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Esbofetear a Literatura e a Cultura

bobdylan

 

Por estes dias Bob Dylan por interposta Patti Smith recebe o Nobel da Literatura que a Academia decidiu conceder com o argumento de “ter criado novas expressões poéticas na tradição da canção americana”, o que a secretária permanente da academia explicou, considerando Dylan ser merecedor do prémio por “ser um grande poeta na grande tradição da poética inglesa”.

São curiosas justificações que nada justificam. Se Dylan criou novas expressões poéticas na tradição da canção americana o que dizer de um Leonard Cohen, de uma Laurie Anderson, de uma Meredith Monk. Argumento mais ridículo é considera-lo “um grande poeta na grande tradição da poética inglesa”. Um só verso de T.S.Elliot, para referir outro nobelizado, tem mais espessura e inteligência que toda a obra de Dylan, a que já produziu e a que eventualmente venha a produzir. Seria extraordinário que a coroa de louros do Nobel produzisse tal metamorfose e transfiguração. O que o Nobel vai injectar em Dylan é um doping de marketing.  O prémio da Academia Sueca é um selo que faz vender e muito mais vai fazer vender quem já se movia no mundo comercial como peixe na água, como se pode aferir pelas vendas alcançadas por um dos seus últimos discos em que recorre ao reportório de Sinatra mesmo que seja uma demonstração das suas limitações enquanto cantor.

A atribuição do prémio a Dylan produziu enormes ondas de choque no universo da cultura, normalmente associada a um conceito restritivo e elitista que tem sido abalado, desde a emergência da cultura pop por uma hibridização entre géneros que não cessam de se cruzar de forma incongruente mas que, há que reconhecê-lo, muitas vezes de forma sedutora para criar um imaginário universalizado a destruir fronteiras entre as camadas sedimentares das culturas, Cultura Erudita/Humanística, a Cultura Popular, Cultura de Massas, etc. alienando as políticas de democratização da cultura. Um dos que mais se fez ouvir foi Vargas Llosa, outro Nobel da Literatura, numa denúncia vigorosa de que agora “vale tudo” na banalização de uma cultura em que se apagaram os parâmetros selectivos, interrogando se “no próximo ano vão dar o Nobel da Literatura a um futebolista”. O que não é inesperado de quem escreveu o ensaio A Civilização do Espectáculo, em linha com muitas obras teóricas que têm colocado em causa o estado actual da cultura contaminada pelas mundanidades e pelos populismos.

No olho do furacão desencadeado pela atribuição do Nobel a Dylan têm ficado submersos outros argumentos pertinentes embora quase seja obrigatório referir o sofisma de alguns recordarem que na antiga Grécia a poesia estar sempre ligada á música. Safo ou Homero, os trovadores franceses e ingleses, as Cantigas de Santa Maria da corte de Afonso, o Sábio ou de Dom Diniz, não podem ser usados para caucionar a eleição da Academia Sueca. Ao entrar por esse campo, dentro das fronteiras definidas nesse território, Dylan é um pigmeu, tanto poética como musicalmente, se for comparado com um Georges Brassens, um Leo Ferré, mesmo um José Afonso. Ouvindo qualquer desses cantautores, como agora são chamados, a distância para o norte-americano é abismal. E se Brassens raramente musicou poemas que não os seus Ferré, com bastante talento e sem escorregar para algum cabotinismo que inquina parte da sua obra, escreveu excelente música para poemas de Rimbaud, Verlaine e Baudelaire. Estão mortos, a Academia não atribui prémios a artistas entretanto desaparecidos. Argumentário falhado se formos ouvir um Chico Buarque ou um Caetano Veloso que, como escreveu Helder Macedo, “transformaram a poesia impossível no tempo da ditadura na canção possível durante a ditadura”. Sublinhe-se mais uma vez com um saber musical e poético de que Dylan é incapaz. Estão vivos, continuam a escrever canções numa língua que é das mais faladas no mundo, o que seria uma eventual pecha dos franceses. São de um país, o Brasil, onde o Nobel nunca desembarcou apesar dos grandes escritores que cintilam no seu firmamento e no firmamento universal.

Estranho? Nem tanto. O prémio Nobel da Literatura, como outros nóbeis, é também um prémio político. Obama está no panteão dos nóbeis da Paz para o confirmar. Na literatura, só assim se percebe porque foram nobelizados Soljenitsyne, Cholokov, Alexievich ou, sobretudo Churchill “pela sua brilhante oratória na defesa dos Direitos Humanos”, ele que era de facto um brilhante orador, a denúncia incendiária que fez do nazismo prova-o, mas teve posições dúbias em relação ao genocídio dos índios, desprezava não pelas melhores razões Gandhi, a componente rácica não era alheia a esse desprezo, foi um dos principais co-autores do brutal e desnecessário bombardeamento de Dresden, registado para a posteridade em Matadouro 5, por Kurt Vonnegut e que agora está a ser detergentada pela química dos restos do Muro de Berlim. Enfim, era a Academia Sueca a contribuir decisivamente para cumprir o desejo de Churchill “a história será gentil para mim, já que pretendo escrevê-la”.

Nesse patamar político há que situar o Prémio Nobel da Literatura 2016, escolhendo um suposto activista da contracultura, subvertida pela sua obra politicamente correcta, a fazer cócegas inconsequentes ao establishment, que engorda com essa marginalidade bem-comportada, a envernizar a liberalidade de uma sociedade sem dignidade e sem dignidade para oferecer.

É nesse patamar político que o prémio da Academia contribui para a manutenção do imperialismo cultural anglo-saxónico, que se ancorou no século XX, quando as nações perdem centralidade e capacidade de comandar o processo cultural. Quando a superfície global vai dissolvendo o território, o exercício de soberania, a língua e a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. Quando miséria e riqueza extremas tocam-se com geografias alteradas. Situações que ainda há cinquenta anos eram do 3º mundo existem no 1º Mundo, e em áreas qualificadas do 3º Mundo surgem imagens e poderes do 1º Mundo. É o fenómeno da globalização que decorre do desenvolvimento capitalista. Uma época nova que se começa a definir mais nitidamente a partir dos anos 70 com o fim da equivalência do dólar-ouro, a primeira grande crise do petróleo, a definição da paz nuclear. Quando se começa a reconhecer que é difícil ou mesmo impossível garantir o desenvolvimento capitalista com os instrumentos de regulação soberanos internos, dentro dos espaços-nação. Instrumentos de regulação económica como o Banco Mundial ou o FMI, que eram projecções da potência norte-americana têm hoje um carácter supranacional de regulação do desenvolvimento mundial. É a situação histórica da passagem do modernismo para o pós-modernismo. Enquanto, numa extensão sem precedentes, cada vez mais habitantes do planeta perdem a esperança e são atirados para a exclusão, a riqueza global vai-se concentrando num número cada vez menor de mãos. Em nome da racionalização e da modernização da produção, estamos a regressar ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial. Uma nova ordem económica emerge impondo-se com violência crescente. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Megas pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto a lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. Para esta nova ordem capitalista são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos, proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, as revistas de glamour, a música internacional nos sentimentos e americana na forma, os programas radiofónicos e televisivos prontos a usar e a esquecer, o teatro espectacular e ligeiro, o cinema mundano medido pelo número de espectadores, a arte contemporânea em que a forma pode ser substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada numa marca garante do valor da mercadoria artística que atravessa fronteiras e agora entra com grande estrondo nos salões em que se decidem a atribuição do Nobel da Literatura, tomados de assalto pela banalização dos critérios intelectuais, pelas modas da cultura massificada e alienada, pelo vazio da era do vazio.

Inscreve-se o prémio da Academia Sueca a Bob Dylan na exportação de formas culturais que têm o objectivo de despolitizar, trivializar, alienar a humanidade aplainando o humano individual num processo de globalização e internacionalização que tende a destruir todas as formas de solidariedade, comunidade, valores sociais. É uma nova tirania exercida através de uma cultura em que subverte a cultura erudita e popular numa formatação pop e na instituição do star-system em que o que se exige dos receptores é o menor esforço, em que a procura e o do prazer da descoberta são praticamente anulados para que a inteligência morra, depois de um longo estado de coma agónica entre no grau zero.

Eleger Bob Dylan como Prémio Nobel da Literatura enquadra-se nos objectivos maiores do imperialismo político e económico, na sua componente cultural. É a legitimação do triunfo da cultura pop, do populismo das redes sociais, da banalização do pensamento reduzido ao teclar de um tweet, do trabalho sem fadiga de demagogicamente banalizar a criatividade, um vírus canceroso que tem vindo a corromper as artes na grande tarefa de destruição da exigência de esforço que as artes comportam para nos tornarem humanos.

(publicado em AbrilAbril; 12 Dezembro)

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Artes, Cultura, Geral, Manuel Gusmão, poesia

Manuel Gusmão

 

gusmao

Hoje, Manuel Gusmão, nome maior entre os poetas e intelectuais portugueses nossos contemporâneos celebra o aniversário. Celebremos com ele essa data.

 

“Nós, na «tradição dos oprimidos (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para estoirar o tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma), outra vez” (Manuel Gusmão, Uma Razão Dialógica. Ensaios sobre literatura, a sua experiência do humano e sua teoria, 2011, p. 371)

 

 

UMA PEDRA NA INFÂNCIA

 

 

Põe uma pedra

uma pedra sobre a infância

 

Para que de vez se cale essa respiração

contida suspensa no escuro

 

Põe, digo-te, uma pedra de silêncio sobre

essa infância essa fala ininterrupta essa

 

falagem que falha e promete e inventa

os sonhos e as promessas o riso sem porquê

 

Para que de vez se interrompa a esperança esse

mal que não desiste. Escreve, faz o que o ditado dita:

 

Enterra no silêncio da pedra essa intolerável coisa

que é a infância, as vozes da noite do poço.

 

Apaga a infância isso que falta sempre à chamada

e para sempre trocou já os desejos e os medos.

 

Já não vais a tempo, ela enredou sem remédio

as vidas os nomes a tua condenação. Mas vai.

 

Para que se cale de vez essa respiração que se ri

na cara da morte, nos olhos do enviado de deus

 

recita o que o ditado ditou: Põe uma pedra sobre

a infância e ouve a erva a folhagem que cobrem

 

o céu em ruínas,

 

Também então havia uma pedra no canto do quarto

Ali onde a noite começava, era uma pedra e depois

crescia, petrificava-se no seu coração de pedra

dividia-se e eram várias crescendo; ocupando

todo o espaço do sono, do sonho do mundo,

Pesavam no teu peito procuravam-te os olhos

que de pedra ficavam e o grito era uma pedra

que na garganta subia contra a outra pedra,

O próprio ar golpeado era e dividia a voz

pedra contra pedra, o deserto a perder de vista.

 

Põe uma pedra sobre outra pedra. Inventa uma

outra infância de que possas recordar-te.

 

Obedeces ao poema e é sem espanto que vês:

nada acontece, Não há

 

nenhuma voz na voz dos condenados.

(Migrações do Fogo, 2004)

 

Leiam a entrevista que recentemente deu para a revista on-line de Letras, Artes e Ideias CALIBAN

https://caliban.pt/entrevista-com-manuel-gusmão-904d401e9ea4#.u97f1nk4u

 

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Cultura, Geral, Helder Macedo, Literatura, Livros, poesia

O Poeta não é um fingidor

HMACEDO

 

Romance é um labirintíco e complexo poema. Um diálogo sobre amores e desamores, realidades e sonhos, encontros e desencontros que têm por cenário o cruzamento entre certezas quase absolutas e dúvidas sempre sistemáticas. O presente ser todo o passado e também o futuro, como Álvaro de Campos e T.S. Elliott enunciaram, tem neste poema a sua expressão paradigmática. São memórias de vida como foi vivida, como poderia ter ser sido vivida, como poderá ser vivida. Um rio a correr por direcções opostas sem nunca perder o norte.  Têm uma espessura e uma intensidade quase hipnóticas, numa escrita em que o poeta não é um fingidor. Sofre e faz-nos sofrer verdadeiramente com a crueza das palavras com que monta e desmonta o que é dado por adquirido para logo mergulhar na obscuridade onde se perde. Os corpos do desejo sempre presentes, sempre em unidade e conflito, engrossam uma nuvem que desaba espalhando os pedaços que sobram das batalhas da vida. Desaba num puzzle impossível de resolver, num chão impossível de varrer, numa ficção de amores antigos e actuais mais reais que a realidade que o poeta desnuda com as minúcias de nunca a despir. Um poema impar de Helder Macedo com Bernardim Ribeiro ao fundo.

(publicado no Guia de Eventos de Setúbal Maio/Junho 2016)

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Aragon, Artes, Barbara, Bartolomeu Cid dos Santos, Catherine Sauvage, Cultura, Françoise Hardy, Georges Brassens, Geral, Marc Ogeret, música

Não há amor feliz

Hoje é dia de solstício que inicia o Inverno. Um tempo de paisagens frias e vazias, tempo desolação que muito tem sido celebrado em poesia e na música. O mais óbvio é a memória do Winterreise/Viagem de Inverno de Schubert, viagem mais solitária de todas as viagens que percorre vinte e quatro canções onde os sonhos fenecem, as notícias ampliam a amargura e sepultam qualquer esperança. As interpretações desse ciclo de canções sobre poemas de Wilhelm Muller, são inúmeras e excelentes como as de Peter Schreier/ Sviastoslav Richter, Dieter Fisher-Dieskau/ Jorg Demus, Mathias Goerne/ Alfred Brendel, Hans Hotter/ Gerald Moore. Bartolomeu Cid dos Santos, artista maior, homem de enorme cultura, grande amante da música, não podia ficar indiferente ao Winterreise e fez 24 extraordinárias gravuras, uma por cada canção. Um dia alguém cantará a Viagem de Inverno tendo por fundo essas obras de arte, uma celebração das artes.

Mas para assinalar este primeiro dia de Inverno, para o assinalar aceitando que a desolação é a sua marca maior fomos ao encontro de Aragon e de um seu poema que, de certo modo, é invernal, Il n’y a pas d’Amours Heureux. Georges Brassens, esse trovador nosso contemporâneo escreveu e cantou-o como só ele o sabia fazer e quando os textos das canções tinham um sentido e um valor que o tempo tem corroído.

Depois muitos outros cantaram essa bela canção. Traduzir é muito complexo, ainda mais traduzir poemas. Com alguma audácia e não sendo poeta, longe disso, atrevi-me a escrever uma tradução muito livre do poema de Aragon, com a única pretensão de não trair o poeta, sem pretender “escrever” um poema o que só grandes poeras o poderiam fazer.

Aqui ficam registos de vários cantores a interpretar o poema de Aragon com música de Brassens

 

 Nada é definitivo na vida de um homem

Nem a sua força nem a sua fragilidade nem o seu coração

Quando acredita abrir os braços num abraço

A sombra é a de uma cruz

Quando acredita agarrar a felicidade descobre uma ferida

A vida é um estranho e doloroso divórcio

 

Não há amor feliz

 

A  vida é um soldado sem armas

Fardado para outros destinos

De pouco serve acordar cedo

Quando ao fim da tarde se é assaltado pelas incertezas

E dizer as palavras Minha Vida para calar as lágrimas

 

Não há amor feliz

 

Meu belo amor meu querido amor minha tristeza

Estás dentro de mim como um pássaro ferido

Quem nos vê passar nada sabe

Comigo repetem essas palavras que gravo

 E morrem de súbito no teu olhar profundo

 

Não há amor feliz

 

É tarde demais para aprender a viver

Os nossos corações unidos choram noite dentro

Quantos desgostos ultrapassámos para conquistar um arrebatamento

Quantos infortúnios experimentámos para escrever esta pequena canção

Quantos lamentos trocámos para arrancar estes sons de uma guitarra

 

Não há amor feliz

 

Não há amor sem dor

Não há amor que não morra

Não há amor que não seque

Não há amor maior que o teu amor pela pátria

Não há amor que não viva entre lágrimas

      Não há amor feliz

     Mas é esse o nosso amor o amor de nós dois

 

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40 Anos do 25 de Abril, Artes, autarquias, Cultura, Escultura, Fotografia, Geral, Gravura, História, Literatura, património, poesia, Setúbal, Trabalho

Revista Movimento Cultural

MovimentoCultural

Esta noite, às 21:30, no Salão Nobre da Câmara Municipal de Setúbal, é apresentada uma edição especial da Revista Movimento Cultural, iniciativa da Associação de Municípios da Região de Setúbal que pretende divulgar o que se faz na região nos domínios da cultura, da investigação e da arte.

Partilho artigo de opinião do Fernando Casaca sobre a reedição da Revista Movimento Cultural.

 

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Cultura, poesia

Credo… mais um poema

CREDO

Creio nos anjos que andam pelo mundo,
creio na deusa com olhos de diamantes,
creio em amores lunares com piano ao fundo,
creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes;

creio num engenho que falta mais fecundo
de harmonizar as partes dissonantes,
creio que tudo é eterno num segundo,
creio num céu futuro que houve dantes,

creio nos deuses de um astral mais puro,
na flor humilde que se encosta ao muro,
creio na carne que enfeitiça o além,

creio no incrível, nas coisas assombrosas,
na ocupação do mundo pelas rosas,
creio que o amor tem asas de ouro. Amém.

Natália Correia

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Geral, poesia

Belo… e poético

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A rua é das crianças

 

Ninguém sabe andar na rua como as crianças. Para elas é sempre uma novidade, é uma constante festa transpor umbrais. Sair à rua é para elas muito  mais do que sair à rua. Vão com o vento. Não vão a nenhum sítio determinado,  não se defendem dos olhares das outras pessoas e nem sequer, em dias escuros, a  tempestade se reduz, como para a gente crescida, a um obstáculo que se opõe ao  guarda-chuva. Abrem-se à aragem. Não projectam sobre as pedras, sobre as  árvores, sobre as outras pessoas que passam, cuidados que não têm. Vão com a mãe à loja, mas apesar disso vão sempre muito mais longe. E nem sequer sabem  que são a alegria de quem as vê passar e desaparecer.

Ruy Belo

Do seu livro Homem de Palavra(s) (1970)

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poesia

Quem não gosta… de poesia?

Recomeça
Se puderes
Sem angústia
E sem pressa.
E os passos que deres,
Nesse caminho duro
Do futuro
Dá-os em liberdade.
Enquanto não alcances
Não descanses.
De nenhum fruto queiras só metade.

E, nunca saciado,
Vai colhendo ilusões sucessivas no pomar.
Sempre a sonhar e vendo
O logro da aventura.
És homem, não te esqueças!
Só é tua a loucura
Onde, com lucidez, te reconheças…

Miguel Torga

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Cultura, poesia

Bela… é a poesia!

A vida é o resultado de um conjunto de realidades aparentemente insignificantes que nos rodeiam, mas também de histórias e de emoções que perduram na memória de cada um de nós.

Bucólica

A vida é feita de nadas:
De grandes serras paradas
À espera de movimento;
De searas onduladas
Pelo vento;

De casas de moradia
Caiadas e com sinais
De ninhos que outrora havia
Nos beirais;

De poeira;
De sombra de uma figueira;
De ver esta maravilha:
Meu Pai a erguer uma videira
Como uma mãe que faz a trança à filha.

Miguel Torga, Diário I, Coimbra, 1941

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Cultura, Geral, Literatura, poesia

Juan Gelmán

juan gelman(1930-2014)

Opiniones

Un hombre deseaba violentamente a una mujer,
a unas cuantas personas no les parecía bien,
un hombre deseaba locamente volar,
a unas cuantas personas les parecía mal,
un hombre deseaba ardientemente la Revolución
y contra la opinión de la gendarmería
trepó sobre muros secos de lo debido,
abrió el pecho y sacándose
los alrededores de su corazón,
agitaba violentamente a una mujer,
volaba locamente por el techo del mundo
y los pueblos ardían, las banderas

Vale a pena ler a admirável carta que escreveu à neta ou neto que desconhecia.

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Cultura, Geral, poesia

SAUDEMOS UM POETA

Hoje, Manuel Gusmão aniversaria.

Saudemo-lo, saudando um dos mais brilhantes intelectuais, um dos grandes poetas portugueses contemporâneos e um militante comunista

Farewell, Gravura de Bartolomeu Cid dos Santos

FAREWELL, gravura de Bartolomeu Cid dos Santos

A VIA LÁCTEA

Cegos o dia e a noite, as mãos errantes e alucinadas

conhecem na extrema proximidade entre água e água

uma longínqua constelação na cegueira fulgindo.

 

É quando a matéria do mundo em ondas nos dança

 

e então um no outro se entrança o corpo comum de dois

os seus raios disparando as inúmeras almas. Vermelhas

fotografias ondulam no pequeno e vermelho mar violeta

 

na câmara escura onde nadamos. E nadando rodamos

para o mais longe o mais dentro de nós: Lá onde

entre ti e mim uma fronteira cede e não somos já

quem  éramos; alguém rodando alguém voando o vivo.

 

Assim cruzam as suas revoluções os astros:

 

Esta é a gravitação enlouquecida dos átomos no sangue

o turbilhão nos lugares de um corpo inventado

na mesma língua, noutra voz: a música de uma árvore

 

que é o sol nascente na tua boca iluminada.

 

As mãos e a língua os dedos as unhas os dentes escrevem

a pele e acordam o cérebro do amor: a floresta arenosa

onde te perdes enquanto o mundo docemente se vira para

 

o outro lado. Para o lado em que o verso sem medida

 

bate aos ouvidos da noite que se inclina e roda; para o lado

de onde ouvimos a noite americana: selvagem no coração-,

 a noite de África e da infância, ou a da estepe sem fim, onde

 

eu era jovem e nascia e tu não tinhas vindo. — Agora venho

 

e tu estás aí no rio do corredor entre duas portas e em contraluz

no trémulo limiar em que os mundos se desencontram

e a tua respiração é os mil rumores que a folhagem fazem.

 

Vejo as claras tempestades : os teus pés na chuva do sol.

 

Entre a luz que sobe e a luz que cai, um corpo nasce

um corpo acontece como uma vibração uma vertigem do ar

que subitamente mais denso sobre si se dobrasse.

 

Oiço essa chuva clara em que te ergues, e ardem

os olhos perante as heliografias incandescentes: entre

as tremendas descrições do sol e as gravuras vacilantes

e sobrepostas que o mesmo sol na carne viva imprime.

Quantas vozes numa voz, quanto tempo nesse instante.

E é como se subindo as ervas molhadas eu subisse

tu me subisses até ao rio das pernas navegando,

acendendo nele um músculo que estremece luminoso.

Ou como se sem regresso regressasse àquela artéria

que já na alma trazes de outros longes tatuada.

Por outros corpos escrita: lembro-me de onde ficavam

a nascente dos cabelos, as vértebras encantadas, o sinal

fóssil do insecto de ouro que no âmbar escurecera.

Dobras o cimo de um ombro e vês a onda

Que sobe ao teu encontro, desces agora a queda da água

cais e esqueces-te, longamente te esqueces

do que já escrito fora, lá onde me lês os sentidos perdidos.

Ou seria aí que de uma anca para o ventre descias?

— sim, resvalava pela face oriental de uma duna

até à infindável dobra da virília

e fazia um corpo que fora já o leito de um mar.

Aqui, em dobrando o ilíaco há a bacia hidrográfica

levemente encurvando a enseada

com o monte da deusa sobre o pequeno mar de dentro. O sabor o som o olor

mudando, subindo, rodando: a nossa pequena ilíada.

Ou de entre os seios à garganta seria já outra a travessia?

Ter-se-ia, lá, a segunda mão perdido dos seus dedos?

E a boca que após ela sobe diria delirando mansa as suas

sílabas alumiadas, a albumina o alúmen a luz do lume.

De um sol a outro sol, o suor e o sal, o púbis e a axila

o silvo do sangue; a asfixia feliz da alegria e os sismos

que abalam os corpos em guerra até à paz perpétua.

Ou não me lembro. Ou és tu agora quem me escreve.

Das espáduas, de onde veremos as águas nascendo

altas para lá das árvores — ao pescoço que me estremece

-subindo  eu até à trémula glória da nuca e àquele  luar

que  se acende quando os teus lábios os olhos me fecham.

-Reconheço a língua que me humedece os cílios
ou contra os dentes me diz a concha interior e

o períneo que me deslizas, deslizo como a uma neve nocturna

e quente e eterna até à escura rosa do ânus.

Como se perdida fosse e sem remédio

a memória perdidamente contornas o contorno das nádegas

que  intensas se põem tensas: doce pedra frangível.

E eu com a minha mais íntima boca procurando a tua

pronta  e devagar como se dançando e rodando fosse

e to devorasse enquanto devagar avanças; sim,

avanço pela alma da rosa vulvar; e mais dentro me desdobras

envaginando o músculo em que pulsa o novo coração:

O animal amante e a coisa amada trocam de lugar

e  confundem a voz e os dedos, os sucos e os nomes

que  se enleiam, deslizam e afundam na seda acesa

ou  no veludo azul em que a noite sobe até à flor do dia.

Os meus céus bivalves movem-se e são as nuvens rosa

em que te pões poente; — dizes pétalas em torno do centro

vazio  da rosa; digo cortinas redondas e macias que na alma

escondem  e revelam a cena nocturna da sideração vermelha.

Nuvens, pétalas, cortinas que o meu falo t                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                   e fala e há uma  praia

movente movediça que me sobes, maré que pelo rio da pele

nos invade, até ao teu pescoço alto e junto aos tenros  lóbulos,

até ao cérebro em que o olfacto uma flor abre fluorescente.

Na fronteira do verso, subimos até à explosão esplendente

do outro verso: kíríe: e não sabemos já o nome que dizemos.

Escreves o que não lembras. Seria o eco entre fragas e fráguas.

Seria o jacto e o júbilo: A thing of beauty is a joy foi ever.

Tão longa para tão pequena morte, a alegria seria.

O terceiro : o comum de dois é quem fala: Bons condutores

de luz, eis que a condensam e com ela tecem um alpendre

precário sobre a duna perene; onde o mar os filma. E esse filme

é cosa mentale, mas uma coisa atravessada e que atravessa

de um a outro os corpos ambos, no sangue deitando, abrindo

um veneno dulcíssimo, uma doença vazia e lactescente. E então

o novo e impossível vivente diz: Falem. E alguém responde:

Dos joelhos, onde se dobra a onda, à minha cintura vens

venho  e fazes tu dançar a árvore da música e os cabelos

da deusa, na estrofe que o oceano antigamente profere

contra o sol, como se dissesse a sua noite: esta é

a noite minha amada, a matéria do amor, o colar em chamas

que aos amantes abraça os rins — de quem as pernas?

os braços de quem? As dele ou os dela, que importa?

quando é aí a onda, o onde nasce a manhã da terra.

É uma pequena pedra que se abre: e é uma rosa

constelada e sem fim. Metamorfose e incêndio: a doce

transformação do mundo. Subir ao nascimento: inventar:

A via láctea. A terra fluvial da manhã. E tudo recomeça:

O anel de água, o delta da vénus incessante, as aves

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poesia

Um poema… mais

[Não posso adiar o amor para outro século]

Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa

Standard
poesia

Poesia

sem título

inspiro

um sopro dos lábios

percorre-me como uma brisa

e lembra-me os sussurros

e os murmúrios dos primeiros dias.

 de pureza.

expiro

um beijo fugido

escapa-se-me dos lábios

e lembra-me a partida fria

e a neblina escura do fim.

da pureza.

 

resistir

 vibrem os meus átomos

com o cair da noite escura,

gritem as horas pelas quais passo,

sem lhes tocar,

fraquejem as traves do universo,

com o olhar de rapina do negro infinito,

que em cada partícula de ser, resisto.

 

tu

vieste amanhecer-me

e agora sou um campo pleno

brilha dourado

ondula sereno

deita-me as sementes como beijos,

quando te deitares a meu lado.

percorre-me de mãos dadas com o silêncio,

os caminhos do vento que me esculpiu.

 

Miguel Tiago, in letras ígneas, poesia

Standard

Depois de o calendário o ter anunciado e certificado, o Outono recusava-se a transpor a porta de um dia., Finalmente, hoje, o primeiro dia de OUTONO, depois de verões tardios cortados obliquamente por dias de invernos precoces.
Hoje o primeiro dia de OUTONO. celebremo-lo ouvindo as Gimnopedies de Satie excepcionalmente tocadas por Reinbert de Leeuw, lendo o belíssimo poema de António Gedeão

Uma lâmina de ar
Atravessando as portas. Um arco,
Uma flecha cravada no OUTONO. E a canção
Que fala das pessoas. Do rosto e dos lábios das pessoas.
E um velho marinheiro, grave, rangendo o cachimbo como
Uma amarra. À espera do mar. Esperando o silêncio.
É Outono. Uma mulher de botas atravessa-me a tristeza
Quando saio para a rua, molhado, como um pássaro.
Vêm de muito longe as minhas palavras, quem sabe se
Da minha revolta última. Ou do teu nome que repito.
Hoje há soldados, eléctricos. Uma parede
Cumprimenta o sol. Procura-se viver.
Vive-se, de resto, em todas as ruas, nos bares e nos cinemas.
Há homens e mulheres que compram o jornal e amam-se
Como se, de repente, não houvesse mais nada senão
A imperiosa ordem de (se) amarem.
Há em mim uma ternura desmedida pelas palavras.
Não há palavras que descrevam a loucura, o medo, os sentidos.
Não há um nome para a tua ausência. Há um muro
Que os meus olhos derrubam. Um estranho vinho
Que a minha boca recusa. È Outono
.A pouco a pouco despem-se as palavras.

ANTÓNIO GEDEÃO

Cultura, Geral, poesia

António Ramos Rosa (1924-2013)

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António Ramos Rosa, poeta para quem a poesia era essencial como a respiração ou o bater do coração morreu hoje, com 89 anos. Deixa-nos centenas, milhares de poemas. Em 2005 a APE, Associação Portuguesa de Escritores, distinguiu-o com o Grande Prémio de Poesia.

Vários foram os temas da sua poesia, mas talvez seja na poesia de amor, das paisagens da escrita , da vida e do mar  que atingiu a quase perfeição.

Deixamos aqui vários poemas para o não esquecer

DA GRANDE PÁGINA ABERTA DO TEU CORPO

NÃO POSSO ADIAR O AMOR

POEMA

9 CANÇÕES de ANTÓNIO PINHO VARGAS sobre POEMAS de RAMOS ROSA

 

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poesia

Palavras belas…

XVIII

Quem me dera que eu fosse o pó da estrada

E que os pés dos pobres me estivessem pisando…

Quem me dera que eu fosse os rios que correm

E que as lavadeiras estivessem à minha beira…

Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio

E tivesse só o céu por cima e a água por baixo. . .

Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro

E que ele me batesse e me estimasse…

Antes isso que ser o que atravessa a vida

Olhando para trás de si e tendo pena …

Alberto Caeiro

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Um poema… outra vez

XXXII

Ontem à tarde um homem das cidades
Falava à porta da estalagem.
Falava comigo também.
Falava da justiça e da luta para haver justiça
E dos operários que sofrem,
E do trabalho constante, e dos que têm fome,
E dos ricos, que só têm costas para isso.

E, olhando para mim, viu-me lágrimas nos olhos
E sorriu com agrado, julgando que eu sentia
O ódio que ele sentia, e a compaixão
Que ele dizia que sentia.

(Mas eu mal o estava ouvindo.
Que me importam a mim os homens
E o que sofrem ou supõem que sofrem?
Sejam como eu — não sofrerão.
Todo o mal do mundo vem de nos importarmos uns com os outros,
Quer para fazer bem, quer para fazer mal.
A nossa alma e o céu e a terra bastam-nos.
Querer mais é perder isto, e ser infeliz.)

Eu no que estava pensando
Quando o amigo de gente falava
(E isso me comoveu até às lágrimas),
Era em como o murmúrio longínquo dos chocalhos
A esse entardecer
Não parecia os sinos duma capela pequenina
A que fossem à missa as flores e os regatos
E as almas simples como a minha.

(Louvado seja Deus que não sou bom,
E tenho o egoísmo natural das flores
E dos rios que seguem o seu caminho
Preocupados sem o saber
Só com florir e ir correndo.
É essa a única missão no Mundo,
Essa — existir claramente,
E saber fazê-lo sem pensar nisso.)

E o homem calara-se, olhando o poente.
Mas que tem com o poente quem odeia e ama?

Alberto Caeiro

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Guerra Junqueiro

A Velhice do Padre EternoO DINHEIRO DE S. PEDRO

De tal modo imitou o Papa a singeleza
Do mártir do Calvário,
Que à força de gastar os bens com a pobreza
Tornou-se milionário.

Tu hoje podes ver, ó filho de Maria,
O teu vigário humilde
Conversando na Bolsa em fundos da Turquia
Com o Barão Rothschild.

A cruz da redenção, que deu ao mundo a vida
Por te haver dado a morte,
Tem-na no seu bureau o padre-santo erguida
Sobre uma caixa-forte.

E toda essa riqueza imensa, acumulada
Por tantos financeiros,
O que é a economia, ó Deus! foi começada
Só com trinta dinheiros.

Uns versos escritos em 1885 por Guerra Junqueiro param o seu livro A Velhice do Padre Eterno.

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