Hoje, assinalando o quinto aniversário da morte de Vasco Gonçalves, realizou-se uma romagem ao cemitério do Alto de S. João. Justíssima homenagem a um homem de honra que honrou o 25 de Abril e que foi decisivo no avanço das conquistas de Abril. Não querendo deixar de assinalar esse facto nos 40 anos do 25 de Abril, publico um texto, sobre esse militar de rara qualidade humana, que escrevi para um livro que sobre Vasco Gonçalves irá ser editado em breve.

Conheci Vasco Gonçalves antes de o ter visto, sem supor que algum dia o conheceria pessoalmente.
Estávamos em plena guerra colonial. Dois amigos meus, ambos da Arma de Engenharia, foram mobilizados para Angola em períodos diferentes, mas temporalmente próximos. Quando num interregno da guerra vieram a Portugal, contaram-me a sua surpresa ao serem recebidos por um coronel, comandante da Arma de Engenharia, que fez um discurso bem diverso do que esperariam. Discurso centrado na importância da Arma de Engenharia, no rigor que deveriam ter na utilização dos meios, no trabalho que a Arma de Engenharia podia encontrar, para lá do seu trabalho estritamente militar, no apoio às populações locais, fazendo referência, colocando a tónica em realidades com quais se iriam defrontar que evidenciavam um subdesenvolvimento ineludível, deixando subentender que esses eram sinais da exploração colonial. Mais extraordinário era não fazer emulação do espírito guerreiro ou traçar algum cenário de guerra até porque centrava o discurso em não se correr riscos para que todos voltassem vivos e sem traumas. Um discurso em que a guerra existia, não era negada, mas decorria em plano secundário, como uma evidência que teriam que afrontar, mas que deviam evitar e só atacar em último caso, em autodefesa, para preservação da sua integridade. Discurso de um homem preocupado com os subordinados às suas ordens, com exigência no trabalho que iriam realizar, que esperava deles profissionalismo sem tecer considerações laudatórias à condição militar em que o iriam exercer. Um discurso expurgado daquelas tiradas a que estavam, estávamos, habituados a ouvir na recruta e quando já oficiais, no convívio com outros oficiais tanto de carreira como milicianos, por vezes mesmo da forma mais inesperada e com os mais inesperados protagonistas.
A sua surpresa foi tal que, se ao princípio tinham a cabeça relativamente desligada, esperando ouvir mais do mesmo com algumas variações, do que já estavam, estávamos, habituados a escutar de oficiais, sobretudo de um oficial de carreira já com a graduação de coronel, rapidamente ficaram atentos, atentíssimos, àquele discurso que, sem deixar de ser de um militar, com honra e pundonor na sua carreira militar, se desenquadrava do jargão que, de uma maneira ou outra, acabava sempre por emergir. Uma enorme surpresa, ainda maior surpresa por se estar num teatro de guerra que a propaganda apresentava como estar a ser vencida. Nada disso perpassava no discurso do coronel Vasco Gonçalves, o comandante da Arma de Engenharia, o que os fez olhar para os militares de carreira de outro modo, arrasando estigmas e preconceitos que os milicianos tinham antes de serem mobilizados e que cresciam à medida que iam avançando na vida militar que lhes era imposta. Estava para lá das excepções que já tinham conhecido e que confirmavam a regra do que se poderia classificar como inteligência militar.
O nome ficou no subconsciente pelo retrato impressivo feito por esses meus amigos. Gravou-se mais pelos relatos que fizeram do que tinha essa sua vivência em Angola, dos caminhos em que se cruzaram com o “seu” coronel que os defendia e protegia contra muitas das exigências, algumas insensatas, de outros militares. Foram anos que decorreram trabalhando para o exército, mas sempre que possível pondo esse trabalho a reverter para a melhoria das condições de vida das populações. Rasgar uma estrada ou construir uma ponte fazia-se quase sempre nessa dupla perspectiva. Raramente ou mesmo nunca o objectivo militar era o único norte das intervenções. Paralelamente, o desperdício em homens, materiais e tempo era combatido. Achavam isso extraordinário. Como achavam extraordinário nunca terem entrado directamente num cenário de batalha. O coronel tinha dito e fazia tudo para fosse uma realidade. O importante era regressarem a casa sem danos nem traumas.
Voltaram incólumes para uma metrópole que continuava submetida ao fascismo, em que um ditador caíra da cadeira para a demência que os próximos alimentavam, alimentando desejos pessoais de substituir o ditador que o substituira, fazendo maquilhagens para induzir esperanças numa oposição vacilante. Tudo mudava para tudo continuar quase na mesma. Os braços repressivos do fascismo continuavam o seu trabalho brutal na defesa de um Estado ao serviço dos grupos económicos monopolistas, a guerra colonial permanecia num impasse apesar dos avanços dos movimentos de libertação. Na primeira curva, umas eleições tão manipuladas e falsas como as anteriores, fizeram murchar as esperanças na possibilidade de uma transição pacífica para a democracia. O que não impediu que muitos continuassem a negociar por portas travessas com o ditador, com o pretexto de ele estar refém de uma direita ultramontana que congelava uma suposta “primavera”, por ele desejada.
A luta contra o fascismo crescia. Nos finais de 1973, o regime rangia interna e externamente. Para agravar a sua sobrevivência, a crise do petróleo, corroeu a frágil economia de um Portugal colonizador e colonizado. Dominado pelos grupos económicos monopolistas nacionais subsidiários dos grandes grupos do capitalismo monopolista internacional. As primeiras fissuras profundas na estrutura militar surgiam aos olhos de toda a gente. Foi também um período em que a repressão da Pide, agora baptizada de DGS, se abateu violentamente sobre estruturas clandestinas. Finalmente, depois de vários episódios que amadureceram e aprofundaram a situação, o 25 de Abril derrubou a ditadura fascista, abriu as portas para a liberdade, a democracia, a descolonização. Ao levantamento militar seguiu-se, no imediato, o levantamento popular. Logo na tarde e noite do dia 25 a direita tentou controlar o MFA. O sinistro, como a história o iria mostrar, general Spínola tentou domesticar os capitães. A direita nunca dorme. Os interesses do capital apressavam-se a adaptar-se para não perderem os privilégios. Foram desfilando na comunicação social os homens que tinham feito o 25 de Abril. Onde estaria, por onde andaria Vasco Gonçalves?
Spínola, sempre conspirando contra a Revolução, é nomeado presidente da Junta Militar com que o MFA negociou e tornou-se Presidente da República. O primeiro Governo Provisório foi empossado. A luta política era intensa, como intensa era a luta popular. A direita sôfrega e assustada com a liberdade pelo ascenso da luta que se travava nas fábricas, nos campos, na rua, tenta um primeiro golpe com duas figuras na proa, Adelino Palma Carlos e Francisco Sá Carneiro, debaixo de um monóculo protector. Afundaram-se. Muito cedo, para o submarino emergir. Negoceia-se o 2º Governo Provisório. Um primeiro-ministro é imposto à Junta de Salvação Nacional e ao Presidente da República: o coronel Vasco Gonçalves.
Finalmente, aquele militar que conhecia coloquialmente adquiria forma humana. No seu primeiro discurso, mais que o conteúdo, o que me impressionou foi a força interior que transparecia, a convicção democrática que o animava, a confiança que transmitia, a frontalidade indesmentível que vibrava nas suas palavras e na sua presença física. Um homem assim tão directo, tão íntegro, não iria ter vida fácil no universo sinuoso da política, dos que queriam ser os protagonistas da história. Ele ia sê-lo, mas pelas melhores razões e não por se chegar à frente. Iria sê-lo por estar ao lado do povo, dos trabalhadores, dos camponeses.
Recordo um primeiro episódio demonstrativo do seu caracter. No âmbito do que tinha sido definido pela 5ª Divisão do Estado-Maior das Força Armadas, como a Aliança Povo-MFA, cuja primeira formulação teórica tinha sido feita por Álvaro Cunhal no inesquecível 1º de Maio de 1974, realizavam-se por todo o país sessões de esclarecimento. Não me lembro em que localidade aquela foi realizada. Foi filmada em directo pela televisão por contar com a presença do 1º Ministro, Vasco Gonçalves. Este, com muito sentido pedagógico, ia explanando à plateia as linhas mestras do seu governo, quando o seu discurso foi interrompido por palmas frenéticas que se iniciaram no fundo da sala e se foram propagando com a entrada e o avanço para a mesa de Otelo Saraiva de Carvalho. Estrategicamente atrasado, fez uma entrada teatral para cortar o discurso de Vasco Gonçalves e começar a falar disto e daquilo, como continua até hoje, porque não perdeu nem perderá o estro de falazar a torto e a direito. Vasco Gonçalves esperou que ele acabasse, que acabassem os aplausos e continuou a falar do que era importante.
E era importante como se viu pelas mudanças que trouxe à vida dos portugueses, no plano económico e social. Durante os governos de Vasco Gonçalves, do 2º ao 5º Governo Provisório, nunca os portugueses tinham dado tamanho salto qualitativo e quantitativo. Decidido e empenhado com o país e o povo, desde o primeiro dia enfrentou as aleivosias, as traições. Os episódios sucediam-se. Até ao 28 de Setembro, Spínola corporizava a face visível da reacção e as múltiplas tentativas de desacreditar as suas medidas governativas. Ultrapassou esse período sempre com grande dignidade, nunca fugindo a enfrentar os inimigos da Revolução. Aí se revelava a sua fibra de homem e militar. Atravessou, sempre ao lado do povo, os golpes e contra golpes que lhe vibravam para que o 25 de Abril só se concretizasse formalmente. Companheiros de armas do dia anterior deixavam-se seduzir por cantos de sereias que debaixo das roupagens democráticas queriam por um travão na Revolução. Alguns hoje devem reconhecer a razão que assistia a Vasco Gonçalves.
O grande capital e seus serventuários nunca lhe perdoaram nem perdoarão que em 11 de Março, depois de derrotado o violento golpe de estado comandado por Spínola, o tal que sempre lutou contra a Revolução, e acabou agraciado com o posto de marechal e Grande Oficial das Ordens para vergonha da democracia, Vasco Gonçalves fez as nacionalizações que salvaram o país da bancarrota, deram grande impulso económico e social a Portugal. Nacionalizações que continuam a ser execradas pelos detentores de iníquos privilégios e seus ventríloquos, com um ódio cego que perdura ainda nos dias de hoje, quarenta anos decorridos.
Trabalhando num gabinete de um Secretário de Estado, conheci-o. A convicção, a inteireza, a honestidade com que defendia as suas ideias, conquistavam-nos, mesmo que delas discordássemos. Era um homem de rara qualidade.
Vasco Gonçalves ficará para sempre na História de Portugal e na História da Revolução do 25 de Abril. Deve ser lembrado pela sua acção como governante e revolucionário que até ao fim da sua vida acreditou sinceramente que a Revolução tinha sido feita para melhorar as condições de vida do povo, criando acesso igual para todos aos bens sociais e económicos e que traria consigo a refundação total da estrutura do homem. Por isso lutou denodada e corajosamente.
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