas e as colectividades a elas associadas foram e são estruturas de cultura que imprimiram a descentralização de equipamentos e a democratização do acesso ao ensino da música, num país onde a concentração dos recursos culturais mantém hoje características próprias de um regime absolutista.
No primórdio de um novo século, a Capricho Setubalense mantém o seu paradigma – a Banda, a Escola de Música, o Grupo de Teatro, com um activo grupo juvenil, a Dança, com expressões plásticas variadas – e, sem alterar a sua identidade, imprimiu a abertura do seu espaço às novas tendências da criação artística, com natural destaque para a música – da música moderna, ao jazz e ao fado – colocando o seu equipamento cultural ao encontro das necessidades dos criadores. Esta realidade traduz-se na oferta duma intensa agenda cultural, que assenta numa consolidada rede de parcerias com as autarquias, outras associações, escolas e muitos grupos informais.
Se analisada a oferta actual da Capricho, quer na programação de eventos, quer nas actividades educativas, identificamos facilmente a mesma matriz de há cerca de século e meio, ou seja, uma produção cultural marcadamente urbana, que concilia as formas intemporais à criação de vanguarda, onde se cruzam públicos tradicionais com os públicos das subculturas alternativas.
Podemos assim deduzir que esta sociedade musical, criada há 148 anos por capricho, perdura hoje por vontade expressa da Cidade – dos alunos, dos músicos, dos criadores e agentes culturais e dos distintos públicos que tem contribuído para formar. Está, por isso, garantido o seu futuro.