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Modernidades do Outro Lado do Espelho

A batalha ideológica que se trava desde que Marx estabeleceu as traves mestras de interpretação do mundo, em que a ideia central é a relação entre o capital e o trabalho, a luta de classes, as relações entre infra-estrutura e superestrutura, tem sido intensa e, na actualidade, é polarizada pelo imperialismo norte-americano que persegue dois grandes objectivos consonantes: um económico e outro cultural.

Uma estratégia que se iniciou no pós-Segunda Guerra Mundial, com a guerra fria cultural1, se intensificou com a queda do Muro de Berlim e está triunfante nas políticas pós-política.

Os anos 60 são os anos de corte em que se inicia a passagem para a política, a economia e a cultura actuais. Em que o papel do estado se começa a alterar substancialmente, passando de um Estado interventivo e garante do bem-estar para o tendencialmente Estado mínimo neoliberal, dominado pelas leis do mercado e do paradigma da iniciativa privada que é desmentido pela situação de crise permanente e senil em que o capitalismo vive, em que o Estado é o pronto-socorro que despeja triliões de dólares para salvar o sistema financeiro e os privados. Com a financeirização da economia as desigualdades aumentaram brutalmente. Desde 1980 os 1% com mais rendimentos capturaram duas vezes mais ganhos do que os 50% mais pobres. Entre 1988 e 2008, os 10% mais ricos da população mundial apropriaram-se de mais de 60% de todo o crescimento do rendimento mundial. Em 2010, 1% dos mais ricos do planeta controlavam 46% de toda a riqueza mundial. Não há democracia possível numa economia em que há tal desigualdade de poder, realidade que se pretende ocultar com a mercantilização da cultura para consolidar a hegemonia pela modelação da consciência popular. É o fenómeno da globalização que decorre do desenvolvimento capitalista neoliberal, em que se vende a ideia que a liberdade do mercado seria mais igualitária quando não há nada mais desigual do que o tratamento igual entre desiguais.

Em nome da racionalização e da modernização da produção, está-se a regressar ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial. Essa nova ordem económica impõe-se com violência crescente. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Mega pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto a lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. Para esta nova ordem capitalista são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, as revistas de glamour, a música internacional nos sentimentos e americana na forma, os programas radiofónicos e televisivos prontos a usar e a esquecer, o teatro espectacular e ligeiro, o cinema mundano medido pelo número de espectadores, a arte contemporânea em que a forma pode ser substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada numa marca garante do valor da mercadoria artística.

Uma cultura de impacto máximo e de obsolescência imediata, numa acelerada sucessão de modas e humores públicos que procura extrair o máximo lucro do empobrecimento moral, intelectual, em que a diversão promovida pelas indústrias culturais e criativas tudo normaliza e esvazia de sentido. É um dos mecanismos que o capitalismo pós-democrático usa com eficácia para promover a alienação, até a transformar num conformismo em que não se distingue a realidade das aparências. O objectivo final é que as massas populares fiquem cada vez mais incapazes de perceber os verdadeiros jogos políticos para castrarem a sua capacidade de intervenção.

É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade. Cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana, um dos traços fundamentais da sociedade burguesa contemporânea em que se procura que a alienação global seja voluntária. Uma cultura da ilusão que se apresenta como um pensamento mágico de um sistema que quer reduzir a humanidade a uma mercadoria hipotecária para que os homens deixem de afirmar a sua individualidade e o seu progresso pelo trabalho humano.

É neste quadro que se trava um áspero combate ideológico, sobretudo num contexto em que não está no horizonte nenhuma acção política de projecção universal, em que as políticas de esquerda ainda que importantes, mesmo pontualmente decisivas, têm um limitado raio de acção, sempre com a certeza que se firmam numa base ontológica sólida porque a totalidade social não é uma quimera.

O debate entre as forças de esquerda sempre foi intenso entre revolucionários e reformistas e dentro de cada uma dessas áreas, o que foi sempre aproveitado pelos reaccionários, que nunca desarmam nem desistem, para assegurar a sobrevivência do capitalismo, de corromper a linguagem de esquerda, procurando-se apropriar-se das ideias nucleares da esquerda para manipulá-las, o que têm conseguido com algum êxito, promovendo a confusão ideológica, com a consequente desorientação política de muitos meios progressistas.

A mais antiga confusão é a de que os conceitos de direita e esquerda perderam sentido, são distinções sem significância porque as ideologias se desgastaram. Uma ideia que teve origem dentro de uma determinada esquerda, em que Deleuze e Gauttari pontificavam, em linha com o estruturalismo e a semiologia que estavam na ordem do dia e que tinham introduzido nas ciências humanas um sistema de análise das comunicações linguísticas e visuais de métodos análogos aos das ciências empíricas e experimentais. O que Deleuze e Gautatari fazem, com grande repercussão em muitas áreas da esquerda, é colocar em causa o conceito de ideologia como Marx o definira em Para a Crítica da Economia Política, onde estabelece e traça as relações entre a produção material e a produção imaterial: «Com a transformação do fundamento económico, revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o que é constatável rigorosamente como nas ciências naturais e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas; em suma, ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o resolvem», depois de já ter afirmado em A Ideologia Alemã que «a produção das ideias, representações, da consciência, está a princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como o efluxo directo do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, das artes, da ideologia, etc., de um determinado povo».

Os filósofos franceses consideram que o que se designa como ideologia  são «enunciados de organizações de poder» entendidos como parte decisiva da própria estrutura produtiva do capitalismo, não uma superestrutura, ainda que numa relação com a produção económica, a infra-estrutura. São «agenciamentos de enunciação», que desde sempre foram predominantes na história ou seja, a ideologia é substituída pela análise das subtilezas da linguagem, pelas relações entre a semiótica do significante e do não-significante. De um modo chão, há que questionar e lembrar a essas correntes e suas derivadas que não foram as relações entre o significante e o seu significado ou vice-versa, por mais importantes que sejam, que foram decisivas para a tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno, para instaurar a Comuna de Paris ou para fazer a Revolução do 25 de Abril. Foram acções revolucionárias sobre o mundo material sobre o qual se agiu para o alterar.

Coerentemente com os suas conclusões, Deleuze faz a defesa do Maio de 68 considerando que o que «é normalmente chamado de política se fecha de tal forma como um poder que uma força de transformação política só pode vir de fora deste território fechado da política». Em síntese o devir revolucionário só poderia começar pelos «despolitizados», pelos «desideologizados». Utilizando a sua terminologia, o desejo político explodiria de maneira pré-significante, anterior à consciência política, portanto pré-ideológico. Está em linha com a Internacional Situacionista (IS), a raiz ideológica do Maio 68, que se nega enquanto ideologia à semelhança dos ideólogos da burguesia: «a IS não quer ter nada em comum com o poder hierarquizado, sob que forma for. A IS não é portanto nem um movimento político, nem uma sociologia de mistificação política» para logo a seguir se designarem como contribuintes cativos para um novo movimento proletário de emancipação «centrado na espontaneidade das massas» com o fim «de superar os fracassos da política especializada» (…) «com novas formas de acção contra a política e a arte», dizendo querer alterar radicalmente «o terreno tradicional da superação da filosofia, da realização da arte e da abolição da política». São herdeiros de Proudhon, «todas as revoluções se cumpriram pela espontaneidade do povo». Uma crença na espontaneidade das massas que, sobretudo depois das experiências da Comuna de Paris, mesmo Kropotkine, elogiando «esse admirável espírito de organização espontânea que o povo possui em tão alto grau», considera não ser por si só suficiente para fazer eficazmente uma revolução. Uma confiança desmentida pelas várias experiências históricas a que Lenine recorre para, em Que Fazer?, combater as ilusões originadas por essa convicção, sem deixar de considerar a importância das acções espontâneas.

São estes os fundamentos de uma desideologização de uma nova esquerda que são adulterados pelos pensadores de direita e pelos média mainstream para esvaziarem o conteúdo original do materialismo dialéctico, o seu poder revolucionário, adulando esses reformadores das esquerdas radicais, que etiquetam de «modernos», opondo-os aos «conservadores», a esquerda consequente que tem a certeza e a convicção de que nenhuma realidade, por mais consistente e hegemónica que se apresente, como é o capitalismo actual, deve ser considerada definitiva, nem dá por eterno o princípio da dominação capitalista.

Os objectivos do imperialismo cultural são óbvios, vulnerabilizar o pensamento de esquerda promovendo uma crescente indiferenciação ideológica e programática entre partidos de sectores de esquerda e de direita, que reduzem a sua acção e medem a sua representatividade pelos resultados da competição eleitoral, em que a democracia representativa deixou de ser lugar de debate ideológico. Os partidos de direita e dessa esquerda cosmopolita tornaram-se prolongamentos do aparelho de estado, representando interesses económicos que lhes dão apoio variável. Em que a actividade política se reduz praticamente à conquista do voto, o que representa um retrocesso político-ideológico que se esgota nos momentos eleitorais e deixa o campo aberto para o surgimento dessas novas-velhas forças políticas enquadradas no capitalismo pós-democrático.

Maio 68 é o marco da não-revolução que marca o fim de uma época, inicia uma outra em que a ideia de revolução se fragmenta em lutas por mudanças sociais que deixam intocadas as fundações do sistema. São as políticas identitárias tão em voga, que objectivamente são políticas de direita. Aos rebeldes sem filtro que reclamavam maiores liberdades o neoliberalismo deu-lhes essas liberdades dando-lhes a liberdade do mercado, com o objectivo de desmantelar as instituições colectivas da classe trabalhadora, em particular os sindicatos e os partidos políticos, considerados anacrónicos nessa nova ordem em que maiores liberdades individuais se afundam em maiores injustiças sociais. O fim do neoliberalismo é que as reivindicações, mesmo quando alterem as atitudes sociais, não sejam mudança social, nem se empenhem em transformações sociais radicais. Até um certo limite, até correndo alguns riscos, é-lhe conveniente a emergência das lutas ditas fracturantes, em que se conquistam direitos sem o direito de colocar em causa a ordem estabelecida. Tem uma consequência: a colonização do pensamento de sectores da esquerda pela direita com o fim último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer ainda que com todas as contradições e dificuldades.

As esquerdas radicais, em Portugal e no mundo, as esquerdas «modernas» que se opõem à esquerda praxada de «conservadora», ainda que por vezes tenham uns rompantes ou se digam pós-marxistas, não se revêm no que é nuclear no pensamento marxista: a relação de exploração entre o capital e o trabalho, as lutas  de classes que se vão ajustando às condições objectivas e subjectivas das sociedades onde se travam.

Conjecturam que a teoria marxista está ultrapassada por não corresponder às características da sociedade contemporânea, a chamada aldeia global pós-industrial. Consideram essas condições ultrapassadas, antiquadas, substituíveis pelas causas fracturantes e identitárias, com uma forte componente intelectual, mediática, de moda, praticamente sem relação com a tradicional base social da esquerda no mundo operário e nos sindicatos. Para eles ,as classes sociais não contam porque se estão dissolvendo, perdendo sentido, pelo que a tónica marxista nas classes sociais é reducionista, o que prevalece é a santíssima trindade da raça, sexo e género, como se em cada raça, sexo e género não existissem divisões sociais. Uma deriva pós-marxista em que as políticas identitárias acabam por ocultar que as fontes dos conflitos são sempre sociais antes de serem identitárias.

Ultrapassado o espelho da «modernidade» assumida por essas esquerdas, por mais que lapidem essa realidade, mesmo que obtenham alguns êxitos, o que se encontra de facto é a renúncia a uma sociedade que se oponha à desordem do mundo actual, com a desonestidade intelectual de fingir que o marxismo não representa mais uma realidade política actuante numa perspectiva socialista ainda que remota, um campo de batalha de onde os «conservadores» não desertam, carregando um património de lutas, «na “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para estoirar o tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma), outra vez» (Manuel Gusmão).

(Publicado em AbrilAbril https://www.abrilabril.pt/)

Bibliografia relacionada

Cunhal, Álvaro; O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, Edições Avante!, 1974

Deleuze, Gilles; Guattari, Felix; O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1, Assírio & Alvim, 2004

Deleuze, Gilles; Guattari, Felix; Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio & Alvim, 2008

Gusmão, Manuel, Uma Razão Dialógica, Edições Avante!, 2011

Lenine, Que Fazer?, Edições Avante!, 1984

Marx, Karl; Engels, Friedrich; Obras Escolhidas (em três tomos), Edições Avante!, 1982-1985 (2.ª edição, 2008-2016)

Marx, Karl; Proudhon, Pierre-Joseph; Misère de la Philosophie/Philosophie de la Misère, Union Génerale d’Editions, colecção Le Monde en 10/18, 1964
 

TÓPICO

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As Bananas e as suas cascas

Instalação «Comediante», de Maurizio Castellan, na exposição de arte contemporânea Art Basel, em Miami Beach, EUA, 5-8 de Dezembro de 2019. Antes de a banana colada à parede ter sido comida numa «performance artística» por David Datuna já tinha sido vendida a um coleccionador francês por 120 mil dólares.Créditos/ Lesalonbeige

Um artista, Maurizio Castellan, cola numa parede uma banana com fita adesiva prateada, em três versões, duas provas de artista e uma final, depois de um ano a “trabalhar nessa ideia”. Um trabalho muitíssimo árduo como se presume, em que acabou por escolher três bananas entre as centenas que andam pelos mercados. Aos compradores, entre eles um museu, a “ obra” foi vendida por 120 mil dólares. O curador da galeria explica que é necessário ir substituindo a banana todas as semanas, “como uma flor”.

A “obra” ganhou visibilidade com uma imagem que corre mundo sem assombrar ninguém nesta sociedade entediada com o seu próprio tédio que, quanto muito, a olha com um sorriso amarelento. Um performer completou o quadro comendo a banana explicando que “comeu a obra e o seu conceito” (…) não sou uma pessoa normal sou um artista, um performer, não estou comendo uma banana, estou comendo arte”. Tamanha empáfia é típica dessa gente que, por todo o mundo, plantam tretas que se espalham cancerosamente procurando ser levados a sério no que, diga-se pelo estado de inacção desta sociedade oca, conseguem algum êxito ou, pelo menos, não ser contestados por maiores dislates que digam. É ler as bulas que acompanham esses eventos ditos artísticos para se sair derrotado pela cerrada obscuridade de uma amálgama de conceitos superlativamente adjectivados, tão mais sofisticadamente inteligentes quanto mais mediocremente indigentes são as obras, qualquer que seja o género em que se inscrevem.

Anda o mundo, todo o mundo infestado de performer’s, que fazem parte do grande circo da estupidez sustentado pelo baixo clero destes tempos pós-modernos — curadores, comissários, produtores, gestores culturais, especialistas, muitos deles doutorados nessas malas-artes — que, com estas ou outras bananas, fazem parte da epifania colectiva destes tempos de danação em que quase deixa de haver lugar para a criação artística excepto a não ser como forma de ganhar dinheiro, um caminho que Warhol, sem ironias nem sentimentalismos, percorreu com inquietante êxito.

Aliás, foi Warhol quem começou por consagrar a banana na capa de um disco dos Velvet Underground, a que se seguiu a casca de banana no chão de Jeanne Silverthorne (EUA – 2007)

e o furgão com uma tonelada de bananas de Paul Nazareth (Art Basel-2011)

nstalação «Mercado de Bananas/Mercado de Arte», de Paulo Nazareth, na secção «Posições da Arte», destinada a artistas emergentes, na feira Art Basel, em Miami Beach, EUA, em 2011. Feria de Arte Basel, Miami 2011 Paulo Nazareth es un artista que estuvo presente en la feria de arte de Basel en el año 2011, dentro de la seccion “Art Positions” destinada a galerias y artistas emergentes, y donde Paulo presento la obra “Banana Market/Art Market (mercado de bananas/mercado de arte) consistente en una vieja furgoneta Volkswagen llena de bananas. 

A metafísica das bananas inscreve-se no estado de sítio em que o que sobrou para as artes, para todas as disciplinas artísticas nestes tempos pós-modernos, foi regressar ao dadaísmo, não como protesto desesperado contra um mundo insuportável, sem dignidade e sem dignidade para oferecer mas para uso publicitário, porque o destino histórico dos formalismos termina sempre na utilização publicitária do trabalho sobre a forma. É a porta grande por onde entra o conceptualismo, moda corrente porque é fácil, porque até pessoas sem conhecimentos o conseguem fazer, em que a única exigência é ter ideias a que não se exige sequer que sejam boas ou brilhantes, que desaguam na grande falsidade das artes performativas, a face mais evidente da grande fraude em que mergulhou a arte contemporânea. Existem, como é de regra, excepções que cumprem o desígnio expresso por Burckhardt “talvez hoje existam grandes homens para coisas que não existem”.(1) Homens que provam a sua genialidade em obras fragmentadas, de afirmação individual o que também é uma contradição central no quadro social globalizado, desperdiçando muito do seu talento numa arte comercial que lhes é imposta e, reconheça-se, a que dificilmente se poderiam subtrair.

É a multiplicação sem precedentes das artes performativas, sobretudo na música, nas artes visuais mas também na literatura, em que os sujeitos da acção, os artistas performativos exploram a hibridização entre géneros artísticos, abolindo hierarquias entre os materiais e as formas da pintura, escultura, música, teatro, cinema desvalorizadas pelos novos suportes, instalações, happenings, vídeos, concertos performativos, performances, etc., plantando obstinadamente um kitsch impossível de avaliação estética. O que Hermann Broch vitupera sem contemplações “ quem quer que seja que produza kitsch não pode ser avaliado por critérios estéticos, é um depravado do ponto de vista ético”.(2)

Também nos devemos interrogar porque é que esse plâncton de artistas performativos que alimenta essas artes sem arte, não aprende a filmar, a representar, a cantar, a compor, enfim a aprender aquelas coisas básicas que são o mínimo dos mínimos exigível para tão rarefeitas ideias, sem um grão de inovação e descoberta. Tudo requentado e ruminante na esteira de Marcel Duchamp, desossado do seu propósito de destruir a aura da arte, apropriado por um mundo sobrepovoado de artistas que como assinala Avelina Lésper “deixam de ser imprescindíveis porque qualquer obra substitui-se por outra qualquer, uma vez que cada uma delas carece de singularidade (…) a carência de rigor (nas obras) permitiu que o vazio de criação, o acaso e a falta de inteligência passassem a ser os valores desta arte falsa, entrando qualquer coisa para ser exposta nos museus”. Luciano Trigo entre muitos outros, foca a mesma questão por outro ângulo: (3) «Por que ninguém fala hoje em Picasso e tanta gente ainda se inspira em Duchamp? A resposta é simples: a arte de Picasso exige talento, técnica, reflexão sobre a vida e a História, enquanto Duchamp, por genial que tenha sido em seu momento, traz uma mensagem muito mais fácil de ser assimilada e copiada: qualquer um pode ser artista.»

A dura realidade é que desnudar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda o estado actual das artes não tem comprometido nem a sua credibilidade cultural nem a sua credibilidade comercial e mundana, como Mário Perniola extensamente teorizou no magnifico ensaio A Arte e a sua Sombra.(4) Essas desmistificações por mais sérias e credenciadas que sejam são sistematicamente remetidas para nichos onde se espera fiquem sepultadas. Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que domina o mercado das artes, actualmente um nicho do mercado de artigos de luxo, e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. O debate estético e cultural está praticamente reduzido a zero, submetido à ditadura dos intermediários culturais, sejam curadores, directores de museus, marchands, programadores, gestores culturais, comissários, críticos de arte, editores, produtores. Aliás, o trânsito entre eles é intenso e não sai dos carris.

Analisar esta situação exclusivamente pelos parâmetros estéticos dá uma ideia deformada do que é e para que servem essas artes vertiginosamente inscritas num bullying cultural que é outra das imagens de marca do nosso tempo. Quando se analisam os mapas de eventos culturais inscritos num espaço territorial, seja um país ou um continente, o que se verifica é que há uma proliferação de bananas coladas nas programações culturais, sejam promovidas por entidades ou instituições públicas ou privadas, alinhadas com a esquerda ou com a direita. O bananal é igualmente assaltado por uns ou por outros numa distribuição equitativa que até poderia provocar estranheza a quem não tiver a consciência clara que as obras de cultura, os produtos culturais não surgem do nada, de uma qualquer inspiração metafísica, não são um absoluto independente da produção e da reprodução social da vida. Há que perceber claramente que as ideias dominantes são as das classes dominantes porque é dominante a sua posição na esfera económica que se apropria dos principais aparelhos e instituições, meios e instrumentos de produção, difusão e recepção culturais, pelo que todas as bananas de todas essas artes são o produto e a imagem, realizados no quadro da autonomia relativa que as artes sempre tiveram, do capitalismo neoliberal da democracia pós-democrática. Uma arte contemporânea em que a forma é substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada em marca garante do valor da mercadoria artística. Uma esquerda sem essa percepção rende-se. Deixa-se corroer pela onda cultural, muitas vezes atemorizada de ficar à margem das modas quando deveria resistir à normalidade da anormalidade dessa cultura inculta, promotora da iliteracia cultural dominante que Byung-Chul Han expõe com brutalidade: ”hoje, a própria a percepção assume a forma de Binge Watching, (assistir a algo compulsivamente, descontroladamente) de visionamento bulímico. Oferecem-se continuamente aos consumidores o que se adapta por completo ao seu gosto— quer dizer, do que eles gostam. São alimentados de consumo como gado com qualquer coisa que acaba sempre por se tornar qualquer coisa. O Binge Watching pode ser entendido como o modo actual de percepção generalizado “(5).

Há que perceber claramente que para essa ordem capitalista são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais – rádio, televisão, jornais — e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas e esse é o pântano em que evoluem e levedam as artes performativas.

Há ainda que perceber que estas actividades culturais e artísticas fazem parte do objectivo mais ambicioso do neoliberalismo de produzir um homem novo, não o que o comunismo procurou realizar, mas um outro construído pela aniquilação do sujeito moderno crítico e marxista, substituindo-o por um sujeito autista, consumidor indiferente à dimensão essencialmente política da existência, um indivíduo que se refere exclusivamente ao aspecto solipsista dos objectos que se realizam como mercadoria subjectiva da cultura de massas, uma cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana no que é um dos traços fundamentais da sociedade burguesa contemporânea em que se procura que a alienação global seja voluntária. A esquerda cosmopolita ao não perceber essa realidade e a ela não resistir, por ignorância ou oportunismo, condena-se a escorregar nas cascas de banana que os outros comeram. Está colonizada, por vezes sem disso ter consciência, pelo pensamento de direita.

(1) Burckhardt, Jacob, Considerations sur L’Histoire, Allia, 2001

(2) Broch, Hermann, Quelques Remarques à Propos du Kitsch, Allia 2001

(3) Trigo, Luciano, A Grande Feira do Vale-Tudo na arte Contemporânea, Civilização Brasileira, 2009

(4) Perniola, Mário, A Arte e a sua Sombra, Assírio & Alvim, 2006

(5) Byung-Chul, Han, A Expulsão do Outro, Relógio d’Água, 2018

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A Intelligentsia nos seus labirintos

o-grito

O Grito, Munch (fragmento)

 

A  intelligentsia norte-americana está em guerra aberta com Trump. Na Europa, alguns classificam essa intelligentsia, escritores, artistas das artes visuais, teatro e cinema, músicos, como de esquerda, sabendo bem de mais que a grande maioria são liberais com muito pouco de esquerda. Fazem bem em invectivarem Trump um reacionário proto-fascista, com tiques de caudilho sul-americano, mas não deixa de ser uma curiosa posição que merece alguma reflexão quando, muitos até com boas intenções melhor dizendo ilusões democráticas, objectivamente escoram uma oligarquia, agora corporizada por Hillary Clinton e antes por Obama. O cerne da questão é a decadência dos EUA. Trump é tão neoliberal como os Clintons’s, os Obama’s, os Bush’s. Os confrontos a que estamos a assistir pouco tem a ver com democracias e muito com uma guerra entre interesses divergentes de grupos de plutocratas. Trump e os seus sequazes reconhecem a decadência dos EUA, consideram-na uma consequência das políticas dos oligarcas que se acantonaram atrás da Sra. Clinton,nas últimas eleições. Para uns e outros os mecanismos democráticos são uma ferramenta para defenderem os seus interesses. A intelligentsia norte-americana e  as outras em muitas partes do mundo, principalmente na Europa, estiveram até agora caladas perante todos os desmandos “democráticos”. É de perguntar onde estiveram durante os oito anos de mandato de Obama, quando a divida pública dos EUA passou de 11 para 20 milhões de milhões de dólares (aumento de 1 250 mil milhões por ano, 3 mil milhões /dia!) procurando fazê-la pagar à força ou com persuasão, que não deixa de ser violenta, ao mundo onde se impunha unipolarmente. Dívida que aumentou exponencialmente por essa administração ter uma política que defendeu os interesses da finança e do grande capital, pelos custos das guerras que fomentou. Onde estava essa gente quando, durante os oito anos de administração Obama as desigualdades aumentaram, os salários reais baixaram, mais de 90% do aumento da riqueza nacional foram enfiados nos bolsos dos 1% mais ricos. Quando os serviços públicos e sociais se degradaram. Quando mais de 46 milhões de cidadãos – a maioria negros e hispânicos, a situação dessas minorias e a violência que sofrem agravou-se – estão abaixo do limite de pobreza. Quando o desemprego é de 21%  com os critérios dos anos 80 (Paul Craig Roberts). A população prisional atingiu os 2 milhões. O Obamacare é um seguro médico pago pelo Estado aos privados, redigido per representantes das seguradoras e farmacêuticas, com uma franquia de 6 500 dólares por família em 2015. Onde estavam? Que protestos fizeram? Todos mudos e quedos como sempre estiveram surdos às bombas que esse Nobel  da Paz despejou pelo mundo ao ritmo de 3 bombas/hora, número revelado nno jornal bi-mensal do Foreign Affairs, do CRF (Council on Foreign Relations), http://blogs.cfr.org/zenko/2017/01/05/bombs-dropped-in-2016/ que é considerado pelo Departamento de Estado como uma espécie de “how-to”, um guia para a condução da política externa. Quando com Obama, os EUA e aliados lançaram 100 000 bombas e mísseis, em sete países, contra  70 000 em cinco países pelo Bush da invasão do Iraque. Os gastos militares superaram em mais 18,7 mil milhões os de George W Bush. Quando as forças militares dos EUA estão presentes em 138 países, em comparação com os 60 quando tomou posse. A utilização de drones aumentou 10 vezes, atingindo toda a espécie de alvos e vítimas civis e Obama,  informe do New York Times, https://www.nytimes.com/2014/06/26/world/use-of-drones-for-killings-risks-a-war-without-end-panel-concludes-in-report.html?_r=0 seleccionava pessoalmente aqueles que seriam assassinados por mísseis disparados de drones. Um senador republicano, Lindsey Graham, estimou, sem qualquer desmentido, que os drones de Obama mataram 4.700 pessoas. “Por vezes atingem-se pessoas inocentes e odeio isso”, disse o nobelizado com o cinismo que o caracteriza, “mas removemos alguns altos membros da Al Qaeda”. Quando foram recrutadas e treinadas forças mercenárias para combaterem na Líbia e Síria, pagaram-se a esquadrões da morte para abaterem no Iraque alvos políticos incómodos. O total de mortes infligidas em guerras, directas ou por procuração, terá atingido 2 milhões de pessoas. Onde estavam quando os bombardeamentos são mais intensos que os anteriores, contabilizando-se 65 730 ataques de bombas e mísseis nos últimos dois anos e meio. Com Obama ampliou-se o apoio às agressões de Israel ao povo palestiniano, os crimes da Arábia Saudita contra o povo do Iémen, financiou-se e armou-se o Estado Islâmico e a Al-Qaeda, John Kerry dixit em entrevista de fim de mandato. Obama também aconselhou e financiou e golpes de estado das Honduras à Ucrânia. Nomeou para a CIA, chefias militares e para o governo conhecidos falcões como a secretária de Estado Hillary Clinton, a embaixadora na ONU Samantha Power a secretária de Estados para os Assuntos Europeus e Euroasiáticos Victoria “Que se Foda a Europa” Nuland. http://www.bbc.com/news/world-europe-26079957

Tudo isto tem coerência interna: a General Dynamics, grande fabricante de armamento pesado, submarinos, navios de guerra, financiou a carreira política de Barack Obama, desde que concorreu às primárias em 2008, quando demagogicamente fazia promessas parecidas com as de Jesse Jackson uns anos antes, antecipando algumas que vieram a ser feitas por Bernie Sanders, deixando a sua opositora Hillary Clinton boquiaberta de espanto, derrotada pela lábia desse grande vigarista que tinha garantido os apoios financeiros do complexo-militar e industrial que deviam rir a bom rir das suas tiradas Yes You Can’t, conhecendo o seu verdadeiro significado.

Intelligentsia que não mexeu uma palha quando Obama desalojou violentamente os Occupy Wall Street, http://www.weeklystandard.com/obama-on-occupy-wall-street-we-are-on-their-side/article/598251 fazendo um discurso em defesa dos especuladores bolsistas, sustentando-os com milhares de milhões de dólares.

As políticas de Obama e a cumplicidade silenciosa da intelligentsia são um triunfo da pós-verdade, o conceito escolhido pelos Oxford Dictionaries, um canone dos dicionários, para palavra do ano 2016, como o “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais factos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”. A pós-verdade em que cimenta a gigantesca fraude Obama, como se pode ler e ouvir no seu discurso de despedida. A colossal vigarice que é Obama, bem retratada por José Goulão no AbrilAbril. http://www.abrilabril.pt/o-polimento-da-tragedia-obama

Agora, com a eleição de Trump, não menos perigoso que Obama, saltam para o terreiro enterrando os pés no pântano de uma democracia esclerosada, expressão política muito clara do fracasso e da crise estrutural do modelo neoliberal nos Estados Unidos, em que quem se senta na Sala Oval, chame-se Bush ou Clinton, Obama ou Trump, prossegue políticas na defesa dos interesses imperiais dos EUA, seja sob a bandeira do excepcionalismo teológico dos Estados Unidos da América em que Obama acredita”com toda a fibra do meu ser”, ou do demagógico “Make America Great Again” de Trump.

Quais as razões por só agora as mulheres organizarem a Marcha das Mulheres contra Trump, bem oleada com milhares de dólares por esse filantropo que é Georges Soros, http://www.ceticismopolitico.com/bilionario-soros-esta-ligado-a-mais-de-50-grupos-que-participaram-da-marcha-das-mulheres-em-washington/ e nunca o terem feito contra, pelo menos contra algumas, das políticas da administração Obama? Porquê é que ninguém esfrega na cara de Madeleine Allbright a justificação do assassínio de 500 000 mil crianças, meio milhão de crianças no Iraque, mais do que as que morreram em Hiroshisma, como efeito colateral, o preço certo a pagar disse ela, https://youtu.be/RZLGQ83KoOo quando com grande descaro declara que se vai inscrever como muçulmana, em denúncia dos propósitos xenófobos de Trump?   Porquê só agora milhares de escritores, reunidos no Writers Resist, manifestam a sua indignação porque desejam ”superar o discurso político directo, em favor de um enfoque inspirado no futuro e nós, como escritores, podemos ser uma força unificadora para a protecção da democracia”(…) “instamos organizadores e oradores locais a evitarem utilizar nomes de políticos ou a adoptar linguagem “anti” como foco no evento do Writers Resist. É importante assegurar que organizações sem fins lucrativos, que estão proibidas de fazer campanhas políticas, se sentirão confiantes em participar e patrocinar estes eventos”. Nada disseram quando Obama alterou a lei para possibilitar que os grandes consórcios financiassem sem limites e sem escrutínio as campanhas políticas, distorcendo ainda mais claramente a democracia que assim ficou ainda mais dependente das cornucópias de dólares que impossibilitam de facto candidaturas, como a dos Verdes ou dos Libertários, que reduzem o debate de ideias aos rodeos das primárias e das finais ente Democratas e Republicanos, diferentes na forma, iguais nos objectivos. Ou será por esses milhares de escritores terem ficado confortáveis numa falsa ignorância fabricada pelos discursos indirectos, fingindo que não os conseguem decifrar mesmo quando as realidades se perfilam para não deixar uma brecha de dúvida?

Não se quer, nem é desejável, que se meta no mesmo saco de lixo o ogre Trump e o contrabandista Obama. Cada um no seu saco mas ambos atirados para o mesmo aterro sanitário. Isso é o que deveria ser feito por essa intelligentsia, tanto nos EUA como na Europa.

“A acção de todos deverá ser totalmente impessoal– de facto não deverá orientar-se por quaisquer pessoas que sejam, mas por regras que definem os procedimentos a seguir,”(Zigmunt Baumann). Príncipio esquecido por essa gente que anda aos baldões das emoções. Orientam-se erráticamente, nessa deriva a razão torna-se coisa descartável. É o que está agora a acontecer sepultando bem enterrado o que Martha Gelhorn disse num Congresso de Intelectuais em Nova Iorque em 1932 contra o ascenso do nazi-fascismo na Europa e também nos EUA, recordem-se os apoios que lhe davam Lindberg, Allen Dulles, John Rockfeller, Prescott Bush, John Kennedy (pai), as grandes corporações financeiras e industriais, http://www.rationalrevolution.net/war/american_supporters_of_the_europ.htm. Congresso que juntou, de viva voz ou por comunicações enviadas,  os maiores intelectuais da época, de Steinbeck a Thomas Mann, de Einstein a Upton Sinclair: “Um escritor deve ser agora um homem de acção… Um homem que deu um ano de vida a greves siderúrgicas, ou aos desempregados, ou aos problemas do preconceito racial, não perdeu ou desperdiçou tempo. É um homem que sabe a que pertence. Se sobrevive a tal acção, o que diria posteriormente acerca da mesma é a verdade, necessária e real, e perdurará”. (Martha Gelhorn). Até agora onde tem estado, por onde têm andado esses milhares de escritores? No conforto dos seus lares, das suas tertúlias, das bolsas concedidas por fundações que também financiam acções menos louváveis.

Escrevem, filmam, realizam obras de arte onde se apagou a política, a vida das pessoas, as vidas dolorosas dos explorados e oprimidos. Em linha são celebrados por uma crítica que os aplaude, suporta, divulga. Óscar Lopes, com a clarivência e o conhecimento que tinha, anotava que a classe operária, os dramas dos explorados tinha sido rasurado das artes desde meados do séc. XX. Essa a regra, as excepções quase passam despercebidas, são mesmo invectivadas, acusadas de contaminarem a arte pela política. É um fenómeno universal que Terry Eagleton, afirma em Depois da Teoria,” hoje em dia tanto a teoria cultural quanto a literária são bastardas” (…) “pela primeira vez em dois séculos não há qualquer poeta, dramaturgo ou romancista britânico em condições de questionar os fundamentos do modo de vida ocidental”. Um dos últimos, não estava sózinho mas estava pouco acompanhado,  foi Harold Pinter, nas suas peças teatrais e no discurso que fez na aceitação do Prémio Nobel, em 2005. http://cultura.elpais.com/cultura/2005/12/07/actualidad/1133910005_850215.html. Hoje não se encontram, ou raríssima se encontram um Alves Redol, Carlos Oliveira, José Cardoso Pires, José Saramago, para nos fixar em território nacional. Não se escrevem As Vinhas da Ira(Steinbeck), Jean Christophe(Roman Rolland) Manhatan Transfer(John dos Passos), Oliver Twist(Charles Dickens), Germinal (Zola), A Profissão da Sra Warren(Bernard Shaw), Mãe Coragem e os seus Dois Filhos (Berthold Brecht), O Triunfo dos Porcos(Georges Orwell), referências rápidas a que se poderiam agregar muitas mais. Raríssimos os filmes sobre temas sociais e políticos como os de Kean Loach, Recursos Humanos(Laurence Cantet), Blue Collar (Paul Schrader), para nos circunscrever aos tempos mais próximos e não enumerar os neo-realistas italianos, franceses, russos.

Ninguém, quase mesmo quase ninguém fala dos pobres, dos sonhos utópicos, da imoralidade do capitalismo, ataca a classe dominante, a corrupção que espalha. Foi todo um trabalho feito nos anos da guerra fria pela CIA, leia-se Who Paid de Paper, The CIA and the Cultural Cold War, de Frances Stonor Saunders. Trabalho bem sucedido dessas tarântulas tecendo as teias onde a cultura e as artes se debatem no caldo de cultura pós-moderna em que “a ideia moderna da racionalidade global da vida social e pessoal acabou por se desintegrar em mini-racionalidades ao serviço de uma global inabarcável e incontrolável irracionalidade”(Lyotard). Para sobreviverem e viverem comodamente, dissociam-se da política, dos dramas sociais, das guerras para encobrirem, o caos, o abismo, o sem fundo de que falava Castoriadis, para onde se é atirado sem remissão. Trabalho que teve tanto êxito, olhe-se para os paradigmas culturais do pós-modernismo, que só tem paralelo com o  controlo dos meios de comunicação social enquanto  em nome da racionalização e da modernização da produção, se regressa ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial. Uma guerra em que os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos impondo uma nova ordem fanática e totalitária. Nova ordem são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos, proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, as revistas de glamour, a música internacional nos sentimentos e americana na forma, os programas radiofónicos e televisivos prontos a usar e a esquecer, o teatro espectacular e ligeiro, o cinema mundano medido pelo número de espectadores, a arte contemporânea em que a forma pode ser substituída por uma ideia, a sua bitola é o seu do valor de mercadoria artística.

É nessa nova ordem que se inscrevem os Writters Resist, em que mesmo os que se aproximam de uma ideia de esquerda europeia estão contaminados e enquadrados pela ideologia de direita dominante. Alarmam-se com Trump mas nunca se alarmaram com Obama ou os seus antecessores. Têm razão numa coisa: estamos mais perto de uma nova versão do fascismo, como se vê no alastramento da mancha de óleo da direita e extrema direita na Europa e nas Américas. Um clima de guerra real que se avoluma-se no horizonte a par da guerra ideológica. Têm agora um sobressalto. Um alarme tardo, uma cortina que tapa o silêncio em que, sem qualquer vergonha, envolveram as políticas que agravaram desigualdades económicas e sociais, as agressões norte-americanas em todo o mundo por anteriores administrações, democratas e republicanas. É chocante, obsceno ver, ler e ouvir como muitos desses obsecados com Trump, bajularam e bajulam Obama. Como se assemelham aos ratos que seguem, sem uma ruga de dúvida, essa moderna versão do flautista de Hamelin. Têm razão em invectar Trump, em se preocuparem com o abubar dos campos da direita e extrema-direita. Com o estado de guerra latente que se vive, que já se vivia. Deviam sentir-se culpados, miseravelmente culpados por terem fechado ou na melhor das hipóteses semi-cerrado os olhos aos desmandos que prepararam a sua ascensão.

Como escreve William I. Robinson, professor na Universidade da Califórnia,  um dos raros não contaminados pelo pensamento dominante da ideologia de direita: “O presidente Barack Obam pode ter feito mais do que ninguém para assegurar a vitória de Trump(…)Ainda que a eleição de Trump tenha disparado uma rápida expansão de correntes fascistas na sociedade civil dos EUA, uma saída fascista para o sistema político está longe de ser inevitável.(…) Mas esse combate requer clareza de como actuar perante um precipício perigoso. As sementes do fascismo do século XXI foram plantadas, fertilizadas e regadas pela administração Obama e a elite liberal em bancarrota politica”. http://www.telesurtv.net/english/opinion/From-Obama-to-Trump-The-Failure-of-Passive-Revolution-20170113-0011.html

A direita exulta. Mesmo a que inicialmente foi reticente em relação a Trump, agora vai deixando cair as máscaras. progressivamente alinhando com as sementes proto fascistas que ele vai plantando.  Ler ou ouvir a comunicação social mais alinhada à direita sobre Trump, durante as primárias republicanas e a campanha eleitoral e depois da sua vitória é assistir a um pouco árduo e cínico exercício de rotação. Do outro lado, muita esquerda permanece vacilante amarrada ao ter louvado ou ter depositado irracionais esperanças em Obama. Ler o que por aí se escreveu e disse quando foi eleito presidente ou agora quando não há razão para qualquer dúvida, é muito instrutivo sobre algumas esquerdas, as velhas e as novas. As que repetem os vícios do radicalismo pequeno burguês usando estilistas modernaços ou de antanho,  as que metem com contumácia o socialismo nas gavetas abertas ou fechadas pelas terceiras vias e suas variantes. Nas suas derivas não encontram o fio de Ariadne que lhes aponte o caminho de saída do labirinto por onde deambulam confusos. O Minotauro espera-os. O mundo continua a arder.

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Arte e artistas nos labirintos da pós-modernidade

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O Atelier do Pintor, Rogério Ribeiro

 

Na actualidade, no mundo das artes verifica-se uma regressão no estatuto social dos artistas. Depois da Revolução Francesa, quando a burguesia alcançou o poder político na sequência do poder económico que vinha consolidando desde o fim da Idade Média, os artistas foram-se libertando, de um sistema em que estavam completamente dependentes das encomendas  da nobreza, da aristocracia, do clero. Processo que já se tinha iniciado no liberalismo da monarquia inglesa. Essa grande transformação inicia-se nas artes visuais com o aparecimento dos museus, mais tarde dos salões e galerias de arte, na música e teatro com os empresários de salas de espectáculos e  espectáculos, alguns eles mesmos músicos como Haendel, na literatura com os editores independentes e a introdução dos suplementos literários nos jornais quando passaram a ser vendidos por número avulso. Suplementos literários que começaram a publicar romances em folhetim, prática em que distinguiram Alexandre Dumas, Eugène Sue, Lamartine.

Os artistas respondiam a encomendas em paralelo com o que realizavam para o mercado, para compradores que lhes eram desconhecidos. Walter Benjamin considera que o artista que melhor percebeu esse novo estatuto social foi Baudelaire que sabia qual era a real situação do novo homem de letras  “que se dirige ao mercado dizendo a si-mesmo que vai ver o que se passa, mas na verdade já anda à procura de comprador.”

A evolução foi muito rápida com alguns episódios dolorosos de artistas que morreram na miséria antes de ter o merecido reconhecimento. Hoje, no pós-modernismo, que Francis Jameson classifica como a lógica cultural do capitalismo terminal, atingiu-se um estádio em que “a sociedade  não tem mais necessidade de manter a relativa autonomia das actividades simbólicas, como a arte, a filosofia e as ciências humanas. Que tenta transformar os detentores de actividades simbólicas em funcionários do sistema produtivo (…) fazendo-os descer ao nível da realidade, ou seja da sua dependência directa dos imperativos económicos.” (Gianni Vattimo).  Nesse  quadro, os contextos da arte são cada vez mais influenciados pelo mercado, em que surgem massivamente compradores e coleccionadores, novos artistas, novos eventos como feiras de arte, bienais, grandes exposições colectivas. Os períodos de grande euforia económica foram propiciadores de contextos que estruturaram aquilo que hoje se pode denominar um mundo de arte globalizado, com uma economia poderosa, em que a especificidade da criação artística e da reflexão por ela suscitada se dissolve nos momentos de apresentação e de representação social dos eventos desse mesmo mundo. Um mundo em que os intermediários culturais proliferam e têm influência crescente. Bourdieu fez uma análise lúcida desse novo grupo social, a correia de transmissão do gosto típico das classes superiores, do bom gosto, enquanto membros de um novo tipo de pequena burguesia (…) São os encarregados de uma subtil actividade de manipulação nas empresas industriais e na gestão da produção cultural (…) a sua distinção é uma forma de capital incorporado – porte, aspecto, dicção e pronúncia, boas maneiras e bons hábitos – que, por si, garante a detenção de um gosto infalível o que sanciona a investidura social de um decisor do gosto, de modo bem mais significativo do que o faz o capital escolar, de tipo aca-démico (…) a ambiguidade essencial e a dupla lealdade caracteriza o papel desses intermediários colocados numa posição instável na estrutura social como o baixo clero de outras épocas (…) são os mercadores de necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelo e garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque sabem dar boa imagem de si acreditando ou não no valor daquilo que apresentam e representam.” É essa gente que legitima e certifica os produtos artísticos, que manipula os valores do mercado. Uma espécie de clérigos pós-modernos que dominam o mercado da arte mantendo os seus aspectos formais mas, na realidade, subvertendo-os eficazmente, tornando os artistas dependentes dos seus critérios. Fora desse circuito a criação artística é residual. Um quadro exige um processo de desmistificação, de desmascaramento do desmascaramento  com que se ilude esta realidade.

publicado em http://www.avozdooperario.pt/images/Jornal/Outubro2016/jornal-out-2016.pdf

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As Artes num Impasse

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O último fim de semana em Serralves, O Museu Performance, foi a demonstração cabal de como uma superlativamente intitulada arte é o apogeu da farsa em que está mergulhada muita arte contemporânea, travestindo-se de modernaça mas que é substantivamente conservadora e reaccionária.

Houve de tudo. Vídeos medíocres, música de quem não sabe sequer o que é uma nota, representações que qualquer actor de um sofrível teatro amador faz melhor, uma suposta cantora lírica que nem para cantar a tomar banho serve, um gajo que decide tomar enfrentar uma mangueira de bombeiros, porque sim estava calor mas aquilo era um desperdício de água, uma trupe anarco-queer que diz ir enfrentar o futuro mas fica pela rasteira representação kitsch e mais umas quejandas actuações-efeito que condensam, como os slogans, a vontade que temos de não pensar, a propensão para nos quedarmos no terreno pantanoso da idiotia esplendorosa de alguma arte actual. Nos antípodas do que Manuel Gusmão, com a clareza habitual, expôs num texto em que defendia que as artes nos fazem humanos.

Também nos devemos interrogar porque é que aquela gente não aprende a filmar, a representar, a cantar, a compor, enfim a aprender aquelas coisas básicas que se deve exigir a quem diz querer transgredir os cânones. O mínimo dos mínimos para tão rarefeitas ideias, sem um grão de inovação e descoberta. Tudo requentado e ruminante.

O que se assistiu, o que foi dado ver é de uma banalidade confrangedora. Bolas de sabão que nem chegam a ter dimensão ou cor por logo rebentarem. Rebentam em silêncio contando com a cumplicidade dos assistentes atónitos, paralisados por aquele abundante desvalimento mental que acaba por alastrar e contaminar.

Claro que há uma conversa de treta que envolve todas aquelas performances e que nem sequer são embrulhadas em papel de estanho a imitar papel de prata. Nada de novo. A normalidade do estado da arte em que quanto mais indigentes são as obras mais «inteligentes» são os textos que as apresentam ou justificam. Os estupendos curadores, do alto da sua empáfia, proclamam que naqueles dois dias, os espaços iam perder a sua aparência usual para serem «ocupados por trabalhos que apelam a outros sentidos, revelando arquitecturas invisíveis e abalando o normal fluxo do tempo da visita do museu» para que o museu deixe de ser espaço de mera contemplação para ser «um lugar onde coisas acontecem, espaço em estado de fluxo permanente, um museu em permanente performance».

Nem percebem que com aquele tipo de actividades degradam o conceito de arte e prolongam o conceito de museu como um espaço onde se penduram quadros, encerram esculturas, recepcionam instalações e performances. Onde os espectadores entram para se encontrarem com os paradoxos das experiências artísticas. Um «cubo branco», leia-se O’Doherty, onde o espectador se isola, para ver os objectos classificados como arte num meio em que o tempo histórico não se rege por instrumentos de medida. Espaços comparáveis às igrejas medievais, espaços sagrados intocáveis, onde o comportamento dos visitantes é igual ao dos fiéis: de adoração, sacralidade e intemporalidade. Onde se codificam preconceitos e reforça a imagem de uma classe média e média-alta. Onde a estética é transformada em elitismo através do pretensiosismo social, financeiro e intelectual. Local onde o artista é um individuo comercial, disfarçado. O que se assistiu foi à traficância do trabalho criativo a que a arte se deve obrigar. Tudo foi tão óbvio, tão simplória e mediocremente criativo que só pelo receio de ser tomado por ignorante é que aquilo não foi varrido a sonoras e saudáveis gargalhadas. Alinhando com a predominância do títulos em inglês, coleccionaram-se Bullshit.

Tudo em linha com a situação actual em que as imagens, artísticas ou documentais, estão dotadas de fortíssimo impacto emocional, interagem com as da moda, do cinema, da televisão, da internet, do grafismo, da publicidade do design, dando lugar a um imaginário social caracterizado pela provocação. A resultante é uma procura de novidade e do efeito, perseguida por si-próprias, o que implica uma rápida usura e obsolescência que obriga a que tudo seja continuamente substituído por algo dotado com maior força de impacto ou capaz de despertar a atenção. Nesse embaraço a arte tende a dissolver-se na moda, a qual embota e apaga a força do real, dissolve a radicalidade, normaliza e homogeneíza todas as coisas num espectáculo generalizado. Uma fábrica de provocações frustres procurando assombrar uma burguesia entediada com o seu próprio tédio, uma burguesia insusceptível de se escandalizar num mundo inenarrável por demasiado ligeiro, demasiado absurdo, onde nada se repete porque é meramente casual onde, dirá Kundera, tudo está já perdoado e por isso cinicamente permitido.

O outro lado da questão é a posição dominante que os intermediários culturais têm no mundo das artes actual. Bourdieu fez uma análise lúcida desse novo grupo social, «correia de transmissão do gosto típico das classes superiores, do bom gosto, enquanto membros de um novo tipo de pequena burguesia (…) São os encarregados de uma subtil actividade de manipulação nas empresas industriais e na gestão da produção cultural (…) a sua distinção é uma forma de capital incorporado – porte, aspecto, dicção e pronúncia, boas maneiras e bons hábitos – que, por si, garante a detenção de um gosto infalível o que sanciona a investidura social de um decisor do gosto, de modo bem mais significativo do que o faz o capital escolar, de tipo aca-démico (…) a ambiguidade essencial e a dupla lealdade caracteriza o papel desses intermediários colocados numa posição instável na estrutura social como o baixo clero de outras épocas (…) são os mercadores de necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelo e garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque sabem dar boa imagem de si acreditando ou não no valor daquilo que apresentam e representam». É essa gente que legitima e certifica os produtos artísticos, manipula os valores do mercado, passa diplomas e hierarquiza os artistas. Uma espécie de baixo clero pós-moderno que torna a arte e os artistas dependentes dos seus critérios. Fora desse circuito a criação artística é residual. Um quadro que exige um processo de desmistificação, de desmascaramento do desmascaramento com que se ilude essa realidade.

Porque a dura realidade é que desnudar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda o estado actual das artes não tem comprometido nem a sua credibilidade cultural nem a sua credibilidade comercial e mundana, como Mario Perniola extensamente teorizou no magnifico ensaio A Arte e a sua Sombra. Essas desmistificações por mais sérias e credenciadas que sejam, são sistematicamente remetidas para nichos onde se espera fiquem sepultadas. Raramente ultrapassam os muros que defendem a rede de interesses económicos que domina o mercado e impõe, com arrogância ou manhosamente, os seus ditames. O debate estético e cultural está praticamente reduzido a zero, submetido à ditadura dos intermediários culturais, sejam curadores, directores de museus ou marchands. Aliás o trânsito é intenso e não sai dos carris.

O que se torna alarmante é que o vazio criativo dessas práticas ditas artísticas onde vale tudo, tem um aliado objectivo nos que contestam alacre e imbecilmente toda a arte contemporânea, há um vídeo particularmente asqueroso a correr na internet, concorrendo ambos, por caminhos aparentemente opostos, para o descrédito das artes. Um impasse que é urgente e necessário ultrapassar rapidamente.

(publicado em Abril Abril 24/09/2016)

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Totalitarismos Democráticos

 

BOLSA

Num mundo ligeiro em que a espessura do pensamento é mais fina que uma folha de papel de arroz, a política um jogo que se quer viciado ao serviço dos grandes interesses económico-financeiros, a comunicação social a voz dos plutocratas seus donos que reproduzem com maior ou menor talento, o controlo de opinião feito por um plâncton de idiotas úteis, alguns inteligentes,  cada cor seu paladar em que o paladar pouco se altera e a cor dominante é o cinzento, multiplica-se a invenção de frases coloridas como bolas de sabão para simular que se vive num mundo muito variado que de facto é composto de poucas mudanças.

Na economia as crises estruturais não são radiografadas. Tudo se escoa pelos sumidouros dos activos tóxicos, dos remédios, bancos bons e bancos maus e por aí fora, numa correria desordenada de frases feitas onde se encontram verdadeiras perolas como aquela do crescimento negativo.

Na política a cada esquina que se dobra tropeça-se no Brexit, no TINA (There Is No Alternative), nas lutas fracturantes, nos efeitos colaterais etc etc para que tudo pareça mudar para tudo continuar na mesma. Eleva-se à categoria de pensamento o thatcherismo, o reganismo, o blairismo como se tudo isso não fossem papeis amarrotados no caixote de lixo da história.

Constrói-se uma realidade de frases feitas que quer impor como realidade o fim da história, o fim da ideologia, o fim do mundo porque para eles não há outro mundo para lá deste. É um processo de pensamento minguante, de retrocesso social, de infantilização da política com um objectivo claro: não ser sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade outra. É o totalitarismo democrático imposto por uma ditadura de medíocres que manipula o presente para manter as rédeas do passado e do futuro nas mãos da plutocracia. Razão tinha Georges Orwell quando lucidamente denunciou que para se ser totalitário não é necessário viver numa sociedade ditatorial porque “quem controla o passado dirige o futuro e quem dirige o futuro controla o passado”.

Deve-se reconhecer que a direita vive um momento de vitória ideológica apesar das vitórias políticas da esquerda. Há que lutar todos os dias contra essa factualidade, mesmo quando vamos entrar no que eles chamam de silly season, como se as lutas sociais e políticas amolecessem com o calor e fossem de férias. Há que fazer entrar pela janela a real realidade que eles atiram com contumácia porta fora.

(editorial do Jornal A Voz do Operário/ Julho,Agosto 2016)

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EMBUSTES

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Por causa das próximas eleições e da organização dos debates na comunicação social, na ordem do dia os critérios editoriais. Paralelamente há lances ridículos como o argumentário do CDS preocupadíssimo com o eclipse do seu querido líder que, sendo número dois de uma coligação, fica afastado das pantalhas. Uma injustiça para quem, apesar das rugas que se acumulam nos tiques e tornam mais evidentes e penosos os vícios, todos os dias se olha ao espelho e pergunta: espelho meu, espelho meu, há político mais esperto que eu? Há político que salte melhor ao eixo sobre a verdade que eu?

Pormenores que empurram para zonas de sombra os debates sobre os formatos dos debates na comunicação social entre partidos políticos, debates  dominados pelos critérios editoriais, o grande embuste dos media ditos independentes e de referência. Qualquer quadro superior de uma empresa é da total confiança dos accionistas principais, dos donos das empresas. Pela mão não se sabe de que deus menor, os directores e editores dos meios de comunicação social consideram-se possuidores de um poder que os torna imunes aos interesses económicos dos seus patrões. Estão a mentir, Mentem, com a convicção dos grandes mentirosos capazes de negar tudo, mesmo as próprias evidências. A Negação de Pedro é uma história infantil comparada com as negações da realidade feita por essa gente. Por tudo e por nada brandem a bandeira dos critérios editoriais que são critérios única e exclusivamente orientados pela caça ao mercado e pela subserviência mais contumaz às directivas do capital.

Se dúvidas existissem basta fazer uma estatística cega das notícias, tempos e dimensão que cada um dos órgãos de comunicação social concede aos partidos, aos líderes partidários. Analisados os conteúdos a miséria ética dos campeões dos critérios editoriais é guilhotinada sem dó nem piedade. Assim se percebe o incómodo causado pelo último livro de Umberto Eco Número Zero, sobre o mau jornalismo “Escolhi o pior caso. Quis dar uma imagem grotesca do mundo, ainda que o mecanismo da máquina para sujar, de lançar insinuações, já fosse usado durante a Inquisição“. O pano de fundo desse mau jornalismo, no livro levado aos limites mais grotescos, é o do jornalismo mercenário generalizado que corre mundo, não dando a imagem real desse mundo. Constroem uma imagem que o procura perpetuar justificando as suas acções, das mais bárbaras às mais persuasivas. Procuram demonstrar que o motor que o faz funcionar pode ter defeitos, falhas mas é o único motor possível. As críticas, as denúncias, por vezes inflamadas, dos escândalos políticos, económicos, sociais são instrumentais. Fazem parte de um jogo em que se compra credibilidade para continuar a generalizada intoxicação. Tal como ainda são necessários e indispensáveis jornalistas e comentadores de estatura e seriedade intelectual. Compulsar o seu desaparecimento progressivo dos órgãos de comunicação social nas últimas décadas elucida como a degradação alastra.

Grécia, Ucrânia, Médio Oriente, Europa, os desastres humanitários, as crises económica mundial, as artes e as letras, o desporto, a chamada Lifestyle, tudo o mais que flutua nesse caldo de cultura, são temas passados pelo crivo dos critérios editoriais que os trata e maltrata, banaliza como coisas naturais, passíveis de correcções de pormenor nunca de fundo. Que as tratam e maltratam na construção de um imaginário que quer impor uma visão  unilateral, uma visão pós-moderna do mundo, em que a ideia moderna de uma racionalidade global da vida social e pessoal se desintegrou numa miríade de mini-racionalidades ao serviço de uma inabarcável e incontrolável irracionalidade, como diz um dos seus próceres, só não concluindo como devia que essas mini-racionalidades ao serviço de uma inabarcável e incontrolável irracionalidade são a base de uma ideologia que tem uma fé avassaladora e totalitária no neoliberalismo económico.

O objectivo final é que o mundo seja um campo de concentração, rodeado de barreiras de arame farpado materiais e imateriais, onde se encerre a dimensão humana enquanto motor de transformação e emancipação. Os fornos crematórios sempre activos para reduzirem a cinzas mesmo pensar a possibilidade de se pensar qualquer transformação significativa da forna de organização da sociedade. Parte substancial dos rolos de arame farpado, do combustível dos fornos crematórios é fornecida pela comunicação social com uso intensivo dos seus meios tradicionais e modernos, decorados com os pendões dos critérios editoriais.

O mundo atola-se nesse pântano que Peter Sloterdijk classifica de cínico por sustentadas em acções descaradas e desonestas o que as distingue do cinismo antigo de Diógenes e seus seguidores, nos quais a crítica das convenções era inseparável de uma prática coerente de recusa de compromissos: (o cinismo) na antiguidade era uma conduta de liberdade e de autonomia individual; na pós-modernidade é um conformismo cúmplice das piores baixezas. O sentir pós-moderno parece ter ficado paralisado pela discrepância entre um conhecimento lúcido e penetrante e uma imoralidade deliberada, sem freio e sem pudor.

Denunciar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda e afunda esse mundo pós-moderno do capitalismo neoliberal não tem comprometido a sua credibilidade. Aliás, essas desmistificações por mais sérias e credenciadas que sejam são sistematicamente remetidas para buracos onde se espera fiquem sepultadas. Esquecem-se da história mitológica do criado do Rei Midas que contou um segredo terrível sobre o seu senhor a um buraco que fez na terra e que tapou cuidadosamente. Nesse lugar cresceu um zambujal por onde a brisa passava e os bambus transmitiam o segredo aos quatro ventos. As denúncias dificilmente ultrapassam os muros, mas acabam sempre por os saltar questionando a rede de interesses económicos que domina o mercado e impõe, com indisfarçável arrogância, fedorenta ou perfumada, os seus ditames. É o triunfo do economicismo puro e simples que para Ariel Kolnai, não é repugnante, quando procede segundo uma lógica abstracta da qual a vida está excluída. Passa a ser repugnante quando se entrincheira por detrás dos valores, da ideologia, ou seja, por detrás duma afectividade enganadora e hipócrita.

A comunicação social, entrincheirada nos critérios editoriais, é uma das grandes e principais rodas dentadas desse gigantesco mecanismo que tritura o mundo em benefício do grande capital. Proclama em alta grita uma independência em que ninguém acredita, que eles próprios sabem ser um cínico e repugnante conceito. Fazem-no com a impunidade de a vigarice intelectual não ser crime previsto em nenhum Código Civil. A lei é, sempre foi, o direito do mais forte à liberdade. Não será para todo o sempre porque só a verdade é revolucionaria. Há que lutar por ela com todas as armas ao seu alcance.  O mundo apodrece, não se espere que caia.

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