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DEMOCRACIAS , SA

Um relativismo absoluto faz defender como aceitável o despotismo desde que a economia continue orientada pelos automatismos das leis do mercado, ferreamente controladas e impostas pela lei do mais forte.

O mundo invisível (1954), René Magritte (1898-1967)
O mundo invisível (1954), René Magritte (1898-1967)CréditosRené Magritte

Adominação política, económica e cultural anglo-saxónica, liderada pelos EUA, muito deve à capacidade de fazer circular ideias que se tornam centrais nos debates públicos internacionais através de intervenções dos think tanks que marcam a agenda dos debates para desarmarem e descontextualizarem os que coloquem em causa o pensamento neoliberal. Um processo que se foi apurando em dezenas de anos, em que se consolidaram a globalização mediática, a cultura de massas e a iconografia norte-americanas, integradas numa ideologia hedonista e consumista em que se neutralizaram as culturas locais descontextualizando-as, sempre e só lhe reconhecendo algum valor quando as assimilam para as colocar no mercado global das indústrias mediáticas e culturais. Uma estratégia que tem o seu maior êxito na contaminação produzida no pensamento de esquerda que, paradoxalmente, enquanto produz análises realistas e incisivas nos planos da política, da economia e da sociologia, em livros, revistas, jornais, no ciberuniverso, sobre a condição actual das nações, do aprofundar dos problemas e dramas de nosso presente, em que há um esvaziamento da democracia e se regride com a subordinação às plutocracias, muitas vezes se enreda em debates em que a luta de classes é atirada para segundo plano como se esta sociedade não fosse fundada na violência da luta de classes. Muitas esquerdas ausentaram-se de muitos planos de luta, substituindo-os por outras frentes que desaguam no que Nancy Fraser, filósofa ligada aos movimentos feministas, descreve como o neoliberalismo progressista que dominava a política estadunidense antes de Trump: «isso pode soar como um oxímoro, mas era uma aliança real e poderosa de dois companheiros de cama improváveis: por um lado, as correntes liberais mainstream dos novos movimentos sociais (feminismo, anti-racismo, multiculturalismo, ambientalismo e direitos LGBTQ); por outro lado, os setores “simbólicos” e financeiros mais dinâmicos da economia dos EUA (Wall Street, Silicon Valley e Hollywood)». Aliança que tem por objectivo último liberalizar e globalizar a economia capitalista, consolidando a sua hegemonia, o que é desde sempre o objectivo do liberalismo na sua pluralidade, de que essas esquerdas desbussoladas acabam por ser objetivamente aliadas.

«Nas democracias liberais residiria a «salvação nacional», o que se deve ler como para a salvação do neoliberalismo vale tudo, até passar por cima do funcionamento das instituições democráticas. A democracia liberal seria o melhor dos mundos apesar de uns sobressaltos nada despiciendos, desiguais e variáveis, de Orbán a Trump»

São-no porque para adquirirem presença mediática, que não por acaso lhe é amplamente concedida, não se libertam das agendas que são, directa e indirectamente, pautadas pelo ideário neoliberal plasmado pelas elites que monopolizam o espaço público que perverteram, universalizando-o. Por cá, na nossa periferia, é vê-los a perorar em todos os teatros que lhes dão palco para que o estado de sítio do liberalismo democrático se respire como ambiente natural. Da direita musculada, que se vai exercitando enquanto lavra terreno para ter condições de pôr os bíceps à prova, às esquerdas de frágil ancoragem que fazem críticas anémicas para justificarem a sua existência enquanto esquerda, esse é o pano de fundo dos cenários onde se movem. De um ou de outro modo são dependentes das ideias produzidas nos cenáculos do liberalismo, desde os primitivos liberais aos actuais neoliberais, em que a constelação dos think tanks brilha com intensidade, as dos EUA mais vigorosas pelos meios de difusão de que dispõem.

Os think tanks têm formação académica adquirida nas mais prestigiadas universidades norte-americanas, estão directamente ou indirectamente vinculados a departamentos de Estado, são presença regular nos media internacionais. Um dos casos mais recentes e emblemático é o de Francis Fukuyama, que proclamou o fim da história, das ideologias e da política no celebrado O Fim da História e o Último Homem1 depois da queda do Muro de Berlim e da implosão da primeira experiência histórica socialista. A sua tese era que a democracia liberal, regida pela mão invisível do mercado, era o ponto final da história universal, o capitalismo seria o seu estado nativo. A história tinha deixado ser território de transformações radicais ou mesmo significativas quanto à forma de organização e de vida da sociedade humana. O fim da política era o fim da política ideológica, marxista por perca definitiva de todo o horizonte utópico, da utopia não como o desejo do impossível mas daquilo que ainda não foi possível realizar.

Golconde (1953), René Magritte (1898-1967) CréditosRené Magritte /

A História que Fukuyama atirara porta fora, fechando-a a sete chaves, entrou fragorosamente pela janela. Para ele, para os cientistas políticos da sua lavra, não há vício lógico que os trave. Vale tudo desde que a propriedade privada seja o deus ex-machina, a doxa que orienta os seus ditirâmbicos exercícios de estilo, pelo que escaqueirado o fim da história retoma-a de cernelha: «os sistemas políticos modernos são chamados de democracias liberais, porque unem dois princípios díspares. Liberalismo é baseado na manutenção de um campo aberto para todos os cidadãos, principalmente quando se trata da propriedade privada, que é um factor crítico para o crescimento e para a prosperidade económica. A parte democrática, a escolha política, é aquela que reforça as escolhas comuns e que vê todos os cidadãos como um único conjunto». Nas democracias liberais residiria a «salvação nacional»,o que se deve ler como para a salvação do neoliberalismo vale tudo, até passar por cima do funcionamento das instituições democráticas. A democracia liberal seria o melhor dos mundos apesar de uns sobressaltos nada despiciendos, desiguais e variáveis, de Orbán a Trump, o que procura explicar inventando novos conceitos, das mais variegadas cepas.

«O que estes modernos cientistas políticos procuram iludir é que no liberalismo político, que tanto os move e comove, as liberdades individuais e o progresso estão sempre submetidos às suspeitas mãos invisíveis do mercado, que ditam as leis em que nada se cuida das liberdades culturais, sociais e políticas, desde que estas não se reflictam no lucro, a única hierarquia que reconhecem»

«Democracia iliberal» é um conceito apresentado por Fareed Zakaria em artigo de 1997 para a revista Foreign Affairs, de que é editor. Zakaria, que defendeu a invasão do Iraque – do que se veio a arrepender – e criticou George Walker Bush para alinhar com as aventuras bélicas de Obama, anda agora muito entusiasmado com o Plano Abraão, o iníquo plano de paz de Trump para o Médio-Oriente, elogiando Netanyahu e mesmo Mohammad bin Salman, o príncipe herdeiro saudita – esse mesmo, o mais que suspeito de envolvimento na morte macabra de Jamal Khashoggi, no desaparecimento de vários outros príncipes sauditas seus críticos, responsável sem quaisquer presunções pelo maior desastre humanitário actual, que sucede no Iémen. Quando define esse conceito inicia uma cruzada em defesa das democracias liberais, as quais que se poderiam organizar numa espécie de deriva política da tabela periódica de Mendeleiev: 1- Não democracia; 2- Democracia illiberal; 3- Semidemocracia; 4- Democracia liberal; todos estes grandes grupos subdivididos numa miríade de subgrupos. É um exercício de sobrevivência das democracias formais para a ditadura da burguesia, como Lénine definiu, continuar a exercer o seu poder soberano, mais ou menos temperado entre as liberdades individuais e as reivindicações da economia de livre mercado – a sua pedra basilar – em que as desigualdades económicas e sociais se agravam, como se tem assistido nos últimos decénios. O que estes modernos cientistas políticos procuram iludir é que no liberalismo político, que tanto os move e comove, as liberdades individuais e o progresso estão sempre submetidos às suspeitas mãos invisíveis do mercado, que ditam as leis em que nada se cuida das liberdades culturais, sociais e políticas, desde que estas não se reflictam no lucro, a única hierarquia que reconhecem. O fundamento é que a propriedade privada, raiz da exploração do trabalho e da alienação humana, permaneça intocada.

Neoliberais herdeiros dos liberais do séc. XVIII, John Locke, Jeremy Bentham, Stuart Mill, que nunca foram democratas embora pregoando o liberalismo político, as liberdades individuais e o progresso, os quais deviam ser submetidos ao utilitarismo de uma ética aplicável tanto às decisões políticas como às acções individuais. Esse o norte nas áreas económicas, políticas e judiciárias do liberalismo. Um relativismo absoluto que os fazia defender ser sempre aceitável o despotismo desde que a economia continuasse orientada pelos automatismos das leis do mercado ferreamente controladas e impostas pela lei do mais forte. Os liberais de antanho e os neoliberais de hoje só relutantemente e quando lhes é impossível subtraírem-se é que se submetem a princípios democráticos, que logo subvertem quando alcançam o poder.

O que de facto os inquieta é que a crise continuada do liberalismo clássico do século XIX, agora agravada com as crises vividas nos sécs XX e XXI, continue incapaz de garantir o progresso social por muito que os mercados sejam livres, o que alimentou as experiências socialistas do início do século XX e continua a manter a chama acesa nas esquerdas marxistas que consideram contingente a realidade histórica do capitalismo mesmo quando hoje ela se apresente como hegemónica.

O falso espelho (1929), René Magritte (1898-1967) CréditosRené Magritte /

As inquietações dos politólogos think tanks, esse crescente clero de cientistas políticos, com as democracias iliberais, agravadas e ratificadas pelo episódio grotesco da invasão ao Congresso norte-americano – um assalto à democracia representativa que até nem é surpreendente para quem acompanhou os lances das últimas eleições presidenciais norte-americanas e os das antigas e continuadas transumâncias entre os dois partidos que se alternam no poder de uma ditadura democrática submetida aos interesses do complexo industrial-financeiro-militar – são exercícios de sobrevivência do capitalismo neoliberal para minimizar os movimentos de disrupção política que, no entanto, consideram inevitáveis.

«O que de facto os inquieta é que a crise continuada do liberalismo clássico do século XIX, agora agravada com as crises vividas nos sécs XX e XXI, continue incapaz de garantir o progresso social por muito que os mercados sejam livres, o que alimentou as experiências socialistas do início do século XX e continua a manter a chama acesa nas esquerdas marxistas que consideram contingente a realidade histórica do capitalismo mesmo quando hoje ela se apresente como hegemónica»

O que esses politólogos sublinham nas democracias iliberais é que são regimes que hibridizam as formas vulgarizadas pelas democracias liberais mais abertas e por regimes autoritários, em que os governos eleitos democraticamente imediatamente ignoram e tripudiam os limites constitucionais e as liberdades individuais dos cidadãos. Enfatizam que os líderes e partidos iliberais, uma vez eleitos, usam as suas maiorias legislativas para subverter o processo de controlos e equilíbrios, o poder Executivo para subjugar a independência de outras instituições, o judiciário, as Procuradorias Gerais, os órgãos de investigação, para reinterpretar o estado de Direito, as Comissões Eleitorais para provocar mudanças no sistema eleitoral para se perpetuarem no poder. Não anotam que o sufrágio universal na actualidade foi sempre variável, entre os mais representativos da vontade popular, como em Portugal ou na Holanda, ao que é condicionado pelos desenhos de círculos eleitorais em que com menos votos expressos se elegem mais deputados, para garantir a hegemonia das forças mais conservadoras. Escandalizam-se, com o que de facto é escandaloso, com as manipulações eleitorais do Fidesz na Hungria, que nas últimas eleições consegue 67% dos assentos parlamentares com apenas 49% dos votos, ou com o PiS, na Polónia que logra 51% dos assentos parlamentares com 38% dos votos expressos. São desvios brutais, mas que têm precedentes mais suaves mas reais no Reino Unido em que, nas últimas eleições, os Conservadores com 42,6% dos votos conquistam 56,2% dos assentos parlamentares em comparação com os Trabalhistas, 32,2%/31,2%, e os Liberais, 11,5%/1,70%; na Grécia, em que o partido mais votado nem que seja por um voto tem um bónus de 50 deputados não sufragados; com o sistema de colégio eleitoral nos EUA, onde não há correspondência entre o número de votos obtidos por um candidato a presidente e milhões de votos a mais não garantem a sua eleição. Também não os escandaliza um governo que não é submetido ao voto dos cidadãos como recentemente o de Mario Draghi, chamado de unidade nacional mas que é de facto iliberal, como, noutro plano, nunca se escandalizaram com as imposições da troika à Grécia, ou as do FMI ou do Banco Mundial, que objectivamente contribuem para a proliferação das ideias subjacentes aos populismos e às democracias iliberais.

O que consideram como desvios à democracia liberal é a normalidade da anormalidade democrática das sociedades capitalistas neoliberais que desde sempre variaram e continuam a variar entre tanto serem limitadamente libertárias como não hesitarem em recorrer aos extremos mais repressivos, tanto se apresentaram múltiplas como monolíticas, modalizando-se conforme as geometrias dos enquadramentos sociais, económicos e políticos resultantes dos avanços e recuos da luta de classes, a pedra de toque é que a exploração da força de trabalho se mantenha intocada.

A grande evidência é que nada é mais desigual que a igualdade entre desiguais. Com tamanhas desigualdades a democracia é impossível ou é muitíssimo degradada no quadro da democracia burguesa, quaisquer que sejam as variantes da representação democrática. É essa evidência que impede as discussões políticas e sociológicas de saltarem as barreiras do pensamento dominante, e que a alternativa seja ficar encerrado num sistema em colapso, mais despolitizado, mais desdemocratizado, socialmente mais despromovido, cada vez mais fechado e dissemelhante.

O grande desafio que se coloca à esquerda, às esquerdas é, sem se alhear dessas teses, não se deixar enredar nas suas agendas, manter aberto um diálogo aberto, por mais áspero que seja, para abrir frentes de luta contra o neoliberalismo capitalista, criticando-o em todas as suas vertentes, fortalecendo todos os baluartes democráticos e antifascistas onde se forjem consensos para o ultrapassar.

  • 1.Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, Gradiva, 2019.

(publicado em AbrilAbril https://www.abrilabril.pt/)

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As Cruzadas da Terra Plana

O obscurantismo das direitas é tão ignaro e obsceno, de uma ignorância tão desaforada, que muitas das suas intervenções são um circo de dislates que se encastram nas mentiras vendidas em cima da hora.

Detalhe de «A máquina de chilrear» (em inglês, «The twittering Machine»), pintura de Paul Klee (1879-1940), no Museu de Arte Moderna (MOMA), em Nova Iorque, EUA.
Detalhe de «A máquina de chilrear» (em inglês, «The twittering Machine»), pintura de Paul Klee (1879-1940), no Museu de Arte Moderna (MOMA), em Nova Iorque, EUA.Créditos

Ainda não há muito tempo falava-se na excepção portuguesa em relação à Europa de por cá não ter aparecido uma direita radical, a açucarada designação dos novos fascismos conformados e confinados às normas formais democráticas, enquanto esperam melhores tempos.

Várias explicações eram tentadas. A mais elaborada era a de em Portugal nunca ter existido verdadeiramente um fascismo, o que não propiciaria o surgimento de um movimento nacionalista populista, ficando a direita mais à direita acomodada num partido dito democrata-cristão cada vez menos cristão e democrata e a direita envergonhada dispersa em partes desiguais pelos partidos que ocupam o centro e o centro-esquerda do espectro partidário, empurrados mais para a direita ou mais para a esquerda conforme as sortes eleitorais. Teorias que objectivamente lavavam e lavam o salazarismo-fascismo e sequente marcelismo-fascismo do estigma fascista apresentando-os como conservadores nacionalistas, autoritários, até tecnocráticos, como se o fascismo não se defina por ser a forma extrema de ditadura do capital exercendo a mais dura repressão sobre os trabalhadores e as massas populares. Os quarenta e oito anos de ditadura fascista com o seu partido único e um parlamento farsola, as suas organizações para-militares, Legião e Mocidade Portuguesa, a polícia política activíssima que durante esses anos prendeu e torturou quase 30 mil portugueses , mais de dois presos por dia – um número que peca por defeito já que as estatísticas policiais só começam em 1936, dez anos depois da ditadura militar que o instaurou e de, em 1933, o regime ter sido institucionalizado num plebiscito viciado – são menorizadas ou ocultadas por essa gente que se entretém a discutir o sexo dos demónios fascistas, como se as ideologias não fossem directamente dependentes das condições económicas de produção e ser essa a sua base, como Marx liminarmente evidenciou em Para a Crítica da Economia Política:

«Com a transformação do fundamento económico, revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o que é constatável rigorosamente como nas ciências naturais e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas; em suma, ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o resolvem»,

depois de já ter afirmado, em A Ideologia Alemã, que

«a produção das ideias, representações, da consciência, está a princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como o efluxo directo do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, das artes, da ideologia, etc., de um determinado povo».

«Sem mãos a medir», cartoon de João Abel Manta (1928), publicada no semanário «Sempre Fixe», a 4 de Maio de 1974. Créditos

O fascismo nacional de facto foi diferente em muitos aspectos dos outros fascismos porque, tal como os outros fascismos, era moldado em função de contextos económicos e sociais particulares em que se impunha. Mesmo nos seus quarenta e oito anos de vigência alterou-se circunstancialmente sem perder nenhuma das suas características fundamentais, defendendo e privilegiando com violência o capital financeiro, industrial, agrário. Depois do 25 de Abril a sua lavagem foi imediata, embora algo tímida e com respiração assistida, obrigando à mudança de casacas, negócio florescente para alfaiates ou mesmo para o pronto a vestir. Passou das tímidas barrelas iniciais para as máquinas de lavar industriais assim que os grupos económicos do antigamente reentraram no Portugal de Abril pela mão dos governos socialistas do dr. Mário Soares, é bom que a memória aqui também não se apague.

Pouco a pouco as larvas contidas dentro dos casulos começaram a voar juntando-se às outras que sempre andaram por aí dando provas de vida1 mesmo recorrendo às bombas2. O espaço da direita levedou, tornou-se confortável e dominante na comunicação social onde os jornalistas e os comentadores de esquerda, depois de terem sido corridos em força no pós-25 de Novembro3, começaram a ser paulatinamente desbastados até à escassez actual, tanto na comunicação social propriedade das oligarquias financeiras como na do chamado serviço público.

Os lobbies empresariais dos grupos económicos ressuscitados e os novos grupos económicos que já tinham os seus corredores calcorreados por muitos políticos de direita, como são homens avisados e bem experimentados nas técnicas da rapina, estenderam os seus tentáculos angariando políticos, sobretudo das esquerdas vacilantes, de preferência reformados das suas anteriores funções ministeriais, auto-reformados da política activa ou semi-congelados nos seus partidos de origem. É vê-los em diversos cargos de administração ou de assessoria. É ouvi-los a perorar nos mais diversos fóruns das universidades, das fundações, da comunicação social, bolsando um arco-íris opinativo que, se a luz for revertida pelo prisma, mostra a uniformidade que os mais hábeis disfarçam com doce palrar pseudo-académico.

No entanto, tudo continuava a fluir dentro do quadro demo-liberal da badalada lusitana excepção, enquanto Europa fora os fascismos floriam e nas américas trumps e bolsonaros eram democraticamente entronizados das mais variegadas formas e feitios. Estava a chegar a hora de se verificar sem surpresas que a excepção era uma rábula pronta a implodir por a espoleta estar a ser afinada há algum tempo a vários níveis nas diversas plataformas internéticas, mas sobretudo na comunicação social privada e na de serviço público, com as esquerdas cosmopolitas a olharem para o lado para não perderem os acalantos que lhes são concedidos, enquanto as outras ziguezagueavam como sempre por há muito terem perdido o norte ideológico, mesmo qualquer norte, em nome do pragmatismo do não há alternativa. Finalmente a direita trauliteira e caceteira saía do seu estado de viuvez, pronta a conviver mas também a roubar espaço às outras direitas mais acomodadas ao jogo democrático que já lhes tinham propiciado alguns triunfos, nos saudosos tempos da AD, do cavaquismo, da troika. Direitas cujo espaço prosperava nos espaços «livres» da Universidade Católica e dos colégios da Opus Dei, nas universidades privadas, enquanto ia metendo o pé nas universidades públicas, muitas vezes em alianças mais ou menos espúrias com os pós-marxistas, pós-estruturalistas e pós-modernistas, nos lobbies empresariais, nalgumas fundações, nas redes sociais, na multiplicação dos blogues de direita, na comunicação social, com destaque para o Correio da Manhã e o Observador e na imprensa económica, no acesso dos seus articulistas e comentadores a todos os outros media, jornais, revistas, televisões, rádios, mesmo os do dito serviço público, onde estão em franca maioria e têm como seus pares os mais à direita da esquerda socialista.

Um caldo de cultura em que a direita é dominante e ao qual uma parte das elites, com alguns laivos de progressismo, sacrifica os seus débeis ideais para proveitos pessoais nas universidades, nos media, no eclético mundo da cultura. Um caldo de cultura de onde os militantes de esquerda que insistem no carácter contingente da realidade histórica do capitalismo, são banidos. A sopa de pedra da pretensa excepção portuguesa, onde se cozinhavam o ultra-liberalismo, os populismos, as xenofobias, os nacionalismos patrioteiros, os fascismos ainda mascarados, acabou por eleger dois representantes para a Assembleia da República. Seguem duas vias que na foz, que não é em delta, confluem. Um é um finório que embrulha em papel de seda a retórica de um modelo económico que é, até por eles publicamente confessado, o do Chile de Pinochet e o que está em marcha no Brasil de Bolsonaro. O outro é o trauliteiro de serviço que fez limpar o pó às mocas que estavam escondidas nos armários. Embora pronto a com eles fazer alianças o CDS, é ouvir o que sobre o assunto vai dizendo o Chicão – os mimos mediáticos são sempre bem vindos, já a sua antecessora era a Boss AC, um modo de suprir a falta de capacidade pirotécnica das tagalerices feirantes do paulinho – não deixa de se inquietar ao ver a sua base de apoio mais tradicional a ser ratada. Sentem urgência de mostrar serviço, aparecerem nos media. Fazem correrias desatinadas em que a ignorância, vulgar por aquelas paragens, emerge com fulgor.

Numa das últimas incursões Nuno Melo, um fala barato habituado a tropeçar no seu argumentário, sai a terreno para denunciar a inserção de um vídeo do Rui Tavares sobre o Estado Novo numa aula de história da telescola. Como nenhum vício lógico trava esses parlapatões, denuncia isso como se fosse uma leitura marxista do fascismo nacional, uma demonstração de perigosa presença marxista no ensino o que, no caso até é uma impossibilidade por o Rui Tavares não ser nem nunca ter sido marxista, basta ler alguns dos textos que regularmente publica na comunicação social onde é um dos eleitos pelos critérios editoriais prevalecentes.

Dando isso de barato o Melo intitula o texto «A supremacia do marxismo cultural» e, para melhor exibir a sua crassa incultura, começa por citar Marx: «As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, porque a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante.» O filisteu nem percebe que a leitura da tese de Marx demonstra rigorosamente o contrário do que ele quer demonstrar. O proletariado, as classes trabalhadoras e os seus companheiros de luta estão muito distantes de serem a classe dominante pelo que o seu pensamento nunca poderia ser o dominante.. O escrito do Melo, os escritos dos melos mais ou menos broncos, são a demonstração da evidência da tese de Marx, são a mostra de que a força intelectual dominante é a da burguesia. A burrice do Melo, dos melos, é uma vulgaridade que se comprova a toda a hora mas também patenteia o obscurantismo que a direita, nos seus vários formatos, vai instilando na sociedade e tem o desejo de impor a Portugal com o mesmo afinco dos 48 anos de fascismo, embora de maneira diversa porque os tempos são outros, .

A preocupação que motivou o Melo a desembestar naquele texto estampa uma das marcas do fim do estado de excepção em Portugal. É trazer para o terreno de batalha da direita o que ainda existe de marxismo cultural, que existe e continuará a existir enquanto pólo de resistência da esquerda que considera que nenhuma realidade por mais hegemónica que seja, como há que reconhecer é o capitalismo actual, pode ser considerada definitiva pelo que não é eterno o seu princípio de dominação. Têm razão em se preocupar com o marxismo cultural ainda que hoje muitíssimo distanciado da hegemonia cultural teorizada por Gramsci, um espectro que os continua a assaltar por insistir em lutar no campo de batalha da luta de classes fora das fronteiras em que as guerras entre os cruzados da santíssima trindade Deus, Pátria e Família e os soldados da tríade Sexo, Género, Raça se travam e em que é mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo.

«A máquina de chilrear» (em inglês, «The twittering Machine»), pintura de Paul Klee (1879-1940), no Museu de Arte Moderna (MOMA), em Nova Iorque, EUA. CréditosMOMA /

O Melo, os melos de aqui e além mar, têm a cultura das selecções readers’s diggest agora reformulada nos mergulhos google pelo que nada na espuma das trivialidades das citações, uma desqualificação normal na anormalidade dos tempos contemporâneos de extensa ignorância e da iliteracia da cultura inculta. Confinado, como grande parte do mundo, aos tweets, aos likes, aos posts das redes sociais deixou de saber ler, se que é que alguma vez soube ler, porque se soubesse ler perceberia que para Marx, para os marxistas numa sociedade burguesa, as ideias dominantes são as da burguesia, o que de maneira radical não permite que possa existir qualquer supremacia do marxismo cultural nessas sociedades. O Melo, os melos, assustam-se com os afloramentos esquerdistas que, sobretudo no campo das artes, surgem, mas como são incapazes de penetrar para lá da superfície não entendem que esquerda e esquerdismo são duas coisas diferentes e que esse esquerdismo há muito deixou de ser marxista, embora por vezes não o saiba. Que esses sucessos esquerdistas não fazem parte de projecto cultural algum, competem com a burguesia nos entretenimentos com mais ou menos condimentos culturais, o que também contamina alguma esquerda, fazendo-a sofrer desse vício intrínseco da cultura nos nossos tempos.

Essas direitas globalmente, com poder crescente, foram e são adubadas por uma cultura falsa que se apresenta como um pensamento mágico para assegurar a sobrevivência do capitalismo neoliberal simulando que a financeirização da economia é uma hipótese de crescimento num sistema que quer reduzir a humanidade a uma mercadoria hipotecária para que os homens deixem de afirmar a sua individualidade e o seu progresso pelo trabalho humano. À esquerda, às forças ditas progressistas, há que assacar a enorme responsabilidade de terem feito e persistirem em fazer enormes concessões à elite do poder de direita com um oportunismo desbragado que tem nos sociais democratas a sua forma mais emblemática na Terceira Via do trabalhismo thactcherista de Tony Blair, no campo comunista, no eurocomunismo de Berlinguer, Carrillo, Marchais, renunciando mesmo à sua função moral, emparceirando alegremente com as instituições do poder dominante, alinhando com as suas mais desabusadas arengas patrioteiras, criando um território vazio onde se plantaram as esquerdas cosmopolitas agitando as novas e esburacadas bandeiras das causas fracturantes e identitárias, uma deriva pós-marxista em que as políticas identitárias acabam por ocultar que as fontes dos conflitos são sempre sociais antes de serem identitárias. Objectivamente é alguma esquerda a ausentar-se de apontar ao que deveria ser o alvo da sua luta, transformar a sociedade e a vida, o que continua a ser o alvo da esquerda consequente, a que insiste na casualidade da realidade histórica do capitalismo. Toda esta situação dá espaço e lugar aos populismos de direita, à extrema-direita do Estado-empresa, às novas ditaduras, por mais fachadas democráticas com que se pintem.

O obscurantismo dessas direitas é tão ignaro e obsceno, de uma ignorância tão desaforada que muitas das suas intervenções são um circo de dislates que se encastram nas mentiras vendidas em cima da hora o que muito deve preocupar e alertar por não ser nada inocente, ter a mesma utilidade das fake news, a sua arma mais poderosa, que estercam os nóveis democratas ditadores, enxertam-se na geopolítica dos trumps, são a imagem de marca dos venturas e salvinis com a perigosíssima eficácia de mesmo sendo factualmente falsas, mesmo que se provem ser falsas, nunca deixam de ser emotivamente verdadeiras, com lógica evangélica que a terra é plana e o sol roda à sua volta.

É esse o armamento dos populismos mediáticos que não se podem combater com soluções fáceis por o campo de batalha estar minado e só poder ser ultrapassado com armaduras bem forjadas em princípios ideológicos resilientes aos cantos das sereias que acreditam que um anticiclone dispersará os ventos obscurantistas sem que o céu seja limpo do totalitarismo invertido em que o imperialismo neoliberal obtém os máximos lucros materiais e imateriais do empobrecimento moral, intelectual e económico dos indivíduos, iludindo os fogos reais das suas políticas.

  • 1.Cunhal, Álvaro; A Verdade e a Mentira na Revolução de Abril, Edições Avante!, 1999.
  • 2.Carvalho, Miguel; Quando Portugal Ardeu, Oficina do Livro, 2017.
  • 3.Cardoso, Ribeiro; O 25 de Novembro e os media estatizados – uma história por contar, Editorial Caminho, 2017.
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Cultura, património cultural e a responsabilidade social dos intelectuais

Shintaro_Kago

«Mastigação ruidosa» (2018), do ilustrador japonês Shintaro Kago (1969) 

Cultura e Património Cultural, material e imaterial, são conceitos relativamente recentes na longa história da humanidade, bem como o reconhecimento da sua importância nuclear na identidade de um povo de uma nação, da sua soberania. Como T.S.Elliot escreveu, O tempo presente e o tempo passado / são, talvez, presente num tempo futuro / e o tempo futuro contido no tempo passado1, é essa relação dialéctica entre o passado, o presente e o futuro de um povo, de uma nação que a Cultura e o Património Cultural consubstanciam.

Durante séculos os patrimónios culturais foram objecto dos mais diversos vandalismos. É na Revolução Francesa que a Assembleia Constituinte cria uma Comissão dos Monumentos com a missão de proteger e conservar as obras de arte, o que estava em contraciclo com a fúria revolucionária que destruía tudo o que simbolizava o poder absolutista no exercício do controlo social e imposição de crenças políticas, sociais e religiosas. É essa mudança de mentalidades em relação ao património cultural e à cultura que inicia um processo de protecção, conservação e valorização do património e uma, ainda que tímida, democratização da cultura.

Tem o seu reverso que é o percepcionar-se que a supremacia política deve apoiar-se na afirmação da supremacia cultural. Uma estratégia que Napoleão Bonaparte colocou em prática.

Nas campanhas napoleónicas o imperador fazia-se acompanhar por uma corte de intelectuais que avaliavam e inventariavam as obras de arte a roubar. A pilhagem de igrejas, catedrais, conventos, museus, colecções privadas por toda a Europa e Norte de África foi sistemática e sem precedentes. Troféus de guerra para mostrar ao mundo o poder de Napoleão e a supremacia política e cultural da França. Derrotado Napoleão, o Segundo Tratado de Paris, de 20 Novembro de 1815, pela primeira vez na história determina a devolução das obras de arte aos seus países de origem.

O segundo grande roubo sistemático de património cultural foi realizado pelos nazis na Segunda Guerra Mundial. O projecto de Hitler é similar ao de Napoleão. Projectava construir um enorme complexo cultural em Linz, dedicado às obras que o führer considerava reflectirem a ideologia do partido nazi.

A campanha de devolução das obras pós-guerra foi muito publicitada e originou a jurisprudência da Convenção de Haia de 1954, que estabeleceu regras internacionais sobre o património cultural e está na origem do trabalho desenvolvido pela UNESCO, as classificações de Património Cultural Material e Imaterial da Humanidade, para salvaguardar universal e intemporalmente os patrimónios imóveis, os patrimónios intangíveis e os patrimónios naturais, representativos da diversidade cultural, natural e da expressão criativa em todo o mundo. Com essas e muitas outras iniciativas de organizações locais, nacionais e internacionais, vertida em abundante legislação, deveria a Cultura e o Património Cultural Material e Imaterial e o Natural estar protegido de qualquer atentado e a cultura, na multiplicidade das suas manifestações ser um dos grandes esteios das identidades nacionais.

Não está, e os atentados agora são outros de outro calibre. Nos centros decisores do capitalismo internacional, com destaque para as instituições financeiras sediadas nos EUA, prepara-se a intensificação de uma nova onda de privatizações de tipo novo e radical: vender o máximo possível de bens imobiliários estatais, incluindo os patrimónios histórico-culturais e naturais.

O editorial de 17 de Janeiro de 2014, da revista Economist, «The 9 trillion dolars sale», não deixa margem para dúvidas. Escrevem que Thatcher e Reagan usaram as privatizações como ferramenta para combater os sindicatos e transformar em receitas diversos serviços públicos, telecomunicações e transportes, e que os seus sucessores no século XXI, «necessitam fazer o mesmo com os edifícios, terrenos e recursos naturais, porque é um enorme valor que está à espera de ser desbloqueado». Reconhecem a dificuldade da avaliação de alguns desses activos, como o Louvre, o Pártenon ou Parque Nacional de Yellowstone. Dificuldade obviamente superável se recordarmos os inúmeros artigos na comunicação social corporativa que aconselhavam os gregos a venderem os seus monumentos para saldarem as dívidas.

A cultura do «casino cósmico»

Neste «casino cósmico», como o definiu Georges Steiner, o perigo é real, multiforme. Não se devem menorizar as suas formas directas ou indirectas de privatização do Património Cultural aparentemente mais tímidas como as do programa Revive, nem a formatação dos padrões culturais pelo imperialismo cultural, nem a crescente bordelização da cultura pelo turismo cultural, nem a perda de capacidade crítica em que os padrões estéticos, ainda que muito contestados, são progressivamente substituídos pelas ditames do mercado, ainda que mascarados em lenga-lengas fastidiosas e repetitivas salpicadas de considerações artísticas.

A normalidade da anormalidade do estado de sítio cultural que se vive é tudo se reger pelas leis do mercado, crescendo nos charcos do entretenimento agitados pelo furor bulímico em que normalizam os chamados eventos culturais – o conceito eventos tem uma forte carga ideológica indiciando a banalização destruidora de quaisquer hipóteses de projectos culturais de democratização da cultura explodidos nos lugares comum de criação de novos públicos, leiam-se os regulamentos da Europa Criativa –, coloridos pacotes de mercadorias que são açambarcados para serem consumidos sem deixarem rasto. O seu único objectivo é disfarçarem o vazio comatoso desta sociedade, o seu spleen para, na melhor das hipóteses, o ocultarem protegendo-nos. Laboriosamente as forças dominantes foram moldando o gosto para depois o alimentarem com qualquer coisa que é sempre a mesma coisa. Essa dita cultura, mau grado o intenso ruído em que se envolve para abafar as vozes dissonantes, é parte integrante do aparelho repressivo do totalitarismo democrático que impõe o pensamento único.

Desde os anos 60 que se tem alargado a superfície global onde se vai dissolvendo o território, o exercício de soberania, a língua e a identidade cultural, tornados conceitos móveis e transitivos. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Megas pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto à lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. A cultura é um dos alvos dessa guerra e o mercado, que não reconhece outra hierarquia cultural que não seja a do que é rentável, ocupa cada vez mais o espaço que antes era ocupado pelo Estado.

O meio intelectual, a partir dos anos 50, já se tinha apercebido dessa situação e se alguns consideram o advento da dominação do mercado sobre a cultura como uma expropriação outros, como Adorno e Horkheimer, percebem claramente que essa dominação intermediada pelas nascentes indústrias culturais e criativas é «um sistema político e económico que tem por finalidade produzir bens de cultura – filmes, livros, música popular, programas de televisão, etc. – como mercadorias e como estratégia de controlo social.»2

A produção de produtos ditos culturais faz-se em linhas tayloristas que impõem um ritmo em que deixa de existir tempo para pensar a criação artística, o que acaba por ser uma forma de censura económica, pauperizando a cultura até a reduzir a uma sucessão de entretenimentos não significantes, em que tudo é idêntico. O património cultural e os museus são o alimento substantivo do turismo cultural em que a relação, que deveria ser estrutural e estratégica, permanece numa nuvem de indefinições, confusão de conceitos e de áreas de actuação. O que interessa, o que conta é o que gera dinheiro, muito dinheiro. A introdução ao Programa-Quadro Europa Criativa 2021-2027 da União Europeia (UE) é elucidativa: «a cultura está no centro do rico património e da história da Europa e tem um importante papel no aumento da atractividade de lugares e no reforço da identidade única de espaços específicos. A cultura e a criatividade podem ser importantes motores e impulsionadores da inovação, bem como uma fonte significativa para o empreendedorismo. A cultura é um importante motor para o aumento das receitas de turismo, numa altura em que o turismo cultural é um dos segmentos do turismo com maior e mais rápido crescimento a nível mundial.» É um texto esclarecedor pela miscigenação de conceitos em que o que acaba sempre por vir à superfície é a gestão, o empreendedorismo, como adubos da inovação. A importância do «rico património e da história da Europa» é o «aumento da atractividade de lugares», leia-se turismo cultural para as multidões prontas a disparar o seu olhar distraído, registado em selfies, enquanto invadem museus e outro património edificado. O que conta é o dinheiro, muito dinheiro que o mercado cultural pode gerar, pelo que as iniciativas culturais desligam-se de qualquer projecto cultural para se subordinarem ao que é mais vendável.

Mais esclarecedor fica quando elencam as indústrias culturais e criativas e se olha para a distribuição de verbas por essas áreas. São integrados nos «Sectores culturais e criativos», todos os sectores cujas actividades se baseiam em valores culturais e/ou artísticos ou noutras expressões criativas, quer essas actividades tenham fins comerciais ou não, independentemente do tipo de estrutura que garante a sua execução e seja qual for o modo de financiamento dessa estrutura. Essas actividades incluem a concepção, a criação, a produção, a divulgação e a conservação dos bens e serviços que encarnam uma expressão cultural, artística ou qualquer outra expressão criativa, e funções conexas, como a educação ou a gestão. Os sectores culturais e criativos incluem, nomeadamente, a arquitectura, os arquivos, as bibliotecas e os museus, o artesanato, o audiovisual (em particular o cinema, a televisão, os jogos de vídeo e as actividades multimédia), o património cultural material e imaterial, o design, a publicidade, a moda, os festivais, a música, a edição de publicações, a literatura, as artes performativas, a rádio e as artes plásticas. Ao mesmo nível das Meninas de Velasquez ou da Ronda da Noite de Rembrandt está um anúncio à Coca-cola ou ao BurgerKing. O Saraband do Bergman ou a Regra do Jogo do Renoir fica submergido na quantidade brutal de videojogos que já é um volume de negócio superior ao do cinema ou das séries televisivas. Festivais de Música? Os de música sinfónica são residuais, em quantidade e em espectadores, se comparados com os de música pop, o que também se reflecte na indústria discográfica, basta olhar para os espaços que ocupam nas estantes de venda e também nos espaços de «crítica musical» na imprensa. A literatura nada com respiração assistida no plâncton das edições dos media da imprensa corporativa, das revistas de glamour, etc.

A moda invade tudo e é dominante em todos os outros géneros artísticos, para isso lá estão os gestores culturais, esse baixo clero pós-moderno com especiais aptidões para ocultar e tornar eficaz o vazio da cultura inculta instalada em todos os patamares do entretenimento da iliteracia cultural por esses intermediários culturais, gestores culturais, programadores, curadores, comissários, agentes do pensamento dominante que aceleram pelas auto-estradas do bullying cultural que se impuseram durante os anos 80, como Pierre Bourdieu bem os caracterizou e que é sempre de recordar: «são os encarregados de uma subtil actividade de manipulação nas empresas industriais e na gestão da produção cultural (…) a sua distinção é uma forma de capital incorporado, porte, aspecto, dicção e pronúncia, boas maneiras e bons hábitos que, por si, garante a detenção de um gosto infalível o que sanciona a investidura social de um decisor do gosto, de modo bem mais significativo do que o faz o capital escolar, de tipo académico (…) a ambiguidade essencial e a dupla lealdade que caracteriza o papel desses intermediários é serem os mercadores de necessidades que também se vendem continuamente a si próprios, como modelo e garantes do valor dos seus produtos, são óptimos actores, apenas porque sabem dar boa imagem de si acreditando ou não no valor daquilo que apresentam e representam»3. Intermediários culturais sempre entre duas actividades promocionais onde a arte e a cultura são sempre e só mercadoria e o público se alicia com mentiras ou melhor (pior) não verdades.

Esclarecedor é também o enquadramento financeiro para a execução do Programa durante o período 2021-2027, em linha com os anteriores. «O Programa continua a apostar em 3 vertentes: Subprograma MEDIA, Subprograma CULTURA e Vertente Intersectorial, sendo que esta última introduz uma novidade dirigindo-se a “Cultura e Meios de Comunicação”». Através da vertente intersectorial o Programa visará também «promover a cooperação política em matéria de cultura no seio da UE, promover um ambiente de liberdade, diversidade e pluralismo na comunicação social e apoiar o jornalismo de qualidade e a literacia mediática».
Em termos orçamentais a Comissão propõe a afectação de 1,85 mil milhões de Euros ao Programa global, divididos do seguinte modo: subprograma MEDIA, 1,08 mil milhões de Euros; subprograma CULTURA, 609 milhões de Euros; e 160 milhões de Euros para a vertente intersectorial. Tal proposta traduz-se num aumento de 450 milhões de Euros face ao actual Programa Europa Criativa 2014-2020 e a grande aposta é no incremento da comunicação social estipendiada.

A bitola é a do mercado, os apoios são ao empreendedorismo, As justificações na distribuição das verbas revelam os objectivos da UE e o que nos espera por detrás da cortina «de promover um ambiente de liberdade, diversidade e pluralismo na comunicação social e apoiar o jornalismo de qualidade e a literacia mediática» em que a verba para os media é reforçada pela do denominado subprograma intersectorial, pelo que 67% do orçamento Europa Criativa é dirigido para o controle de informação que se integra no sistema mundial de formação da opinião pública e da interpretação da realidade pela comunicação social corporativa, mercenária, ao serviço do pensamento totalitário dominante. Os sobrantes 33% são para o que selam como cultura, mas com a banda larga aplicada, estamos conversados. Há excepções, mas as excepções são a confirmação da regra e a regra é o triunfo imperial do espectáculo que bordeliza a cultura, o património cultural e os museus com o mercado a extrair benefícios máximos do empobrecimento moral e intelectual da sociedade. É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade. Cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana em que se procura que a alienação global seja voluntária.

A responsabilidade dos intelectuais

Todo este processo decorre por o capitalismo neoliberal ter percebido que a cultura, a produção teórica eram armas nucleares que eram necessário despoletar para perpetuar o imperialismo e impor um pensamento único. Puseram em marcha um processo de desagregação social dos intelectuais para os isolar e os atirar para as periferias do poder político. Os intelectuais, que nunca foram um grupo homogéneo mas que, como Régis Debray anotou, se «sentiam, pelos seus saberes e conhecimentos diferenciados, ser uma colectividade de pessoas, socialmente legitimadas para tornarem públicas as suas opiniões»4 detendo um poder, que embora de origens diferentes, influenciava ou ia contra o dos políticos eleitos, foram progressivamente marginalizados do tecido social.

Um processo que incidiu sobretudo nas áreas culturais distanciando o Estado das políticas culturais, retirando-lhes importância política e pública, entregando progressivamente ao mercado e à iniciativa privada os instrumentos da cultura, diligenciando para que o mercado e a iniciativa privada contaminassem as políticas culturais das instituições que tutelam, como se a cultura fosse um território que floresce numa terra de ninguém e para que a arte e a cultura perdessem o sentido de ser a utilidade que transforma a vida.

Para essa nova ordem é fundamental anular a cultura enquanto núcleo de práticas e actividades, enquanto instrumentos de produção material, recepção e circulação que dão sentido à vida e ao mundo com o fim último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade alternativa onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer, ainda que com todas as contradições e dificuldades.

Para essa nova ordem é fundamental que os intelectuais, especialistas e profissionais qualificados sejam elementos passivos das suas competências, remetidos às suas áreas especializadas, tendo por interlocutores os seus pares e não a sociedade para perderem influência na construção da consciência colectiva.

Neste estado de sítio há que exigir aos intelectuais que façam novamente ouvir a voz que já tiveram no discurso público, com a consciência de que se ela não é decisiva é fundamental para se sobrepor à turbulência ruidosa do pensamento dominante, que procura tornar inaudível qualquer discurso crítico que o ponha em causa. Devem readquirir o sentimento do seu papel social, mesmo com a incertitude de não terem no imediato sucesso garantido.

Há que resistir, resistir sempre e sem vacilações para que a cultura e a arte se recentrem na vida e encontrem aquilo que podem e querem fazer com os seus materiais e instrumentos sem se entregarem nas mãos do mercado, recusando-se a responder às exigências de gerar lucro, normalizando-as pelas imposições do consumo imediato e padronizado onde se afoga o espírito crítico.

Há que continuar e lutar com a firme convicção de que «no entanto, ela (a Terra) move-se», como disse Galileu enfrentando o tribunal da Inquisição.

(publicado em AbrilAbril  https://www.abrilabril.pt/ )

  • 1.in Four Quartets: «Time present and time past / Are both perhaps present in time future /
    And time future contained in time past.»
  • 2.Adorno, Theodor/ Horkeimer, Max ; Dialéctica do esclarecimento, Jorge Zahar editor, 1985.
  • 3.Bourdieu, Pierre; A distinção, uma crítica social da faculdade do juízo, Edições 70, 2010.
  • 4.Debray, Régis; Le pouvoir intellectuel em France, Ramsay, 1979
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O SOM E A FÚRIA

Para o capitalismo e seus representantes, para os mais lestos empreendedores, tudo se pode transformar em oportunidades para gerar negócios e lucros. A pandemia do coronavírus não será excepção.

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O Jardim das Delícias Terrenas, Hieronymus Bosch, 1504CréditosHieronymus Bosch

A crise universal provocada pelo coronavírus, se irá ter impactos ainda imprevisíveis em todos os planos das nossas vidas individuais e colectivas, na vida social, no estado das nações também é uma janela de oportunidade para os abutres neoliberais. Sendo os mais velhos e os mais pobres os mais vulneráveis é a janela por onde a senhora Lagarde está a olhar depois de ter afirmado que «os idosos vivem demasiado e isso é um risco para a economia global. Há que tomar medidas urgentes»Tem a companhia de Dan Patrick, vice-governador do Texas a dizer sem qualquer sobressalto na consciência «que as pessoas mais velhas preferem morrer a deixar que o Covid19 prejudique a economia dos Estados-Unidos». Enquanto se rebolam no eugenismo neoliberal, dando razão ao personagem do filme de João César Monteiro Le Bassin de John Wayne quando afirma «que os novos nazis são democratas», noutra janela com vidros da mesma fábrica espreita a ministra da saúde da Lituânia, Rimantė Šalaševičiute, membro do PSD Lituano, que declarou pouco depois de tomar posse, em 2014, que a eutanásia deveria ser considerada como uma boa opção para os pobres que não podem pagar os cuidados de saúde. Trump não conseguiu escancarar uma outra janela siamesa, mas bem o tentou quando quis fazer mão baixa dos trabalhos de um laboratório alemão para encontrar uma vacina contra o covid 19, só não a abriu porque o governo alemão e o próprio laboratório se opuseram. Para o capitalismo, para o capitalismo e seus representantes, para os mais lestos empreendedores tudo se pode transformar em oportunidades para gerar negócios e lucros. A pandemia do coronavírus não será excepção. Marx escreveu (há quem atribua a frase a Lenine, mas si no e vero e ben trovato) “o último capitalista que penduramos será aquele que nos vendeu a corda”. Vende a corda mesmo sabendo que já não poderá investir o dinheiro ganho. O capitalismo é um animal predador sempre insatisfeito parasitando um mundo onde «a desvalorização do mundo humano aumenta em proporção directa com a valorização do mundo das coisas». (Karl Marx, Manuscritos Económico-Filosóficos, edições Avante!).

Vive-se um período excepcional de que sairá sem se ter a certeza por que portas e que portas se abrirão e para onde abrirão. As nossas vidas em quarentena estão, as mais privilegiadas, ligadas à máquina das nuvens informáticas que a alimenta abundantemente enquanto nos alimentamos solitariamente com o que vamos despejando dos frigoríficos e das despensas até sermos compelidos a recorrer, os que têm capacidade económica para isso, às ofertas do takeaway ou nos sujeitarmos às penosas mas necessárias filas às portas dos supermercados.

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Ao Povo Alentejano, Jorge Pinheiro, 1980

Vive-se um global estado de excepção que suspende o normal funcionamento das condições de vida em países inteiros que redescobrem que as suas fronteiras afinal são uma linha que as protege. Irão descobrir ainda mais quando perceberem ou quando começarem a perceber, mesmo a contragosto, que o que cederam de soberania nos últimos decénios agora lhe faz falta para enfrentarem a crise. Na Europa para uns, os desde sempre descrentes nas virtudes e na bondade do projecto da União Europeia (UE), por que bem sabem que esta, por mais ouropéis que lhe deitam para cima, é a Europa dos ortodoxos neoliberais ao serviço das elites oligárquicas, dos banqueiros e dos especuladores, a falta de solidariedade no espaço da UE era esperada, à imagem do que têm feito com os países mais débeis economicamente e o modo como trataram as crises provocadas pelas dívidas soberanas. Para outros, os europeístas mais ou menos convictos que ainda tenham alguma honestidade intelectual, todos aqueles que, apesar e contra todas as evidências, insistiam e insistem em ver predicados nessa UE ao serviço do capital financeiro, o vazio político das poucas medidas anunciadas, a frieza, o desprendimento e a incompetência com que os dirigentes da UE tem tratado este estado de sítio, a ausência de qualquer apoio solidário aos países membros – o caso italiano é o mais gritante – deve finalmente fazer disparar o alarme em vez de carpirem jeremiadas com que disfarçam a realidade. A ver vamos se merecem que se lhe seja concedido um frágil benefício da dúvida. Sublinhe-se que foi preciso a Alemanha adoptar um orçamento rectificativo largamente deficitário, que suspende o travão da dívida que figura na constituição alemã e prevê uma recessão de 5%, para a presidente da Comissão Europeia anunciar que ficam suspensas as regras de disciplina financeira europeia, o malfadado Pacto de Estabilidade e Crescimento (PEC), com que têm garrotado os países economicamente mais frágeis em benefício dos mais fortes que têm lucrado com essa situação de desigualdade. O Eurogrupo, essa instituição informal presidida por Centeno, sempre servil e dependente das directivas teutónicas, agora pode seguir as pisadas do patrão dando-se a liberalidades que nunca teriam coragem de propor. A ver vamos se debaixo do tapete não estão já plantadas sementes de troika. Essa gente é capaz de tudo.

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Cartoon de Eneko, nome artístico de Eneko de las Heras Leizaola, desenhador e humorista vasco nascido em Caracas (Venezuela) em 1963. Em 2018 foi o ilustrador escolhido para desenhar o cartaz dos prémios Liberpress (Espanha). CréditosEneko / Le Grand SoirInsira um título

Uma das curiosidades despoletadas por esta crise são as reviravoltas dos mais estrépitos governantes neoliberais empurrados contra vontade a assumirem odiadas e malfadadas medidas socialistas ressuscitadas dos escombros do Welfare State e outras, como as nacionalizações ainda faladas entre-dentes. Com o caos a alastrar não podem fazer o que lhes vai na alma bem sintetizado num cartoon: privatizar a saúde, socializar a dor. Fazem-no com mal disfarçado ranger de dentes menos barulhento que o nosso ranger de dentes de fúria ao assistirmos ao FMI a recusar qualquer apoio à Venezuela; ao ignóbil e inominável Trump ameaçar com mais sanções um Irão muito fustigado pelo covid 19, bloqueando a importação de medicamentos e aparelhos sanitários; ao ouvir o secretário de Estado francês dizer que isto é um boa oportunidade para se fazerem bons negócios na bolsa, um convite à especulação que já andava de freio nos dentes pré-crise; ao presenciar o desembarque de milhares de soldados norte-americanos na Europa, para realizarem os maiores exercícios militares de sempre da NATO contra um suposto inimigo; ao ver as grandes empresas norte-americanas a pedir o dinheiro dos contribuintes para serem salvas e que são as mesmas que nos últimos anos gastaram milhares de milhões de dólares a comprar as próprias acções em bolsa para as valorizar artificialmente e distribuir chorudos dividendos; ao assistir às manobras do cavalheiro da indústria que ocupa a presidência dos EUA à coca de onde pode ganhar algum com a crise, sem se preocupar por os EUA serem já o país do mundo mais infetado e onde a saúde é um negócio pelo que o número de vítimas prevê-se brutal; ao ver os especuladores a esfregar as mãos preparando-se para saltar e fazer subir as taxas de juro sobre as dívidas soberanas mais expostas de países praticamente impotentes por terem entregue de mão beijada a sua soberania a instituições supranacionais; ao presenciar o espectáculo dos que, tendo informação privilegiada sobre a crise, como os senadores norte-americanos da comissão da saúde, a aproveitaram para se livrar de acções problemáticas.

Para nossa fúria, a lista das ignomínias não pára de crescer.

Fúria ainda ao assistir praticamente à ocultação das acções solidárias para com os países europeus feitas por Cuba, China e Rússia ou quando lhe concedem menos minutos que a um qualquer futebolista que entrega um donativo equivalente a dois pneus de um dos carrões que enchem a sua garagem. Fúria igual à daquela cientista empenhada em investigações para se alcançar uma vacina e que ganha menos de um décimo dos mais bem pagos desportistas. Fúria ao assistir à hipocrisia e ao cinismo da tropa fandanga dos comentadores e de alguns políticos que colocam a tónica nas faixas, etárias em que a mortalidade é maior para mascarar as diferenças de classe entre os mortos. facto ainda mais camuflado pelo relevo dado a um qualquer famoso vitimado entre milhares de outras vitimas. Fúria com essa tropa fandanga que distrai a atenção da malta não referindo que os países que melhor têm resistido à pandemia são os que têm serviços nacionais de saúde mais robustos; fúria com os que estão sempre a por em causa, alguns com melífluas vozes de bandido, os serviços nacionais de saúde.

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Detalhe do mural «O movimento social do trabalho» (1941), no Supremos Tribunal de Justiça da Nação, no México, do muralista mexicano José Clemente Orozco

Fúrias que nos assaltam todos os dias quando descascamos o lado oculto da pandemia e descobrimos mais uma golpada para lucrar com a crise, mais uma espadeirada no mínimo de solidariedade que se devia exigir, mais uma tentativa de semear o pânico, mais uma mentira grande ou pequena para socavar o trabalho dos SNS, por mais uma declaração canalha de um dos representantes do capitalismo predador, fúria ainda ao verificar as tentativas de por em prática a «doutrina de choque» (1) a alastrar como um vírus dentro do outro vírus, de forma mais benigna ou mais maligna. Fúria quando se torna público que no dia 18 de Outubro de 2019, dezena e meia de tecnocratas de luxo ao serviço das mais altas esferas do regime neoliberal globalista reuniram-se num hotel de Nova York para realizar «um exercício pandémicode alto nível» designado Event 201; consistiu na «simulação de um surto de um novo coronavírus» de âmbito mundial no qual, «à medida que os casos e mortes se avolumam, as consequências tornam-se cada vez mais graves» devido «ao crescimento exponencial semana a semana». Ninguém ouvira falar ainda de qualquer caso de infecção. O rol é extenso e todos os dias se tropeça em algo que desperta a fúria com todas estas políticas vendidas ao poderoso caballero (qui) es don dinero (Francisco Quevedo) agora catalisadas pela pandemia do covid19.

Verdadeiramente alarmante é que, no meio do turbilhão apocalíptico que se vive, parece ser mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo, mesmo quando este mostra todo o esplendor da sua face canibal e prova ser incapaz desnudando a sua decadência. É o triunfo do pensamento único neoliberal, ainda que temporalmente condenado, que tem o objectivo último de já não ser possível pensar que é possível pensar uma sociedade outra, que conseguiu contaminar e continua a contaminar as esquerdas cosmopolitas, por onde ainda viaja muita gente séria e empenhada. Pensamento único neoliberal, que procura o improvável e impossível absurdo de, depois de séculos de duras lutas contra a exploração do homem pelo homem, que exigiram inúmeros e heroicos sacrifícios, em que milhões de pessoas se sacrificaram e foram sacrificadas, não haver ninguém para assistir à última cena de uma ópera, em aplauso desses séculos de lutas, quando o último capitalista, depois de vender a corda, vai ser enforcado.

A fúria que nos assalta tem que se transformar em som. Tem que ser o som da luta política, social e cultural em que a esquerda consequente e determinada – a que sabe que o capitalismo, por mais hegemónico e consistente que se apresente, como é o capitalismo actual ainda que corroído pelo coronavirus, tem sempre um carácter historicamente contingente – se envolve e empenha dia a dia, hora a hora, para sair deste furacão catalisador de uma crise anunciada, esclarecendo e denunciando todas as formas o estado de excepção que o transformem numa interrupção da vida em que as principais vitimas serão os trabalhadores. Som a denunciar a inverdade de todos estarmos expostos de igual modo ao vírus e a todas as consequências que se verificarão quando todas as emergências forem ultrapassadas. As classes, a luta de classes existe, até mais fácil percebe-la com a evidência de não ser a mesma coisa enfrentar a crise com o salário mínimo ou com os fabulosos honorários dos presidentes das maiores empresas cotadas no PSI20, de não ser a mesma coisa quatro pessoas estarem confinadas de quarentena num T1 de uma torre nos subúrbios do Porto ou de Lisboa e quatro pessoas viverem-na numa moradia com jardim e piscina à beira mar plantada.

Som de alerta para ter sempre bem presente que a luta de classes não entra em coma, mesmo assistido, com a pandemia. Som que se sobreponha a todas as trombetas do apocalipse capitalista.

(publicado em AbrilAbril http://www.abrilabril.pt )

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Modernidades do Outro Lado do Espelho

A batalha ideológica que se trava desde que Marx estabeleceu as traves mestras de interpretação do mundo, em que a ideia central é a relação entre o capital e o trabalho, a luta de classes, as relações entre infra-estrutura e superestrutura, tem sido intensa e, na actualidade, é polarizada pelo imperialismo norte-americano que persegue dois grandes objectivos consonantes: um económico e outro cultural.

Uma estratégia que se iniciou no pós-Segunda Guerra Mundial, com a guerra fria cultural1, se intensificou com a queda do Muro de Berlim e está triunfante nas políticas pós-política.

Os anos 60 são os anos de corte em que se inicia a passagem para a política, a economia e a cultura actuais. Em que o papel do estado se começa a alterar substancialmente, passando de um Estado interventivo e garante do bem-estar para o tendencialmente Estado mínimo neoliberal, dominado pelas leis do mercado e do paradigma da iniciativa privada que é desmentido pela situação de crise permanente e senil em que o capitalismo vive, em que o Estado é o pronto-socorro que despeja triliões de dólares para salvar o sistema financeiro e os privados. Com a financeirização da economia as desigualdades aumentaram brutalmente. Desde 1980 os 1% com mais rendimentos capturaram duas vezes mais ganhos do que os 50% mais pobres. Entre 1988 e 2008, os 10% mais ricos da população mundial apropriaram-se de mais de 60% de todo o crescimento do rendimento mundial. Em 2010, 1% dos mais ricos do planeta controlavam 46% de toda a riqueza mundial. Não há democracia possível numa economia em que há tal desigualdade de poder, realidade que se pretende ocultar com a mercantilização da cultura para consolidar a hegemonia pela modelação da consciência popular. É o fenómeno da globalização que decorre do desenvolvimento capitalista neoliberal, em que se vende a ideia que a liberdade do mercado seria mais igualitária quando não há nada mais desigual do que o tratamento igual entre desiguais.

Em nome da racionalização e da modernização da produção, está-se a regressar ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial. Essa nova ordem económica impõe-se com violência crescente. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Mega pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto a lógica do investimento. A nova ordem é fanática e totalitária. Para esta nova ordem capitalista são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. É tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, as revistas de glamour, a música internacional nos sentimentos e americana na forma, os programas radiofónicos e televisivos prontos a usar e a esquecer, o teatro espectacular e ligeiro, o cinema mundano medido pelo número de espectadores, a arte contemporânea em que a forma pode ser substituída por uma ideia e a personalidade do artista transformada numa marca garante do valor da mercadoria artística.

Uma cultura de impacto máximo e de obsolescência imediata, numa acelerada sucessão de modas e humores públicos que procura extrair o máximo lucro do empobrecimento moral, intelectual, em que a diversão promovida pelas indústrias culturais e criativas tudo normaliza e esvazia de sentido. É um dos mecanismos que o capitalismo pós-democrático usa com eficácia para promover a alienação, até a transformar num conformismo em que não se distingue a realidade das aparências. O objectivo final é que as massas populares fiquem cada vez mais incapazes de perceber os verdadeiros jogos políticos para castrarem a sua capacidade de intervenção.

É o fim da cultura na sua relação ideológica e política com a sociedade. Cultura amarrada à perda de futuro como dimensão ontológica humana, um dos traços fundamentais da sociedade burguesa contemporânea em que se procura que a alienação global seja voluntária. Uma cultura da ilusão que se apresenta como um pensamento mágico de um sistema que quer reduzir a humanidade a uma mercadoria hipotecária para que os homens deixem de afirmar a sua individualidade e o seu progresso pelo trabalho humano.

É neste quadro que se trava um áspero combate ideológico, sobretudo num contexto em que não está no horizonte nenhuma acção política de projecção universal, em que as políticas de esquerda ainda que importantes, mesmo pontualmente decisivas, têm um limitado raio de acção, sempre com a certeza que se firmam numa base ontológica sólida porque a totalidade social não é uma quimera.

O debate entre as forças de esquerda sempre foi intenso entre revolucionários e reformistas e dentro de cada uma dessas áreas, o que foi sempre aproveitado pelos reaccionários, que nunca desarmam nem desistem, para assegurar a sobrevivência do capitalismo, de corromper a linguagem de esquerda, procurando-se apropriar-se das ideias nucleares da esquerda para manipulá-las, o que têm conseguido com algum êxito, promovendo a confusão ideológica, com a consequente desorientação política de muitos meios progressistas.

A mais antiga confusão é a de que os conceitos de direita e esquerda perderam sentido, são distinções sem significância porque as ideologias se desgastaram. Uma ideia que teve origem dentro de uma determinada esquerda, em que Deleuze e Gauttari pontificavam, em linha com o estruturalismo e a semiologia que estavam na ordem do dia e que tinham introduzido nas ciências humanas um sistema de análise das comunicações linguísticas e visuais de métodos análogos aos das ciências empíricas e experimentais. O que Deleuze e Gautatari fazem, com grande repercussão em muitas áreas da esquerda, é colocar em causa o conceito de ideologia como Marx o definira em Para a Crítica da Economia Política, onde estabelece e traça as relações entre a produção material e a produção imaterial: «Com a transformação do fundamento económico, revoluciona-se, mais devagar ou mais depressa, toda a imensa superestrutura. Na consideração de tais revolucionamentos tem se distinguir sempre entre o revolucionamento material nas condições económicas da produção, o que é constatável rigorosamente como nas ciências naturais e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas; em suma, ideológicas pelas quais os homens tomam consciência deste conflito e o resolvem», depois de já ter afirmado em A Ideologia Alemã que «a produção das ideias, representações, da consciência, está a princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como o efluxo directo do seu comportamento material. O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, das artes, da ideologia, etc., de um determinado povo».

Os filósofos franceses consideram que o que se designa como ideologia  são «enunciados de organizações de poder» entendidos como parte decisiva da própria estrutura produtiva do capitalismo, não uma superestrutura, ainda que numa relação com a produção económica, a infra-estrutura. São «agenciamentos de enunciação», que desde sempre foram predominantes na história ou seja, a ideologia é substituída pela análise das subtilezas da linguagem, pelas relações entre a semiótica do significante e do não-significante. De um modo chão, há que questionar e lembrar a essas correntes e suas derivadas que não foram as relações entre o significante e o seu significado ou vice-versa, por mais importantes que sejam, que foram decisivas para a tomada da Bastilha ou do Palácio de Inverno, para instaurar a Comuna de Paris ou para fazer a Revolução do 25 de Abril. Foram acções revolucionárias sobre o mundo material sobre o qual se agiu para o alterar.

Coerentemente com os suas conclusões, Deleuze faz a defesa do Maio de 68 considerando que o que «é normalmente chamado de política se fecha de tal forma como um poder que uma força de transformação política só pode vir de fora deste território fechado da política». Em síntese o devir revolucionário só poderia começar pelos «despolitizados», pelos «desideologizados». Utilizando a sua terminologia, o desejo político explodiria de maneira pré-significante, anterior à consciência política, portanto pré-ideológico. Está em linha com a Internacional Situacionista (IS), a raiz ideológica do Maio 68, que se nega enquanto ideologia à semelhança dos ideólogos da burguesia: «a IS não quer ter nada em comum com o poder hierarquizado, sob que forma for. A IS não é portanto nem um movimento político, nem uma sociologia de mistificação política» para logo a seguir se designarem como contribuintes cativos para um novo movimento proletário de emancipação «centrado na espontaneidade das massas» com o fim «de superar os fracassos da política especializada» (…) «com novas formas de acção contra a política e a arte», dizendo querer alterar radicalmente «o terreno tradicional da superação da filosofia, da realização da arte e da abolição da política». São herdeiros de Proudhon, «todas as revoluções se cumpriram pela espontaneidade do povo». Uma crença na espontaneidade das massas que, sobretudo depois das experiências da Comuna de Paris, mesmo Kropotkine, elogiando «esse admirável espírito de organização espontânea que o povo possui em tão alto grau», considera não ser por si só suficiente para fazer eficazmente uma revolução. Uma confiança desmentida pelas várias experiências históricas a que Lenine recorre para, em Que Fazer?, combater as ilusões originadas por essa convicção, sem deixar de considerar a importância das acções espontâneas.

São estes os fundamentos de uma desideologização de uma nova esquerda que são adulterados pelos pensadores de direita e pelos média mainstream para esvaziarem o conteúdo original do materialismo dialéctico, o seu poder revolucionário, adulando esses reformadores das esquerdas radicais, que etiquetam de «modernos», opondo-os aos «conservadores», a esquerda consequente que tem a certeza e a convicção de que nenhuma realidade, por mais consistente e hegemónica que se apresente, como é o capitalismo actual, deve ser considerada definitiva, nem dá por eterno o princípio da dominação capitalista.

Os objectivos do imperialismo cultural são óbvios, vulnerabilizar o pensamento de esquerda promovendo uma crescente indiferenciação ideológica e programática entre partidos de sectores de esquerda e de direita, que reduzem a sua acção e medem a sua representatividade pelos resultados da competição eleitoral, em que a democracia representativa deixou de ser lugar de debate ideológico. Os partidos de direita e dessa esquerda cosmopolita tornaram-se prolongamentos do aparelho de estado, representando interesses económicos que lhes dão apoio variável. Em que a actividade política se reduz praticamente à conquista do voto, o que representa um retrocesso político-ideológico que se esgota nos momentos eleitorais e deixa o campo aberto para o surgimento dessas novas-velhas forças políticas enquadradas no capitalismo pós-democrático.

Maio 68 é o marco da não-revolução que marca o fim de uma época, inicia uma outra em que a ideia de revolução se fragmenta em lutas por mudanças sociais que deixam intocadas as fundações do sistema. São as políticas identitárias tão em voga, que objectivamente são políticas de direita. Aos rebeldes sem filtro que reclamavam maiores liberdades o neoliberalismo deu-lhes essas liberdades dando-lhes a liberdade do mercado, com o objectivo de desmantelar as instituições colectivas da classe trabalhadora, em particular os sindicatos e os partidos políticos, considerados anacrónicos nessa nova ordem em que maiores liberdades individuais se afundam em maiores injustiças sociais. O fim do neoliberalismo é que as reivindicações, mesmo quando alterem as atitudes sociais, não sejam mudança social, nem se empenhem em transformações sociais radicais. Até um certo limite, até correndo alguns riscos, é-lhe conveniente a emergência das lutas ditas fracturantes, em que se conquistam direitos sem o direito de colocar em causa a ordem estabelecida. Tem uma consequência: a colonização do pensamento de sectores da esquerda pela direita com o fim último de que já não seja sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade onde os valores da civilização, da humanidade, da cultura, da política se plantam para florescer ainda que com todas as contradições e dificuldades.

As esquerdas radicais, em Portugal e no mundo, as esquerdas «modernas» que se opõem à esquerda praxada de «conservadora», ainda que por vezes tenham uns rompantes ou se digam pós-marxistas, não se revêm no que é nuclear no pensamento marxista: a relação de exploração entre o capital e o trabalho, as lutas  de classes que se vão ajustando às condições objectivas e subjectivas das sociedades onde se travam.

Conjecturam que a teoria marxista está ultrapassada por não corresponder às características da sociedade contemporânea, a chamada aldeia global pós-industrial. Consideram essas condições ultrapassadas, antiquadas, substituíveis pelas causas fracturantes e identitárias, com uma forte componente intelectual, mediática, de moda, praticamente sem relação com a tradicional base social da esquerda no mundo operário e nos sindicatos. Para eles ,as classes sociais não contam porque se estão dissolvendo, perdendo sentido, pelo que a tónica marxista nas classes sociais é reducionista, o que prevalece é a santíssima trindade da raça, sexo e género, como se em cada raça, sexo e género não existissem divisões sociais. Uma deriva pós-marxista em que as políticas identitárias acabam por ocultar que as fontes dos conflitos são sempre sociais antes de serem identitárias.

Ultrapassado o espelho da «modernidade» assumida por essas esquerdas, por mais que lapidem essa realidade, mesmo que obtenham alguns êxitos, o que se encontra de facto é a renúncia a uma sociedade que se oponha à desordem do mundo actual, com a desonestidade intelectual de fingir que o marxismo não representa mais uma realidade política actuante numa perspectiva socialista ainda que remota, um campo de batalha de onde os «conservadores» não desertam, carregando um património de lutas, «na “tradição dos oprimidos” (Walter Benjamin), aprendemos a não ceder aos desastres, aprendemos a trabalhar para estoirar o tempo contínuo das derrotas e a perscrutar os momentos em que algo de diferente foi possível, mesmo que por umas semanas ou meses ou décadas. O trabalho da esperança que magoa ensina-nos que o que foi possível, e logo derrotado, será possível (de outra forma), outra vez» (Manuel Gusmão).

(Publicado em AbrilAbril https://www.abrilabril.pt/)

Bibliografia relacionada

Cunhal, Álvaro; O Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista, Edições Avante!, 1974

Deleuze, Gilles; Guattari, Felix; O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia 1, Assírio & Alvim, 2004

Deleuze, Gilles; Guattari, Felix; Mil Planaltos. Capitalismo e Esquizofrenia 2, Assírio & Alvim, 2008

Gusmão, Manuel, Uma Razão Dialógica, Edições Avante!, 2011

Lenine, Que Fazer?, Edições Avante!, 1984

Marx, Karl; Engels, Friedrich; Obras Escolhidas (em três tomos), Edições Avante!, 1982-1985 (2.ª edição, 2008-2016)

Marx, Karl; Proudhon, Pierre-Joseph; Misère de la Philosophie/Philosophie de la Misère, Union Génerale d’Editions, colecção Le Monde en 10/18, 1964
 

TÓPICO

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Os Tubarões não são Vegetarianos

gravura Bartolomeu Cid dos Santos, ponta seca, água tinta, 1975

As intervenções de dois dos novos partidos com representação na AR, Chega e Iniciativa Liberal, são bem elucidativas da sua raiz que os faz percorrer, por caminhos diversos, o objectivo comum de por em práticas políticas económicas e sociais para que a exploração desbragada do capital sobre o trabalho não conheça fronteiras. Há quem lhes cole o selo elducorado de extrema direita para não os identificar com o que na realidade são: fascistas. O que também é uma forma de não reconhecer que o fascismo, nas diferentes expressões, é o alfa e o ómega do capitalismo. Brecht afirmou-o com clareza, “o fascismo é a verdadeira face do capitalismo”. Como fascista é, nos nossos dias, um termo pejorativo não tem a coragem de se apresentarem como fascistas e de como regimes fascistas são objecto de branqueamento. Uma desonestidade que faz jus à desonestidade dos seus protagonistas e dos seus argumentários. Da Alemanha nazi de Hitler ao Chile de Pinochet, não esquecendo a Itália de Mussolini, a Espanha de Franco, Portugal de Salazar, outros poderiam ser referidos, o fascismo, adaptando-se às circunstâncias internas e externas, tem o traço comum da promiscuidade das grandes empresas com o Estado, favorecendo-as, subsidiando-as, cartelizando o sector privado, apoiando-o com violentas políticas repressivas.

O deputado do Iniciativa Liberal, Cotrim Figueiredo, e o do Chega, André Ventura, apresentam-se como democratas travestindo o fascismo que é a sua marca. Álvaro Garcia Linera, com lucidez afirma que “Num momento de crise, por trás de qualquer liberal moderado há um fascista” . Refira-se que Garcia Linera é o vice-presidente da Bolívia deposto por um recente golpe de estado que ainda não mereceu condenação pela ONU, UE ou pelo nosso ministro dos Negócios Estrangeiros sempre tão lesto e interventivo desde que em linha com os EUA, o que os torna objectivamente cúmplices do fascismo que emerge com dureza e crueldade nesse país. O que também não é uma novidade nas políticas demo-liberais, recordem-se as tergiversações dos sociais-democratas da República de Weimar que conduziram os nazis ao poder ou as submissões de Chamberlain e Daladier a Hitler.

As últimas intervenções destes dois deputados são sintomáticas. André Ventura, experimentado nos debates futeboleiros, usa o estilo de atirar a bola para a frente sabendo que diga o disser e como disser o que conta é o ter chutado primeiro, que é esse chuto que vai ficar nas retinas. As suas últimas intervenções, uma dentro e outra fora da AR, são ilustrativas. Na manifestação das forças segurança aparece na AR envergando uma t-shirt do Movimento 0, um movimento até agora sem rostos (é anónimo dizem. Quem encomendou as t-shirts? Não deixam nas rasto nas redes sociais? Com que cumplicidades contam? Qual o passo seguinte? Onde já vimos isto? ) que trouxe para o exterior quando os eufemisticamente chamados de radicais lhe deram palanque para fazer afirmações desabusadas atirando-se ao “sindicalismo tradicional”, subvertendo as justas reivindicações das associações sindicais das forças de segurança para fazer propaganda e incitar subrepticiamente (até quando?) à violência. A 13 de Novembro usando as prerrogativas de deputado, na sua primeira intervenção na AR, fez declarações incendiárias sobre a compra de equipamentos pelas forças de segurança, a expensas pessoais, para suprirem as que o Estado não garantia. Foi contestado pelo primeiro-ministro. Sete dias depois afirmou que”tivemos aqui nesta casa um primeiro-ministro que mentiu aos portugueses” enquanto exibia um lote de facturas que dizia ser de coletes anti-balas, algemas, latas de gás pimenta, que iria disponibilizar aos deputados dos outros partidos. Até hoje não o fez. Quando um jornal lhe solicitou cópias das facturas, o assessor do senhor deputado enviou algumas que não comprovavam as afirmações. André Ventura não precisa de mudar de informador como lhe sugeriu António Costa. Ele sabe, até bem de mais , quem são os seus informadores e pouco lhe interessa que sejam ou não fiáveis. O que ele melhor sabe, pela sua experiência de comentador desportivo, é que chutar para a baliza, marque-se ou não golo, seja a bola real ou uma farsa o que fica na outiva são as insinuações, verdadeiras ou falsas. São as lições Goebbels, mal ou bem aprendidas, que correm pelos subterrâneos do Chega.

Cotrim Figueiredo tem outro estilo correndo na mesma pista. Agora “quer que os custos do empregador surjam no recibo de vencimento”. Apresentou mesmo um projecto de lei que pretende que «passem a estar plasmados no recibo de vencimento dos trabalhadores por conta de outrem os custos suportados pela entidade patronal no âmbito das contribuições para a Segurança Social» (ou seja, os 23,75%, para além dos 11,00% descontados pelos trabalhadores). Um trabalhador que fique a ganhar o salário mínimo nacional estabelecido para 2020, 635 euros ficaria a saber (será que não sabe?) que o seu patrão paga, quando paga evidentemente, 150,80 euros à Segurança Social. O que ele não fica a saber é quanto a seu empregador ganha em honorários acrescidos de outros dos valores , cartões para pagamentos de despesas, automóveis atribuídos, combustíveis para os movimentarem, seguros de saúde e outros, etc., etc., para conhecer a brutal desigualdade que nos torna uns dos países mais desiguais da Europa. Essa é que seria uma verdadeira medida da transparência que o IL não quer que seja conhecida porque à transparência diz nada.

O liberalismo, no seu melhor, nunca confiou na democracia. Mesmo os liberais que aderiram ao reformismo social-democrata, nos países mais desenvolvidos, fizeram-no sempre com os dois pés a trás. Nos países periféricos então é um ver se te avias. É ver os elogios ao Chile de Pinochet e às suas políticas liberais que os cotrins figueiredo plantam órgãos de comunicação social que, de forma cada vez mais explícita, os apoia.

Atribuem ao liberalismo todos os avanços civilizacionais e científicos atropelando todas as evidências começando pela do pai do liberalismo John Locke, justificar a escravatura ( Dois Tratados do Governo Civil – Edições 70) um dos grandes esteios da afirmação do capitalismo. Para essa gente são os empreendedores, é o empreendedorismo que fomenta a inovação. Uma mentira ainda recentemente desmentida por Bárbara Reis no texto “Sem Estado não há Starups : Mariana Mazzucato (…) diz que “todas as grandes inovações recentes” — dos carros sem condutor à tecnologia de armazenamento de bateria — “vieram do Estado”.

O que seria da Google sem o GPS? Nada.” Basta dar um passo atrás. Quem inventou a Internet? Cientistas da Defesa norte-americana. Quem inventou o GPS? Cientistas financiados pela Marinha norte-americana e pela NASA

. Que ideia essencial usa o GPS? A teoria da relatividade de Albert Einstein, sem a qual o GPS teria um erro de 11,2 quilómetros Quem financiou Einstein durante anos? O Instituto de Estudos Avançados de Princeton.

Quem financia hoje muita dessa investigação? Agências da Administração Trump . Foi financiamento do Estado que pagou a investigação que permitiu à Apple inventar os seus melhores produtos; a tecnologia touch-screen baseou-se em investigação feita em laboratórios financiados pelo governo americano nos anos 1960 e 1970; foi com fundos do Estado que dois cientistas europeus descobriram a magnetorresistência gigante (que lhes valeu o Prémio Nobel da Física 2007) — Steve Jobs disse que “foi isso que tornou o iPod possível”. Mazzucato vai mais longe: “Tudo o que é inteligente no iPhone foi financiado pelo Governo.” Isto é o que toda a gente sabe.
Como é em Portugal? Sendo muito diferente, é muito igual. O Estado tem um papel fundamental no “ecossistema” onde nascem as startups. Isso vai do INESC (TEC) (Porto) ao Hub Criativo do Beato (Lisboa), que não financiam com cash, aos milhões investidos a fundo perdido nas startups. A formação dos engenheiros do Instituto Superior Técnico de Lisboa custa 70 milhões de euros por ano, dos quais 50 milhões vêm do Orçamento do Estado. Noutra escala, mas com a mesma lógica, o MIT recebe “dezenas de milhares de milhões “ de fundos federais de 26 agências do Estado.»

Sempre foi assim ao longo dos séculos e em todos os países do mundo. A investigação fundamental é que faz avançar a ciência mesmo enfrentado os poderosos lobbies privados que pretendem uma investigação aplicada orientada para determinados objectivos industriais, esquecendo-se o quanto são devedores e do muito que beneficiaram e beneficiam com a investigação fundamental.

O liberalismo só tem aumentado o fosso entre ricos e pobres. Vende a ideia que a liberdade do mercado seria mais igualitária quando não há nada mais desigual do que o tratamento igual entre desiguais. Desde 1980 os 1% com mais rendimentos capturaram duas vezes mais ganhos do que os 50% mais pobres. Entre 1988 e 2008, os 10% mais ricos da população mundial apropriaram-se de mais de 60% de todo o crescimento do rendimento mundial. Em 2010, 1% dos mais ricos do planeta controlavam 46% de toda a riqueza mundial. Com tamanha desigualdade de poder económico a democracia é subvertida. A liberdade dos azevedos, amorins, salgados não é a mesma de um trabalhador precário, de um trabalhador sujeito à herança da troika na área das relações laborais ou mesmo dos que se situam nas classes médias.

Os cotrins figueiredos e os venturas são faces da mesma perigosíssima moeda. O fascismo está sempre no horizonte dos liberais se a desenfreada exploração capitalista for posta em causa e nunca estão satisfeitos.

gravura Bartolmeu Cid dos Santos, água forte, água tinta, 1975

Há que sempre relembrar a assertiva afirmação de um personagem do filme de João César Monteiro, Le Bassin de John Wayne“hoje os novos fascistas se apresentam como democratas”. Nos oceanos das democracias, como nos outros, todos bem sabemos que não há tubarões vegetarianos com que talvez – talvez – o PAN sonhe

(publicado em AbrilAbril .https://www.abrilabril.pt/ )

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Venezuela e Oportunismos de Pacotilha

A eurodeputada Marisa Matias denuncia os oportunismos de última hora do PSD e do CDS em relação à Venezuela e faz uma revelação bombástica : “Nós, no Bloco de Esquerda, não estamos ao lado de Trump nem de Bolsonaro em relação à Venezuela. No Bloco de Esquerda estamos ao lado de Guterres e das Nações Unidas”. A coordenadora do BE diz que «a posição do Governo português de reconhecer Guaidó não tem precedente e viola o direito internacional» para logo a seguir exigir «eleições livres» o que é uma estranhíssima afirmação pressupondo que as eleições que até aqui se realizaram na Venezuela não têm sido livres nem sujeitas a apertada supervisão internacional. Só nas últimas eleições é que a ONU e a UE, sem o justificarem, se escusaram a participar no restante grupo de observadores internacionais, o que entreabriu portas à golpada em curso. É o BE a denunciar o oportunismo dos outros enquanto faz público strip-tease do seu oportunismo. Deviam saber, até devem saber mas passam ao lado, que Guaidó, também as exige embora adiantando que é necessário depurar as instituições que supervisionam eleições na Venezuela, os cadernos eleitorais e mais um rol de exigências de um programa de claras florescências macartistas. No horizonte o desejo de eleições como as descaradamente fraudulentas nas Honduras, as manipuladas no Paraguai, Colômbia, etc. O BE não estará evidentemente de acordo com essas «eleições livres» de Guaidó mas, com as suas tergiversações, percorre um perigoso caminho paralelo.

Marisa Matias alinha ao lado de António Guterres, ainda sem ter a oportunidade de lhe distribuir uma ração de beijos como fez com Tsipras, para saudar e dar cobertura à sua sinuosa manobra diplomática quando, a par de Federica Mogherini, a Alta Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, se recusou, sem explicar os motivos, a enviar delegações que dessem assistência e supervisionassem as eleições em que Nicolás Maduro foi eleito com 67,4% dos votos expressos, tendo-se registado uma abstenção de 54%, a mais alta de sempre em eleições venezuelanas. Finge que não sabe que Maduro foi reeleito usando o mesmo sistema eleitoral com o qual Guaidó se tornou deputado, que havia 3 candidatos da oposição, os outros anunciados desistiram à última hora numa manobra comandada à distância por Washington para desacreditar essa eleição rufando desde o primeiro momento essa depreciação nos tambores dos media mercenários. Omite que os outros candidatos reuniram 33% dos votos e seguiram as regras acordadas na mesa de diálogo realizada na República Dominicana entre o governo venezuelano e a oposição, com o ex-presidente espanhol Zapatero como mediador, que também participou como observador nas eleições presidenciais. Nada disso lhe interessa, tal como não interessa que, na realidade, António Guterres, sancionando essa ausência, tenha dado antecipada cobertura, do alto do seu altar de secretário-geral da ONU, ao Grupo de Lima, Argentina, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Costa Rica, Guatemala, Guiana, Honduras, Panamá, Paraguai, Peru, Santa Lúcia e México (antes das eleições que colocaram Lopez Obrador na presidência e que se hoje se recusa a apoiar o golpe de estado de Juan Guaidó), que não reconheceram os resultados das eleições presidenciais devido à percepção de falta de transparência”, o que é irónico olhando para aquele painel de países. Foi com essa encenação e o implícito e nada inocente beneplácito de Guterres e Mogherini que se preparou o golpe de estado em curso, com que a deputada euro-europeia e o BE alinham por mais ginásticas façam.

Marisa Matias e o BE bem podiam ter evitado o embaraço em que se embrulharam. O oportunismo do BE de nem Maduro nem Guaidó, atirando para debaixo do tapete que é um é presidente eleito e outro o actor de um golpe de estado, está em compasso com a desinformação e manipulação mediática que, desde o princípio da revolução bolivariana de Chavez, tem sido uma das principais armas de combate do imperialismo. Isto apesar de todas as controvérsias que envolvem o processo venezuelano, não isentas dos erros que conduziram ao impasse actual. O que é inadmissível é que o BE faça umas vagas condenações das brutais agressões e boicotes que têm sido feitas à Venezuela conduzindo à crise económica, impulsionada por ordens executivas de Barack Obama e Donald Trump ao declarar o país como perigo para a segurança nacional dos Estados Unidos. Nem digam nada ou digam pouco sobre as sanções que têm impedido a compra de alimentos e medicamentos, nem sobre o confisco de bens venezuelanos nos EUA e países súbditos das suas estratégias geopolíticas. Sobre isso o BE quase que é surdo, cego e mudo.

Não apoiam nem Maduro nem Guaidó puxando os galões de democratas todo o terreno, denunciam uma deriva autocrática, insinuam que na Venezuela não há liberdade de expressão. O que não se sabe é que raio de democracia e liberdade de expressão defendem quando a Venezuela tem sido o país com mais disputas eleitorais em todo o hemisfério da América do Sul nas últimas décadas. Desde 1998, foram realizadas 5 eleições presidenciais, 4 eleições parlamentares, 6 eleições regionais, 4 eleições municipais, 4 referendos constitucionais e uma consulta nacional. 23 eleições em 20 anos. Todos com o mesmo sistema eleitoral, considerado o mais seguro do mundo pelo ex-presidente dos Estados Unidos, Jimmy Carter, todas sob observação internacional plural, excepto a última por motivos óbvios a atapetar o caminho para a golpada. Todos os dias olham para os ecrãs televisivos e deparam-se com Guaidó – veja-se a peça de propaganda montada pelo serviço público da televisão nacional numa mascarada de entrevista ao putativo presidente que deve ter feito ficar Steve Bannon roxo de inveja – dando declarações rodeado de microfones de meios de comunicação nacionais e internacionais, devem considerar que isso não demonstra que haja liberdade. Se calhar, hipocritamente, consideram que Leopoldo López, líder do mesmo partido de Guaidó, é um preso político olvidando que foi condenado por ser o autor intelectual de “La salida”, que promoveu as “guarimbas” de 2014, com saldo de 43 mortos e centenas de pessoas feridas.

Devem-se comover com os milhões de venezuelanos que, empurrados por uma crise económica imposta pelo imperialismo norte-americano e seus títeres, se refugiam nos países vizinhos, esquecendo-se que, pelos números da ONU, os venezuelanos que fogem à crise são metade dos hondurenhos que deambulam pelos territórios do continente americano, o que não diminui a gravidade da crise que se vive na Venezuela mas contextualiza-a em relação à miséria que grassa no continente americano. Outra probabilidade é considerarem que os direitos humanos são violados na Venezuela nos confrontos com a polícia. Se atendessem aos números verificavam que, pelos últimos números de 2017: 131 pessoas mortas, 13 das quais foram baleadas pelas forças de segurança (compostas por 40 membros presos e processados); 9 membros da polícia e da Guarda Nacional Bolivariana mortos; 5 pessoas queimadas vivas ou linchadas pela oposição. O restante dos mortos foram-no principalmente enquanto manipulavam explosivos ou tentavam contornar as barricadas da oposição. Há a violência do banditismo na Venezuela, roubos sequestros e equiparáveis, que não é maior nem menor que noutros países da América do Sul. Também isso serve para manipular a informação e apresentar a Venezuela como o país mais violento dessa região, mesmo que o Brasil ou a Colombia estatisticamente a ultrapassem. Os números, a realidade pouco lhes interessam. Interessam as imagens desde que não tenham legendas. Fica-lhes na cabeça aquele jovem em chamas, um opositor ao regime que involuntariamente se imolou pelo fogo quando pretendia atear o fogo aos bolivarianos. Horror, horror, tapam os olhos para não o identificarem e assim a violência torna-se um valor abstracto.

O que o preocupa o BE na Venezuela não é o drama que aquele povo vive por imposições externas, nem os direitos humanos, nem a ausência de eleições livres, etc., etc. O que será? Arriscamos uma hipótese: o relaxe de lutas fracturantes!!! Deve ser isso! No meio daquele caos, daqueles dramas quotidianos, dos boicotes e sabotagens o Partido Socialista Unido da Venezuela não dá a devida atenção às lutas fracturantes, um crime lesa liberdades que o BE não perdoa.

Tanta emoção, tanta comoção empurra-as para o equilibrismo oportunista de Guterres. “Nós no Bloco não estamos ao lado de Trump nem de Bolsonaro” pois não, era o que mais faltava, mas alinham com os seus desejos. Andam a vender chocolates embrulhados em papel de prata que é de estanho, sentam-se à mesa com o beato Guterres travestido de Pilatos que, da forma sorna que é o seu selo, apela ao “respeito pela lei e pelos direitos humanos” pedindo uma investigação “independente e transparente” aos casos de violência nos protestos de quarta-feira, escusando-se a falar da legitimidade de Nicolás Maduro e da declaração de Juan Guaidó proclamando-se presidente interino, atirando para dentro do armário o esqueleto da ONU, a seu mando mas cumprindo os desejos de Bolton, Pompeo, Trump & Companhia, se ter excluído de observar as últimas eleições presidenciais para abrir a porta ao actual golpe de estado. Nada sobre os boicotes. Nada sobre os pacotes de sanções. Nada sobre o saque aos bens da Venezuela. Um comunicado redigido com água benta de que algumas gotas foram recolhidas sofregamente pelo BE para aspergir o seu comportamento errático a tentar retirar dividendos das circunstâncias. No mais fundo das mais fundas gavetas do excelentíssimo secretário-geral repousa em coma profundo, o BE humanitariamente não o desperta, o relatório de Alfred-Maurice de Zayas, especialista independente que a ONU enviou em 2017 à Venezuela, que afirmava que as medidas coercivas unilaterais impostas pelos governos dos Estados Unidos (EUA), Canadá e a União Europeia (UE) afectaram o desenvolvimento da economia venezuelana, já que agravaram a escassez de remédios e a distribuição de alimentos. Descarta a tese da “crise humanitária”, indicando que o que existe é uma crise económica que não pode ser comparada com os casos da Faixa de Gaza, Iémene, Líbia, Iraque, Haiti, Mali, Sudão, Somália ou Myanmar. Considera que as sanções económicas são comparáveis com os cercos praticados contra as cidades medievais com a intenção de obrigá-las a render-se, que atualmente buscam submeter países soberanos e que o bloqueio económico, aplicado no século XXI, está acompanhado de ações de manipulação da opinião pública através de notícias falsas e relações públicas agressivas, para desacreditar determinados governos. A “ajuda humanitária” , cavalo de batalha de Gauidó espaldado pelos mercenários da comunicação social, em lugar de destaque o enviado especial do serviço público da RTP, é uma das manobras mais miseráveis, cínicas e hipócritas do império norte-americano e seus sequazes que, enquanto garrotam com sanções e boicotes a Venezuela, que já custaram 30 mil milhões de dólares aos cofres venezuelanos e promovem as carências em bens alimentares e medicamentos, enviam em saquetas uma percentagem mínima do que já sacaram.

Marisa Matias e o BE também nada disseram ou pouco dizem sobre o terrorismo estadunidense que, não fora o apoio popular ao governo bolivariano e o de muitas nações que se demarcaram e condenaram os EUA só apoiado pelo rebanho de países suas marionetas entre os quais está Portugal, o interino Guaidó, teria, directamente ou pelas armas dos para-militares e dos exércitos colombianos e brasileiros, passado a definitivo, dando início aos massacres e perseguições e à aplicação desenfreada do programa de choque neoliberal há muito agendado. É claramente insuficiente, mesmo cobarde afirmar-se que não se está com Trump ou Bolsonaro e depois pintar com meias e cinzentas tintas o que de facto está a acontecer na Venezuela.

O povo venezuelano vive um imenso sofrimento por erros políticos internos graves por parte do governo bolivariano, por uma extensa e brutal pressão externa, por um embargo que só se justifica por ser um país que tem das maiores reservas mundiais de petróleo. É isso que explica e justifica esta obsessão por uma mudança de regime, patrocinada directamente pelos EUA e suas marionetas, sustentada pelas atitudes até há pouco dúbias das chamadas democracias e que agora se chegam à frente para ver se não se atrasam numa eventual partilha que seguirá ao saque, se o conseguirem. A posição assumida pelo governo português reconhecendo Guaidó, obedecendo a Mike Pompeo e dando respaldo ao seu partido de extrema-direita e ao golpe de estado em curso, pela voz do maquiavel da feira de vandoma que se senta nas Necessidades, envergonha-nos. Mais nos envergonha por se saber que a Europa já esteve várias vezes activa nas negociações entre governo e oposição, negociações que fracassaram sempre por pressão dos EUA.

O problema central da Venezuela é continuar a ser independente e soberana, o que intolerável para Trump como já o era para Obama. O que está a ocorrer é um processo de afundamento da sua economia para impor uma mudança de governo e submeter o país a uma alteração sócio-económica pela cartilha dos princípios neoliberais. Que Santos Silva alinhe com esses objectivos nada que surpreenda, pensa pela cartilha que lhe colocam á frente e nunca arriscaria uma palmatoadas do Pompeo,

só seria estranho que PSD, CDS, muito do PS não lhe dessem conforto. Tem no oportunismo do BE um aliado que estando no mesmo palco se quer apresentar distinto. Que alinha sem alinhar nessa agenda que objectivamente subscreve, como já fez em muitas outras ocasiões, que mal disfarça com uma ginástica de radicalismos de fachada e piruetas canhestras que coloram aquela manta de retalhos.

Há que estar ao lado do povo da Venezuela. Há que inequivocamente condenar o boicote e as sanções que estrangulam a economia venezuelana, a causa principal da brutal crise que o povo tem vindo a suportar. Referir o estado caótico da economia sem apontar ao boicote humanitariamente condenável é de um cinismo e uma hipocrisia intoleráveis. A Venezuela vive uma grande depressão económica, com uma enorme degradação dos serviços públicos. Há que não esconder que parte dessa situação deriva de erros e equívocos do governo de Maduro, que agravaram alguns que já vinham de Chavez, porque não houve mudanças significativas na estrutura económica do país que não se libertou da quase total dependência do petróleo, sujeitando-se aos ciclos da economia internacional. Porque prosseguiu um rumo ziguezagueante e algo confuso, de compromissos e confrontos com políticas capitalistas o que acaba por dificultar a sua luta assumidamente anti-imperialista e contra o golpismo da burguesia que sempre beneficiou com a exclusividade dos recursos do petróleo, que os governos chavistas redistribuíram pelos mais pobres. Mesmo que esses erros e equívocos não sejam a parte substancial da crise, não devem ser subestimados nem escondidos atrás do biombo do criminoso boicote conduzido pelos EUA, para que a Venezuela os ultrapasse e sobreviva num contexto regionalmente desfavorável e a Revolução Bolivariana prossiga corrigindo muitos dos seus desacertos.

Há que encontrar o mais rapidamente possível uma saída para a crise garantindo a continuidade da Revolução Bolivariana. É um dever cívico, político e de cidadania apoiá-la sem margem para dúvidas, por maiores ou menores que sejam as críticas que se façam, sem embarcar em oportunismos de pacotilha traduzidos em declarações simbólicas em que muitas esquerdas se enredam para matizar a sua deriva ideológica e a sua impotência política o que é insuportável e injustificável quando a Venezuela está na iminência da guerra civil e do caos total.

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Ana Jara, Bolha Imobiliária, Caderno Vermelho, Cidades, Fernando Medina, Filipe Diniz, Geral, Helena Roseta, João Ferreira, lisboa, Manuel Salgado, Neo Liberalismo, turismo, urbanismo

Lisboa, Sociedade Anónima

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Nas últimas semanas o vereador Manuel Salgado e o pelouro do Urbanismo da cidade de Lisboa têm sido objecto de várias notícias, com algumas acusações graves feitas em entrevistas pelo ex-vereador da Mobilidade Urbana, Fernando Nunes da Silva, e por Manuel Maria Carrilho, que recupera algumas que tinha inscrito no seu livro Sob o Signo da Verdade, em que pretende justificar o falhanço da sua candidatura à presidência da Câmara Municipal de Lisboa (CML). Acusações, verdadeiras ou falsas, que irão obrigar naturalmente Manuel Salgado a justificar-se perante as investigações que obviamente irão acontecer. O vereador responsável pelo Urbanismo da capital nos últimos onze anos tem um sólido percurso técnico nessa área, pelo que não parece verosímil que se tenha deixado enredar noutras malhas que não aquelas com que tem tecido a cidade e traçado o seu futuro, dispondo de um poder que não se compara com o de nenhum outro vereador pós-25 de Abril. É no seu gabinete que se desenha uma Lisboa que ficará irreconhecível, que é objecto de uma devastação pela alienação dos bens públicos e por uma especulação imobiliária de que detém os fios, uma Lisboa Sociedade Anónima que destrói a ideia de cidade como espaço aberto à vida social e à vivência democrática. Essa é a questão central.

Depois dos consulados de Abecassis, Santana Lopes e Carmona Rodrigues, com os abranhos plantados no urbanismo e nas comissões de urbanismo da Assembleia Municipal, em que Lisboa foi abandonada a erráticos interesses imobiliários que a poluíram de retalhos de tralhas urbanísticas, a cidade, com a entrada de Manuel Salgado, primeiro na vereação presidida por António Costa e depois na de Fernando Medina, começou a adquirir uma identidade de sentido único, plasmada nos instrumentos urbanísticos que desenhou, invariavelmente aprovados pelo PS, PSD e CDS, que a estão a tornar irreconhecível e que têm um conteúdo ideológico alinhado com os modelos de cidades neoliberais, os quais realmente existem, por mais que se queira equacionar o rigor dessa expressão.

Com Manuel Salgado, Fernando Medina é um berloque de ideias feitas em que as originais são assim-assim e as boas são sacadas de outras paragens quando são úteis para se integrarem no modelo que o seu poderoso vereador do urbanismo está a construir, Lisboa é uma cidade-empresa entregue à especulação imobiliária, em que as intervenções que valorizam o seu tecido urbano são uma mais-valia, num processo de transferência do bem público para os interesses privados.

Um puzzle bem montado em que as peças se encaixam na perfeição numa cidade em que o pensamento único é o preço por metro quadrado, com a multiplicação de hotéis, apartamentos de luxo em condomínios de preferência fechados, o bullying consumista que a despersonaliza identificando-a com o modelo da cidade-objecto que ataca como uma térmita outras cidades mundo fora museificando-as, tomando-as de assalto por um turismo selvagem que destrói mesmo o valor do turismo, que atira os lisboetas para fora da sua urbe.

Em curso, em acelerada velocidade de cruzeiro, um projecto político de mercantilização da cidade e do espaço público. Um puzzle em que nada é deixado ao acaso, em que o poder político se entrega cegamente ao mercado porque, como afirmou Manuel Salgado, «não cabe aos poderes políticos colocar entraves ao livre funcionamento do mercado». Tudo corre como na canção de Caetano Veloso, «tudo em volta está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco». Dois e dois seriam cinco no plano de expansão do metro com a linha circular verde, se bastante antes desse plano ser viabilizado, por acordo entre o PS e BE, Manuel Salgado não tivesse explicado numa entrevista ao Idealista ( 09/07/2014) que a avenida 24 de Julho não seria o novo Parque das Nações: «Se calhar não. Tem vantagens de localização ainda melhores: tem a mesma relação com o rio, é virada a sul em vez de ser a nascente e está mais perto do centro. É uma área que tem um potencial de valorização muito grande». Lá vai a expansão do metro, por mais complexos que sejam os problemas técnicos e os custos a ela associados, contribuir decisivamente para cumprir a visão mercantilista do vereador, a base do planeamento neoliberal que desenhou e continua a desenhar sem uma hesitação. Afinal, na linha verde circular do metropolitano, dois e dois são quatro, favorecendo a especulação imobiliária que fará esplender a avenida 24 de Julho.

Lisboa requalifica-se enquanto cresce como deserto para os lisboetas, obrigados a abandonar a sua cidade pela subidas significativas dos preços da habitação, tanto de arrendamento como de habitação própria, pelas insuficiências dos transportes públicos, pelas taxas com que a autarquia os sobrecarrega.

Sucessos recentes mostram como esse caminho continua a ser trilhado seguramente pelo supervereador, o qual, depois da revisão do PDM em 2012, por acordo entre o PS e o PSD – central no projecto político de mercantilização da cidade – vai alterando projectos de urbanização, planos de pormenor e outros instrumentos de gestão urbana que possam colocar em causa os interesses imobiliários em colisão com o interesse público da cidade. É o caso da Torre das Picoas, onde durante vários anos se restringiu a construção de um edifício naquele terreno a apenas sete andares, para agora autorizar a construção de 17 pisos. Tudo evidentemente legal, quando se tem o poder de alterar as ferramentas de gestão urbana.

É essa capacidade que deve inquietar como inquietou Helena Roseta, que enviou um conjunto de perguntas a Manuel Salgado sobre a desafectação de fins de utilidade pública de oito edifícios: a Fundação Oriente, na Rua do Salitre; o Regimento de Sapadores Bombeiros, na Praça da Alegria; a Autoridade Nacional de Proteção Civil, na Rua Câmara Pestana; a Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários Lisbonenses, na Rua Camilo Castelo Branco; o Instituto de Conservação da Natureza e Florestas, na Rua de Santa Marta; o Cinema Olympia, na Rua dos Condes; a EPAL, na Avenida da Liberdade; e os CTT – Correios de Portugal, na Rua de São José. São negócios que envolvem milhões de euros. Helena Roseta reconhece estar de mãos e pés atados, sejam ou não respondidas as questões que colocou: «podemos discutir, mas não podemos decidir». Quer saber «o que significa esta desafectação em termos de mais-valias para os proprietários e que contrapartidas poderá haver para a cidade». Esse é o lado para onde Manuel Salgado melhor dorme.

Até porque a presidente da Assembleia Municipal (AM) garante que a proposta aí apresentada por Manuel Salgado, aprovada numa reunião de Câmara, em Julho, e depois remetida para a AM «está correcta, de acordo com a lei e não tem nenhuma irregularidade», acrescentando que «a lei não exige aquilo que eu pedi, simplesmente acho que temos de pedir isto por uma questão de sabermos o que estamos a decidir. Faz parte das funções de fiscalização política de uma assembleia municipal, pedir este tipo de fiscalizações». (…) «No fundo é um escrutínio político, estão a pedir-nos uma decisão que vale muitos milhões. Será que isto implica algumas contrapartidas para a câmara, será que há algumas alterações ali para a zona? Não podemos tomar decisões destas assim de ânimo tão leve».

Ânimo leve é algo desconhecido por Manuel Salgado que a escrutínios políticos diz nada, basta-lhe alterar o Plano de Urbanização da Avenida da Liberdade e Zona Envolvente (PUALZE), porque, na sua óptica «a CML pode e deve promover a alteração do respectivo instrumento de gestão territorial com vista à redefinição do uso do solo, quando, por iniciativa dos respectivos titulares (proprietários, locatários), os imóveis anteriormente afectos a fins de utilidade pública sejam materialmente desativados dessa finalidade e se verifique a sua fraca ou inexistente aptidão para acolher novos equipamentos, quer em razão da sua localização no tecido urbano, quer pelas suas características intrínsecas».

Nem é preciso fazer um desenho: «a Lisboa Pós-Salgado não é ficção: é uma cidade pensada a preço por metro quadrado, como um realista tabuleiro de monopólio, pronto a servir para a monocultura de hotéis e luxury apartments»1.

Há uma revolução em curso em Lisboa que provoca enorme ansiedade em Medina, que vive alegremente sobressaltado pelo agressivo marketing urbano que comanda o planeamento e a gestão de Lisboa provocando «um momento de dinamismo, vibração, energia, inovação, ânimo, polaridade positiva como não me lembro de alguma vez acontecer». Uma proclamação de pensamento positivo tipo Paulo Coelho, enquanto se senta na primeira fila a aplaudir o espectáculo do seu supervereador do urbanismo, que é quem de facto preside aos destinos da cidade, a guilhotinar o direito à cidade com uma eficácia que deve fazer rebolar de inveja os seus antecessores durante o Terror Vermelho na Revolução Francesa.

O que está a acontecer em Lisboa é a liquidação do direito à cidade, à imagem e semelhança do que se passa noutras cidades, naquela que é uma das piores regressões históricas caldeadas pelo triunfo do pós-modernismo e do pensamento único, em que elas se esvaziam dos seus habitantes, vitimizados pela monocultura do turismo e da especulação imobiliária. Os seus mentores entrincheiram-se na grande falácia de as cidades ou ficarem confrontadas com a sua estagnação e degradação, em que supostamente se suicidariam ou, para se salvarem, teriam de se entregar ao mercado, ao marketing económico-urbano que rasga um caminho de sentido único que de facto as mata enquanto cidades, sujeitando-as a um modelo global em que ficam iguais nas suas dissemelhanças.

Um modelo que se apodera dos seus centros vitais, expropriando-as da sua essencialidade enquanto centros de vida social, política, cultural e económica, o que fazia delas centros irradiantes de pensamento.

Em «A Lisboa Pós-Salgado 2007-2017», Ana Jara, Caderno Vermelho n.º 25, Setembro de 2017. Nesse mesmo número ler também «Lisboa-O Direito à Cidade», João Ferreira; e «Arquitectura, Cidade, Neoliberalismo», Filipe Diniz.

(publicado em abrilabril https://www.abrilabril.pt/)

fantasma do marquês

O Fantasma do Marquês, João Abel Manta, desenho a tinta da china sobre fotografia, Abril 1970

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ROBLES, DO OUTRO LADO DO ESPELHO

O que está verdadeiramente em causa é o saudosismo nada ocultado pela governação Passos-Portas, o seu autoritarismo, a sua subordinação aos interesses do capital, o seu desprezo pelo mundo do trabalho.

Robles

O caso Robles tem empapado noticiários, redes sociais, internet. A esmagadora maioria dos comentários navega na espuma dos factos variando entre os das esquerdas que, fazendo contorcionismos quase impossíveis, tentaram e tentam desresponsabilizar o dirigente do BE, aos de outros que, com o oportunismo que caracteriza a direita, agitam as bandeiras de princípios morais que nunca tiveram, para o condenar e por arrasto condenar o BE, não por causa do BE mas visando mais longe para tentarem acertar na «geringonça» que eles bem sabem ter tido o seu tiro de arranque por iniciativa do PCP (o que tem sido ocultado em benefício do BE), como foi esclarecido, certamente não por acaso, preto no branco, por António Costa, num dos últimos debates na AR, depois de afirmar ter a «geringonça» na cabeça e no coração – o que será comprovado nos tempos próximos.

Uma insanável contradição ética

Robles não cometeu nenhuma ilegalidade, nem cometeu nenhum crime económico. Envolveu-se num negócio imobiliário especulativo que se inicia quando participa num leilão em que o Estado aliena património público ao desbarato. Para quem diz defender políticas públicas de habitação esse foi o primeiro passo para se negar, adquirindo para si um património que devia pugnar para que se mantivesse público. Os passos sequentes estão em conformidade.

Na recuperação do imóvel os apartamentos variam entre os 30 e os 25 metros quadrados, segundo a descrição do anúncio que o colocava no mercado. Robles poderá não ter noção do que é uma habitação de 30, 25 metros quadrados. Poderá não ter, mas certamente saberá quantos metros quadrados tem a sala da casa onde vive e não é de crer que tenha menos de 20 metros quadrados, o que já lhe dá um razoável padrão comparativo.

Há ainda outro aspecto no projecto de recuperação do imóvel que, aparentemente, viola o PDM, artigo 42-3 d, em que «se admite o aproveitamento da cobertura em sótão e a alteração da configuração geral das coberturas, desde que contida nos planos a 45 graus passando pelas linhas superiores de todas as fachadas do edifício, não seja ultrapassada a altura máxima da edificação, seja assegurado o adequado enquadramento urbanístico». Pelas fotos divulgadas, o aproveitamento da cobertura não cumpre essa norma, com largo benefício para a sua área útil. Robles disso não se deve ter apercebido. Deve desconhecer o PDM ou leu-o na diagonal, 45 graus é um ângulo estranho que deve ter dificuldade em calcular. Sendo vereador na CML e defendendo publicamente, com grande alarde, políticas urbanísticas não especulativas deveria, no entanto, cuidar-se para não incorrer em riscos suplementares aos riscos de se ter enredado no processo em que se envolveu.

 

Robles e a campanha da direita

 

Os oportunistas de direita não perderam tempo a colocar a prancha na crista da onda e o BE, pouco habituado a maus tratos comunicacionais, andou aos zigues-zagues. Também houve quem aproveitasse a balbúrdia para atirar umas pedras ao PCP, nada inesperado nem inusual. Não sendo essa a questão central, a direita por interposto Robles apontava o dedo às esquerdas partindo do princípio de que quem é de esquerda tem que fazer votos franciscanos. Um equívoco idiota. Quem é de esquerda, no contexto desta sociedade, pode ser rico, Engels era, o que não limita a capacidade de intervenção social e política, de lutar ao lado dos trabalhadores desde que não se ofenda quaisquer princípios éticos nem deixe de defender essas frentes de luta mesmo que os seus bens patrimoniais sejam atingidos. A direita, com o seu oportunismo contumaz, confunde moralismo, ética e ilegalidade. Tem outro problema, a corrupção, os crimes políticos e económicos, os que estão escrutinados e alvo de processos judiciais mais os que andam a pairar ou estão submersos em nuvens de suspeição, são praticamente um exclusivo do PS, do PPD e do CDS. Têm a seu favor a artilharia jurídica, sabendo-se que entre a justiça e o direito o abismo não é pequeno e que o direito é o direito do mais forte à liberdade. Robles era um alvo à sua medida mesmo sabendo-se que não tinha cometido nenhuma ilegalidade. Tinha incorrido numa fortíssima e insanável contradição ética.

A campanha que decorreu e continua a decorrer é da baixa politiquice, prenhe de truques xico-espertos e populistas que procuram ocultar a dura realidade das inquietações que assaltam os grandes interesses económicos e os políticos que os representam.

A questão central da direita é a necessidade, até urgência, em romper com a convergência que parlamentarmente tem sustentado a solução governamental que, desde as últimas eleições, foi encontrada. Pressionados pelo grande poder económico e politicamente desorientados, fazem esses fogachos enquanto não encontram líderes capazes de a romper. Rui Rio não os satisfaz por parecer estar mais interessado em ressuscitar um bloco central, o sonho desejado por Marcelo, que desde o seu primeiro dia de presidência o tinha colocado por debaixo da mesa em que discutia os problemas do dia-a-dia governativo com António Costa. Assunção Cristas é aquela coisa que abana a cabeça de um lado para o outro sem uma ideia consequente. Aparecem agora um ressuscitado Pedro Santana Lopes que tem ideias que sem o concurso dos concertos de violino de Chopin não consegue afinar. Pedro Duarte a saltar pimpão para o palco, faltando saber se tem estaleca para enfrentar Rio e é capaz de corporizar os desejos não ocultos do grande capital.

A direita, atarantada por estar longe de exercer o poder e de no horizonte próximo essa possibilidade se configurar difícil, fragmenta-se, o que não significa que não continue a ser perigosa. Os comentadores que lhe são afectos e que dominam o panorama dos meios de comunicação social, da estipendiada propriedade dos plutocratas ao chamado serviço público – com destaque para a televisão onde se encontram bem representados –, aproveitam o caso Robles para colar pedaços e atacar sem detença a «geringonça» de caras ou de cernelha, como o têm feito desde o primeiro momento em que se percebeu que poderia haver uma solução governativa PS com apoio parlamentar do PCP, BE e PEV. Esse o alvo e o grande objectivo.

Alvos: entre o preferencial e o interposto

Num primeiro momento, de forma continuada, o PCP foi o alvo preferencial, em linha com que sucede desde o pós Revolução de Abril. O PCP abrir a porta para esta solução governativa destruía a velha e relha tese do PCP «na sua lógica imutável do “quanto pior, melhor”». Uma cassete da direita adoptada por muitos que se dizem de esquerda mas alinham sistematicamente com a direita. O PCP, na sua longa história, não teve nem tem vistas curtas pelo que nunca poderia pensar que as crises abrem necessariamente mais espaço à esquerda.

As lutas pelos direitos políticos e sociais não se reforçam com as crises, que alargam sempre o fosso entre ricos e pobres. Quem se reforça são os populismos de todos os matizes. Quando as crises rebentam as pessoas interrogam-se sobre o dia de amanhã. A reacção mais imediata, espontânea e humana é o receio pelo seu futuro. As pessoas que vivem pior e enfrentam situações que precarizam a sua vida estão humanamente mais fragilizadas, mais vulneráveis. Se num primeiro impacto os princípios da sociedade podem e devem ser postos em causa, a seguir regressam em força, pela mão dos agentes mais violentos do capitalismo. O colar o «quanto pior melhor» ao PCP é uma ideia feita da direita e de malta dita de esquerda formatada e em deriva ideológica. Esse bordão tinha ficado em estilhas, pelo se entrincheiraram nos desvios do PCP «à fidelidade de princípios». O que muito os incomodava, porque seria a única virtude que reconheciam a esse partido, ainda que essa virtude representasse para eles um claro sinal de envelhecimento. Para quem não tem, nunca teve, nem nunca terá princípios de qualquer género, para quem os princípios são instrumentais, ter princípios e a eles não falhar é qualquer coisa incompreensível, inaceitável. Esbarrava essa argumentação no empenho negocial do PCP em dar continuidade à «geringonça» sem recuar em nenhuma luta e nas críticas às vacilações das políticas sociais e económicas do governo, sem deixar de condenar a sua subordinação aos ditames da UE e à política belicista da NATO.

Com o BE, a questão era outra. Desde o anúncio da sua formação o BE beneficiou de desvelados carinhos mediáticos. Largos espaços de antena, dos jornais às televisões lhe foram concedidos, muitas das suas mais conhecidas individualidades foram e continuam a ser recrutadas para comentadores, mesmo os que saíram do BE para o Livre não perderam essas sinecuras, o que torna, curiosa mas não inesperadamente, o Livre num partido de quase nula expressão a ter desmesurada presença nos media. O BE alimentava a esperança de uma movida política, de ser o anticiclone dos Açores a impulsionar o ar fresco que varreria um PCP que não abdicava da sua identidade ideológica, reconfigurando o lado esquerdo do espectro político em Portugal, normalizando-o. O BE foi incapaz de cumprir esse desiderato. Desde a sua fundação andou sempre a balançar entre a recuperação aggiornata dos ideais dos primeiros sociais-democratas, para quem a democracia era o território da luta de classes pacífica, e um difuso eurocomunismo pop em que se começa pelos fins e se acabam os princípios. O seu modelo anda aos solavancos entre os Verdes alemães, o Syriza grego, o Podemos espanhol. As cenas de namoros com esses partidos têm vários episódios, alguns tornaram-se pouco recomendáveis. De qualquer modo continuava e continua a beneficiar da complacência mediática em larga escala e num amplo espectro.

O caso Robles abriu uma fissura e a oportunidade para os comentadores da direita mais reaccionária iniciarem uma campanha de descredibilização do BE, que as tergiversações de Catarina Martins & companhia facilitaram. É gato escondido com o rabo todo de fora. Há que sublinhar a traço muito grosso que o alvo dessa campanha era a «geringonça» por interposto BE, em que visionavam uma inevitável ruptura nos seus equilíbrios internos e as dificuldades que o BE teria na lógica da aspiração das suas elites intelectuais em participar num futuro governo, no que concorrem com os seus ex-militantes agora enfileirados num Livre eleitoralmente irrelevante mas muito activo nos tabuleiros desse mercado.

 

O saudosismo descarado da direita

 

O que está verdadeiramente em causa é o saudosismo nada ocultado pela governação Passos-Portas, o seu autoritarismo, a sua subordinação aos interesses do capital, o seu desprezo pelo mundo do trabalho, o ódio à peste grisalha, o ataque desenfreado aos direitos sociais e laborais, o acentuar os desequilíbrios entre a remuneração ao capital e ao trabalho, o atribuir qualquer sucesso económico, por menor que fosse, ao mundo empresarial e nunca aos trabalhadores, o dividir os portugueses entre empreendedores, sempre altamente beneficiados, e os «piegas» que se queixavam das cada vez mais duras condições de vida e de trabalho e da deterioração das relações laborais. O ódio aos sindicatos que conseguiram travar com êxito muitas lutas para que o pior não fosse ainda pior. O elogio do empobrecimento da generalidade dos portugueses enquanto a minoria dos mais ricos continuava a enricar a galope. Em simultâneo também estavam confortáveis com um PS e um BE que muito os criticavam e diziam que o país estava péssimo, mas não saíam das variantes de jogos de salão.

O PSD, com golpes populistas, ganha as eleições mas perde a maioria parlamentar e os alarmes disparam quando, à saída de uma reunião entre o PCP e o PS, Jerónimo de Sousa diz que «o PS só não será governo se não quiser». Não era só o tradicional e bafiento arco governativo que estava em causa, era sobretudo o PS abrir um interregno na sua matriz soarista-reaccionária e haver a possibilidade de um entendimento à esquerda.

Desde que esse entendimento se concretizou os ataques tem sido uma constante. O caso Robles deu-lhes um novo impulso sobretudo agora que a legislatura se aproxima do fim e se vai discutir o seu último orçamento. O único objectivo desta campanha é minar os possíveis e nada fáceis entendimentos à esquerda para, num primeiro passo, reduzir e, a médio prazo, anular o peso político do PCP, do BE e do PEV nas acções do Estado, desbravando as veredas por onde a direita mais reaccionária possa avançar. Atacar a «geringonça», até, se possível, torná-la inviável, é também dar força dentro do PS aos saudosos do soarismo-reaccionário que odeiam militantemente a esquerda e aos que estão contrafeitos na barca da «geringonça».

O capital está inquieto com a possibilidade de haver uma reedição dos entendimentos à esquerda. Por isso avança todos os seus peões nesta altura, que não é um momento qualquer. As tensões comerciais internacionais multiplicam-se e têm desenvolvimentos imprevistos. Advinha-se uma nova crise económica mais devastadora do que de 2008, a qual politicamente favoreceu a expansão dos populismos e dos autoritarismos. A frágil economia portuguesa é e será muito sensível às variações internacionais e, enquanto não recuperarmos muita da soberania que alienámos, ainda mais expostos estamos. Com o governo PS subordinado à UE e à Nato o caminho de recuperação de independência nacional está adiado e as medidas socialistas não saíram de gaveta fechada a sete chaves, ainda que se tenha metido uma chave na fechadura. Neste contexto as questões que se colocam à esquerda não são nada fáceis, confrontada como está entre a renovação ou não de um acordo semelhante ao que está em vigor, conhecendo as habituais flutuações do PS, as suas sujeições à UE e NATO, o polme dos seus militantes sempre prontos a se deixarem fritar em conjunto com a direita, a qual, mesmo a que aparenta ser mais civilizada, não perde os genes seláquios.

As alternativas são fáceis de desenhar no actual contexto nacional e internacional e a bem visível voracidade da direita não deixa margem para dúvidas. O saudosismo pelas celebradas medidas estruturais que mais não são que o ataque desenfreado a todos os direitos que ao longo destes 44 anos foram conquistados e defendidos, não é iludível. O governo Passos-Portas foi uma variante dura dos anos cavaquistas e soaristas. O que se pode prever nos actuais desentendimentos da direita, que são mais concorrência interpares do que divergências de fundo, é que uma próxima oportunidade de um governo dessa gente será ainda pior. A leitura do seus arautos é esclarecedora. É com essa realidade que a esquerda tem de se confrontar, que tem de enfrentar, com coragem e audácia, para continuar as batalhas pela reconquista dos direitos políticos, sociais e económicos que, por mais magroas que sejam, são conquistas que têm revertido, ainda que muitas vezes insatisfatoriamente, o caos insalubre que a direita tinha implantado.

(publicado em AbrilAbril,  http://abrilabril.pt 10 de Agosto 2018)

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capitalismo, demagogia, Donald Trump, economia, Geral, mercados, Nasdaq, Neo Liberalismo, Wall Street

Ponto de Rotura

trump

 

Um enorme equívoco percorre os media e as redes sociais sobre Trump e a administração Trump. Aparentemente Trump, a administração Trump concorre para o isolacionismo dos EUA  e está contra a globalização. Não está, muito pelo contrário. As grandes multinacionais norte-americanas que agora se lhe opõem, até quando logo se verá, o que receiam é que Trump, a administração Trump, na fúria da necessidade de angariar fundos para cumprir promessas demagógicas, lhes corte os enviesados caminhos por onde fogem a pagar impostos nos EUA. Não por acaso Wall Street e a Nasdaq registam saltos significativos. Os mercados, a medusa dos nosso tempos, estão a reagir agradados com Trump, a administração Trump, o que é significativo e inquietante.

A grande alteração que Trump encastra na democracia formal como a que existe é agora, como já escrevi, estarem os donos do pote no poder deixando de lado, os que até agora metiam as mãos no pote fazendo trabalho de intermediação.  Trump, a administração Trump quer demonstrar e pôr em evidência que chegou a altura de dispensar intermediários políticos. Berlusconi também o fez à escala da Itália. Os multimilionários empresários foram para o governo para resolver directamente os seus negócios. O pretenso isolacionismo de Trump, não é mais que um acelerar do processo de globalização com outras ferramentas. Toda aquela gente tem lucrado com o processo de globalização capitalista, com a desregulação dos sistemas sociais e económicos a nível mundial que entrou em velocidade uniformemente acelerada depois da queda do Muro de Berlim.

Trump, a administração Trump é o campo experimental para limitar ou mesmo dispensar as veleidades de regimes democráticos, mesmo os que tinham mais fachada que substância, ou então torná-los de facto numa fachada que serve de cortina ao exercício do poder pelas plutocracias, processo em curso na União Europeia.

Tudo isso está agora a ser levado ao extremo. Trump e administração Trump não está contra o mundo. Utiliza, grosseiramente como ogre que é, o estado a que chegou o mundo, o que o torna muitíssimo mais perigoso e coloca o mundo à beira do abismo para onde estava e está a caminhar.

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ano novo, economia, EUA, Geral, Guerra, Humanidade, Neo Liberalismo

Ano Velho,Ano Novo

fogo-artificio

É do saber popular e universal que rei morto, rei posto. Frase que se transpôs para a translação dos calendários. A cada ano que falece, entre fogos de artifício, batidas em panelas, taças de vinho borbulhantes, vira-se a página do último dia do ano para abrir a de um novo ano com os votos de bom ano, mesmo que as evidências o balizem de inúmeras, algumas dramáticas, interrogações. Há mesmo muito mundo em que se passa de um para outro ano sem espaço para festejos pelo estado ruinoso em que se encontra, ainda mais desgraçado que o estado geral do mundo submerso em operações em que a ganância de uma minoria que vive numa abundância e opulência obscenas continua a manobrar operações para as manter e ampliar. São os poderosos plutocratas, activos bonecreiros de um teatro em que puxam os cordéis a figurantes, de maior ou menor importância, que executam políticas configuradas conforme as circunstâncias, das mais suavemente democráticas às mais brutais ditaduras, que dominam um circuito de informação universal que as justificam manipulando a realidade. O guião é o de sempre: o da cupidez que não conhece fronteiras e desconhece qualquer princípio ético. Vive-se num mundo sem qualquer dignidade. A tragédia humana é planetária. A situação dramática a que se chegou explode por todo o lado em atrocidades do mais diverso quilate, a coberto de cínicos artíficios. A sua banalização planta o esquecimento para que a impunidade persista mesmo contra vozes lúcidas e com repercussão universal, como a mais recente e próxima do papa Francisco, que colocam o dedo nas feridas com diagnósticos correctos e implacáveis do estado do mundo. Os apelos às consciências entra por uma orelha e sai rapidamente pela outra. Ouvem, acenam aplausos, sorriem sonsamente, sabem que quem os escuta não tem ou tem pouco poder e os principais dirigentes mundiais rasuraram-nos para continuar a trabalhar para uma reduzida minoria que continua a concentrar a riqueza produzida pela esmagadora maioria da humanidade.

Há almas peregrinas que não duvidam da situação dramática a que se chegou e acreditam, a muitas delas há que conceder o benefício da dúvida, que dentro desse quadro geral de rapina económica e humana são possíveis alterações de fundo. Os caminhos que se apresentam não favorecem esse optimismo. Estabelecer uma tabela com todas as guerras, atentados terroristas, alianças espúrias em que todos os meios justificam os fins, todas golpadas financeiras e económicas, todas as legalizações forçadas das ignominias, todos os truques diplomáticos, enfim de tudo o que faz correr a humanidade para os abismos da destruição do planeta, enchiam uma enciclopédia de dimensão incomensuravel e bem negra do estado degenerado a que chegou o mundo. Não é um acaso, uma malapata, um alinhamento negativo dos astros. É a conjunção de forças, com os EUA como força principal e a cumplicidade dos seus aliados, que persistem em explorar a humanidade.

Inquietante, muitíssimo inquietante é a progressiva destruição dos universos do pensamento, das criações intelectuais e artísticas, mediocrizando os actos de ver, ouvir, ler. Filtra-se o conhecimento pelo googlar, revêm-se as actualidades em tweets, multiplicam-se fotogramas, tudo para iludir o essencial, fragmentando notícias e reduzindo tudo a bytes que trivializam a informação manipulando-a e enterrando-a nas lixeiras das pantalhas televisivas, nas ondas radiofónicas, no papel de jornais e revistas, nas redes sociais. Nada disto é inocente. O objectivo é alimentar uma contínua e cada vez mais espessa cortina de fumo que oculta a opinião informada e elaborada, um perigo para o estado das coisas em que a decadência moral, política e económica se apoderou do universo como um cancro que cresce sem cessar com múltiplas e novas metástases para corroer as relações humanas, os laços entre os oprimidos e explorados. O seu desejo é que já nem sequer seja possível pensar que é possível pensar uma sociedade outra para triunfo de não haver alternativa para este estado caótico e impiedoso.

Estamos, somos os condenados da terra? A história ensina que não há impossíveis. Há que lutar, lutar sempre mesmo contra todas as evidências, pela paz, para o futuro da humanidade em que cada individuo afirme a sua individualidade em liberdade e democracia, com a dignidade e as condições de vida a que cada ser humano tem direito. Todos os dias são dias de ano novo. O que agora começou, o que ao fim de 365 dias irá começar.

(texto publicado no Jornal a VOZ do OPERÁRIO / Janeiro 2017 !   http://www.avozdooperario.pt/index.php  )

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Artes, cinema, Cinemateca, Cultura Mediática, Festival de Cannes, Geral, Kean Loach, Neo Liberalismo, Realismo

Ken Loach: Os Pobres não são responsáveis pela sua pobreza

ken-loach

Ken Loach tem a raríssima qualidade de ter sido sempre, sem uma falha nem uma rasura, um cineasta política e socialmente empenhado e ser quem abriu os caminhos para a renovação do cinema inglês, rasgando novos horizontes por onde caminharam realizadores como Mike Leigh, Stephen Frears, Larry Clarke, David Leland e muitos os outros. Em Inglaterra há um cinema antes e outro depois de Ken Loach, o que diz tudo sobre ele como artista.

Todos os seus filmes mergulham com coerência numa cultura política marxista. Toda a sua extensa obra, sem nenhuma concessão, está centrada na descrição das condições de vida da classe operária, nos dramas pessoais e familiares provocados pela destruição das políticas públicas de bem-estar social, nas tragédias dos emigrantes clandestinos. Filmes e documentários para a televisão fazem um retrato real e feroz do lado sombrio da Grã-Bretanha, retrato que se torna universal neste nosso tempo em que numa extensão sem precedentes, cada vez mais habitantes do planeta perdem a esperança e são atirados para a exclusão, a riqueza global vai-se concentrando num número cada vez menor de mãos. Em que em nome da racionalização e da modernização da produção, se  regressa ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial. Tempos de uma nova ordem económica que se impõe com violência crescente, é fanática e totalitária. Uma nova ordem onde impera a hipocrisia e o cinismo das proclamações altissonantes das liberdades e dos direitos humanos enquanto se destroem direitos sociais, económicos e políticos alcançados em anos de duríssimas lutas.

Ken Loach lutou e luta sempre, sem perder um segundo, contra esse estado de coisas. Provocou e provoca imensa controvérsia entre os bem pensantes de direita e esquerda que consideravam e consideram insuportável o que classificam de radicalismo marxista e que é a luta pela conquista da dignidade humana numa sociedade que não tem nenhuma dignidade. Uma luta que considera, que todos as mulheres e homens de esquerda  consideram necessária, urgente.

Impõe-se a obra de Ken Loach num panorama artístico em que a classe operária, os trabalhadores, os que desde sempre foram e são oprimidos e explorados, foram quase completamente rasurados. Não é um acaso é a consequência de esta nova ordem capitalista ter percebido que tem  importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. Que é tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos, proporcionados pelas redes informáticas. Que  é igualmente importante o domínio e o controle económico e financeiro e a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas, para instaurar de forma consistente uma cultura alienada e alienante.

Ken Loach é um coerente e obstinado lutador contra esse estado do mundo. A sua arma é a camera de filmar que usa com um saber raro, com uma qualidade artística que o coloca entre os maiores realizadores de cinema de sempre. Os seus filmes, ao longo de cinquenta anos de trabalho, olham com uma impar lúcidez crítica política a devastação que as políticas neoliberais produzem nas paisagens sociais.

Este ano, em Cannes foi-lhe atribuida a Palma de Ouro ao filme Eu, Daniel Blake. hoje em ante estreia na Cinemateca antes de amanhã entrar  no circuito comercial. A Cinemateca, finalmente, vai realizar durante o mês de Dezembro, um ciclo com doze dos seus filmes. Uma oportunidade para descobrir este cineasta (quase) desconhecido no nosso país.

Programação na Cinemateca

POOR COW dia 2/21h30 – dia 5/15h30

OS DOIS INDOMÁVEIS dia 5/21h30 – dia 9/15h30

VIDA EM FAMÍLIA dia 7/15h30 – dia 9/21h30

LOOKS AND SMILES dia 12/19h00 – dia 14/15h30

AGENDA SECRETA dia 13/19h30 – dia 16/15h30

RIFF-RAFF dia 14/21h30 – dia 21/15h30

CHUVA DE PEDRAS dia 16/19h00 – dia 23/15h30

LADYBIRD,LADYBIRD dia 19/19h00 – dia 27/15h30

MEU NOME É JOE dia 22/19h00 – dia 28/15h30

IT’S A FREE WORLD dia 27/21h30 – dia 29/15h30

O MEU AMIGO ERIC dia 28/19h00

O ESPÍRITO DE 45 dia 29/21h30 – dia 30/15h30

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Al Qaeda, Bernie Sanders, capitalismo, Copmunicação Social, Debates Eleitorais, Donald Trump, Eleições EUA 2017, EUA, Geral, Hillary Clinton, Neo Liberalismo, Obama, Wall Street

Pesadelo Climatizado

eua

Os Estados Unidos da América elegeram para presidente um dos piores males. O outro pior dos males perdeu. O mundo e os EUA que se cuidem. Alguns idiotas úteis andavam muito alegres e satisfeitos com a hipótese de uma mulher ser eleita pela primeira vez presidente dos EUA. Facto histórico diziam com a mesma inconsciência com que celebraram um afro-americano ter sido eleito pela primeira vez presidente. Um afro-americano a quem foi atribuído o Nobel da Paz e foi quem mais guerras directas ou por procuração espalhou pelo mundo. Um afro-americano que aumentou as desigualdades económicas e sociais e a violência racial nos EUA durante os seus mandatos. São esses os factos históricos para essa gente cega por uma visão medíocre e mundana que se preparava para comemorar se Hillary Clinton fosse eleita, esquecendo ser ela a candidata preferida por Wall Street e pelo grande capital. Ser ela uma das principais responsáveis pelo caos que se vive no Médio-Oriente e pelo ambiente de apocalipse que os seus aliados ocasionais da Al-Qaeda, do Estado Islâmico e outros grupos terroristas ad-hoc espalham. Trump é melhor ou é pior? Não se sabe e não é certamente melhor! Trump é um proto-fascista com errático sentido de Estado, de quem se pode esperar tudo ou nada.

Facto histórico nestas eleições é a traição de Bernie Sanders que, depois de ser uma forte lufada de esperança para milhões de norte-americanos sobretudo jovens, atirou na Convenção Democrática essa esperança para o caixote de lixo da senhora Clinton, mesmo sabendo as vigarices e os truques sujos que ela usou para o derrotar. Traição por não ter tido a coragem de romper com um sistema bipartidário corrupto, manipulado pelo grande capital e pelo complexo industrial-militar. Teve todas as condições para o fazer, recuou cobardemente encurralando os seus apoiantes nas baias clintonianas do Partido Democrático.

Esse é o grande facto histórico destas eleições em que os norte-americanos ficaram obrigados a escolher não entre o menor dos males mas entre os dois piores dos males. Qual dos dois era o pior, é o que não iremos saber nos próximos quatro anos por um ter perdido e o outro ganho. Com Clinton ou Trump o mundo fica mais perigoso e imprevisível. Os EUA são cada vez mais um pesadelo climatizado, como lhe chamou Henry Miller, com os norte americanos a puderem ir à Califórnia aliviar-se das dores com a canabis agora legalizada para fins recreativos.

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O Mundo às Avessas

magritte

A Grande Guerra (1964) / Magritte

Vivemos num mundo às avessas! Mundo manipulado por poderosa máquina que controla a comunicação social, que usa os meios tradicionais e os mais recentes proporcionados pela internet. Ser toupeiras para furar aqui e ali esse espesso manto acontece com afinco quase militante para cumprir o desígnio orwelliano de “num tempo de engano universal, dizer a verdade é um acto revolucionário.”

Não se olha a meios para alcançar os fins que usa e abusa da mentira que acaba, quando acaba, por ser desmascarada depois de ter atingido os seus objectivos. Das verdades e meias verdades para com a verdade me enganares, às omissões cuidadosamente controladas. Um bombardeamento noticioso e opinativo que enche as prateleiras da memória para essas prateleiras também serem de esquecimento. Recentemente essa gigantesca máquina de (des)informação esqueceu-se, na sua esmagadora maioria, de dar realce à sentença do Tribunal Internacional Criminal sediado em Haia, uma invenção dos EUA que cautelarmente colocaram fora da sua alçada os cidadãos norte-americanos e as tropas e mandantes da NATO, que ilibou por unanimidade Milosevic dos crimes de que fora acusado. Milosevic, o carniceiro dos Balcãs como era classificado por essa monstruosa máquina (des)informativa, morreu há dez anos na prisão sem que justiça lhe tenha sido feita.  O silêncio quase absoluto seguiu-se ao rufar dos tambores de guerra. Utiliza-se com enorme desenvoltura o sistema de ocultação e desocultação para que as mentiras propaladas se sobreponham às verdades que não podem ser desmentidas. As falsificações, mesmo as mais óbvias, são autenticadas pelo sistema mundial dos media para que a verdade não se distinga da mentira. A extrema gravidade deste mundo às avessas é que se continuam a fabricar  novas falsificações jogando com a falta de memória ou com memória distante e enovoada das falsificações anteriores.

Volta Goebbels estás perdoado! A verdade está definitivamente assassinada. É o triunfo do império onde tanto faz Clinton ou Trump chegarem ao poder. Nenhum será o mal ou o menor dos males. Ambos são o pior dos males. O mundo está cada vez mais perigoso.

( editorial do Jornal a Voz do Operário/Setembro 2016)

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Totalitarismos Democráticos

 

BOLSA

Num mundo ligeiro em que a espessura do pensamento é mais fina que uma folha de papel de arroz, a política um jogo que se quer viciado ao serviço dos grandes interesses económico-financeiros, a comunicação social a voz dos plutocratas seus donos que reproduzem com maior ou menor talento, o controlo de opinião feito por um plâncton de idiotas úteis, alguns inteligentes,  cada cor seu paladar em que o paladar pouco se altera e a cor dominante é o cinzento, multiplica-se a invenção de frases coloridas como bolas de sabão para simular que se vive num mundo muito variado que de facto é composto de poucas mudanças.

Na economia as crises estruturais não são radiografadas. Tudo se escoa pelos sumidouros dos activos tóxicos, dos remédios, bancos bons e bancos maus e por aí fora, numa correria desordenada de frases feitas onde se encontram verdadeiras perolas como aquela do crescimento negativo.

Na política a cada esquina que se dobra tropeça-se no Brexit, no TINA (There Is No Alternative), nas lutas fracturantes, nos efeitos colaterais etc etc para que tudo pareça mudar para tudo continuar na mesma. Eleva-se à categoria de pensamento o thatcherismo, o reganismo, o blairismo como se tudo isso não fossem papeis amarrotados no caixote de lixo da história.

Constrói-se uma realidade de frases feitas que quer impor como realidade o fim da história, o fim da ideologia, o fim do mundo porque para eles não há outro mundo para lá deste. É um processo de pensamento minguante, de retrocesso social, de infantilização da política com um objectivo claro: não ser sequer possível pensar que é possível pensar uma sociedade outra. É o totalitarismo democrático imposto por uma ditadura de medíocres que manipula o presente para manter as rédeas do passado e do futuro nas mãos da plutocracia. Razão tinha Georges Orwell quando lucidamente denunciou que para se ser totalitário não é necessário viver numa sociedade ditatorial porque “quem controla o passado dirige o futuro e quem dirige o futuro controla o passado”.

Deve-se reconhecer que a direita vive um momento de vitória ideológica apesar das vitórias políticas da esquerda. Há que lutar todos os dias contra essa factualidade, mesmo quando vamos entrar no que eles chamam de silly season, como se as lutas sociais e políticas amolecessem com o calor e fossem de férias. Há que fazer entrar pela janela a real realidade que eles atiram com contumácia porta fora.

(editorial do Jornal A Voz do Operário/ Julho,Agosto 2016)

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Banca, Bernie Sanders, Berthold Brecht, Blogues, Brexit, capitalismo, Comunicação Social, Donald Trump, Espanha, EUA, Euro, Europa, Geral, Hillary Clinton, Media, Neo Liberalismo, pesamento único, Poder Económico, Redes Sociais, União Europeia

A Solução

cachorro-rabo

O que anda para aí de inquietação ! A cada passo se tropeça em opiniões sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, as eleições em Espanha, as crises e os estados de alma da União Europeia, os Estados Unidos da América entre  duas américas, a de Sanders e a de Trump e uma dama insuflável no horizonte, mais o que por aí anda a turbilhonar o mundo e patati  patata na comunicação social, nos blogues, nas redes sociais encharcadas pelos paleios de idiotas úteis alguns  inteligentes que correm atrás do rabo como tontos cães.

No entanto é fácil resolver tudo o que atormenta essa gente e os mercados de modo eficaz, radical e rápido. A solução está ao virar da esquina, já Brecht a tinha escrito com clareza genial

 

(…)

O povo perdeu a confiança do governo

E  só à custa de esforços redobrados

Poderá recuperá-la. Mas não seria

Mais simples para o governo

Dissolver o povo

E  eleger outro?

 

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António Costa, Assunção Cristas, Banca, BANCOS, Bank of America, CDS, CityGroup, Comunicação Social, Deustche Bank, EUA, Expresso, Geral, Hedge Funds, ICIJ, José Maria Ricciardi, Maria Luís Albuquerque, Neo Liberalismo, Offshores, Panama Papers, Passos Coelho, Pedro Santos Guerreiro, Rigor Jornalístico

Panem et Circenses

CIRCO E PÃO

Os chamados Panama Papers agitam a comunicação social ocidental que é parte integrante e muito activa do império, desde que o império em nome da racionalização e da modernização da produção, começou a regressar ao barbarismo dos primórdios da revolução industrial com uma nova ordem económica que se impõe com violência crescente. O objectivo é a conquista do mundo pelo mercado. Nessa guerra os arsenais são financeiros e o objectivo da guerra é governar o mundo a partir de centros de poder abstractos. Megas pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum excepto a lógica do investimento. Uma nova ordem fanática e totalitária em que são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o dos bens imateriais. Em que é tão importante a produção de bens de consumo e de instrumentos financeiros como a produção de comunicação que prepara e justifica as acções políticas e militares imperialistas através dos meios tradicionais, rádio, televisão, jornais e dos novos, proporcionados pelas redes informáticas, como é igualmente importante a construção de um imaginário global com os meios da cultura mediática de massas. É este o contexto em que se bate tambor com os Panama Papers. Um pequeno tambor à sombra de uma pequena árvore da imensa floresta de corrupção inerente ao sistema.

Em Portugal, basta olhar para o Expresso, esse porta-estandarte da comunicação social independente e do rigor jornalístico. O resto afina, com variações de estilo pelo mesmo diapasão, um eco medíocre do tom maior internacional.

O novel director do Expresso perde a cabeça e intitula um texto de opinião sobre os Panama Papers como O Maior Crime de Sempre. Perdeu completamente a noção da realidade, tal o empenho em sublinhar os objectivos políticos mal ocultos por supostas revelações sensacionais. O ridículo não tem fronteiras, não mata, mas vende. O que ele faz é uma mera operação de marketing para aumentar as vendas no próximo futuro do semanário.

Afinal parece que ninguém sabia nem sabe para que servem os paraísos fiscais. Como são parte intrínseca do sistema capitalista. Ou será que essa gente pensa que, por exemplo no caso português, a offshore da Madeira foi criada para incentivar o cumprimento rigoroso das obrigações fiscais dos países de origem das empresas e das individualidades aí sediadas? Ou que para que Belmiros e Soares dos Santos olhem pra aquele exemplo de incentivo ao rigor fiscal e deixam de fugir a pagar impostos em Portugal, deslocalizando a sede das suas empresas para o mais confortável e amigo, deles evidentemente, sistema fiscal da Holanda?

Nomes e mais nomes desfilam pelos media, dos que lá estão e dos que lá não estando deveriam lá estar, sem que essa troupe de jornalistas se interrogue sobre a natureza do sistema que inventou esse mecanismo de fuga aos impostos. O mesmo sistema que garrota os trabalhadores que, além de serem explorados, não têm meios nem possibilidade de fugir aos impostos por mais brutais que sejam, por mais que sirvam para sustentar os mecanismos de exploração e sustentar o sistema financeiro como por cá tem acontecido com os bancos que faliram ou estavam à beira da falência e foram salvos com o nosso dinheiro, o dinheiro dos contribuintes, sem que cause escândalo nos jornalistas que agora se desdobram em manchetes sensacionalistas.

O Maior Crime de Sempre? Mas não são os países da União Europeia os lideres das offshores? Não é presidente da União Europeia o senhor Juncker que, quando era primeiro ministro do Luxemburgo, inventou um mecanismo legal obviamente para as grandes multinacionais fugirem a pagar impostos nos seus países de origem? E a Irlanda? E a Holanda? E…e quantos bancos, na sequência da crise dos subprime, foram salvos lavando dinheiro do tráfico de droga? Era de tal ordem a lavagem que não era possível cerrar os olhos a tudo. pelo que alguns foram obrigados a pagar multas e a comprometerem-se por um prazo de x anos a não voltar a abrir a lavandaria. Como os grandes bancos têm muitas filiais podem levar as máquinas de lavar para outro local. Um pagode que só provoca uns arranhões de sobressaltos inquisitivos nessa comunidade jornalística agora tão entretida com os Panama Papers. Que não investiga o que se passa no Deustche Bank que tem uma exposição aos derivados e outros produtos financeiros que é 16,4 vezes maior do que todo o PIB da Eurozona. Ou investigue porque é que nos EUA um quinto da capitalização dos bancos Morgan Stanley, Citigroup e Bank of America se evaporou. Ou o mais que por aí anda a sobrevoar ameaçadoramente o mundo.

Offshores, Hedge Funds, Derivados, Futuros, e todas as invenções que favorecem a desenfreada especulação financeira que está a empurrar o mundo para o abismo, que são a corrente sanguínea do sistema capitalista só despertam um relativo interesse jornalístico e investigações superficiais nessa gente que chafurda nos Panama Papers, sem nunca colocar em causa o sistema, quando este, numa linguagem pós-modernaça e ilusionista, fica intoxicado e precisa de remédios. Remédios para quê? Para trepar a montanha dos produtos derivados, do capital fictício, dos activos da banca paralela que, segundo o Finantial Stability Board, representa 120% do PIB mundial e cujo controlo é ainda muito menor do que a generalidade da banca. Para continuar a desenfreada exploração que conduz a que a riqueza de 1% da população mundial seja maior que a dos 99% restantes. Que 60 bilionários tenham tanto capital como a metade mais pobre da população mundial e a tendência é para esses números se agravarem nos próximos anos se o sistema continuar na sua desenfreada correria.

O Maior Crime de Sempre? O maior crime de sempre não será o do caminho feito sobre milhões de vítimas de um sistema que continua a fazer diariamente vitimas em nome dos valores de uma civilização que se consolidou com inúmeros e brutais massacres e genocídios, em nome dos direitos humanos que variam consoante os interesses geoestratégicos, de um estado de direito em que a lei é o direito do mais forte à liberdade. Da democracia em que na suposta pátria da democracia são os super-ricos, os grandes interesses das grandes empresas que decidem quem ganha as eleições, doando somas ilimitadas para influenciar abertamente os seus candidatos. O rol é infindável. Não merece atenção nem ser investigado por essa comunicação social.

O que está a dar, a vender, são os Panama Papers uma espécie de revista cor de rosa onde desfilam nomes dos famosos apanhados nesse reality show. Uma montanha que pare um rato que entra pelos buracos seleccionados do queijo e deixa o queijo quase intacto.

Com pompa, circunstância o director do Expresso depois de proclamar O Maior Crime de Sempre anuncia que o Expresso fez parte dos barões assinalados dessa investigação e vai começar a publicar todos os dados coligidos. Não diz, mas deveria dizer quais os interesses que estão por trás dessa investigação de certo apadrinhada pelo plutocrata seu patrão que tem lugar reservado entre os manda-chuva de Bildeberg. Investigação a sério seria saber  os cruzamentos entre o grupo de Bildeberg e o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação (ICIJ, sigla em inglês) e a razão de agora se despejarem 11,5 milhões de documentos na rede de comunicação social estipendiada, propriedade dos grandes e dos pequenos, também existem pequenos, olhe-se para o nosso país, o que não os exclui do grupo.  e grandes plutocratas deste mundo. As ligações do ICIJ com quem o financia são obscuras. Mas só os papalvos acreditam que os 190 jornalistas, em mais de 65 países, que buscam desenterrar delitos internacionais, corrupção e abusos de poder, vivem sem fortes e secretos financiamentos que lhes orientam os tiros e apontam os alvos.

Veja-se como por cá se não desenterram abusos de poder, um adjectivo simpático. Querem um exemplo recente? Alguém, algum jornalista quando a Assunção Cristas iniciou o seu caminho imparável para substituir Paulo Portas no CDS foi analisar o que tinha feito como ministra da Agricultura. E o que fez? Deixou um “buraco” de 340 milhões de euros, assumindo que deixou uma herança que incluía o pagamento futuro de 200 milhões, mas que Passos Coelho e Maria Luís sabiam; que esgotou num ano, 2015, os milhões de verbas da UE para cinco anos e até as excedeu em 296 milhões de euros; que da dotação global de 576 milhões para ajudas “agroalimentares”, a gastar entre 2015 e 2019,. “comprometeu” 872 milhões, logo em 2015; que deixou 20 milhões de euros de seguros por pagar; 24 milhões de obras no Alqueva, etc., etc distribuindo milhões em 2015, ano de eleições recorde-se (fonte Foicebook). Em suma que a Cristas é, no mínimo uma irresponsável que ficou ao abrigo da nossa comunicação social tão lesta a levantar ou não levantar lebres ao sabor do vento dos interesses dominantes. Os seus mestres estão no ICIJ.

O Expresso, refere-se e escolhe-se o Expresso pelo lugar destacado que tem no telelixo português da desinformação, vai continuar a entreter-nos com esses derivativos informativos em linha com o que tem feito. Basta folhear as últimas edições para rir desbragadamente com informações sensacionais como aquela, exemplo quase ao acaso tão variado é o leque de escolhas, do Ricciardi dizer em relação aos lesados do BES que “tenho pensado dentro das minhas capacidades encontrar uma solução, mas nunca integral. O projecto que tenho na cabeça, com outras pessoas, passará por pagar essas diferenças, apesar de não sentir qualquer obrigação para o fazer”. O António Costa, em vez de ter promovido um acordo entre os lesados do BES, o Banco de Portugal e a CMVM, deveria era ter telefonado para a cabeça do Ricciardi, agora pronto e disponível para “sem sentir obrigação de o fazer”, fazer um número tipo Evita Peron na varanda da casa rosada em favor dos lesados por uma administração de que fez parte e foi beneficiário durante dezenas de anos.

Nas próximas semanas esperamos que, apoiando a transcrição e as análises aos Panama Papers, no saco do jornal Expresso venha a oferta de uma carcaça, para o Panem et Circenses passar às vias de facto.

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Terrorismo Financeiro

 

este nunca está satisfeito

gravura de Bartolomeu Cid dos Santos

O Orçamento de Estado 2016 (OE2016) está debaixo do fogo cruzado dos partidos da oposição, de uma série de entidades supostamente dotadas de clarividência técnica e politicamente neutras, contam com o apoio activo de uma comunicação social mercenária ao serviço do grande capital e das políticas económicas neo-liberais.

Os alertas dos tecno burocratas da União Europeia, das agências de rating, da UTAO e do Conselho de Finanças Públicas que colocam em causa as contas do OE2016 têm a extrema curiosidade de nunca terem posto em causa as contas dos quatro Orçamentos de Estado do governo PSD-CDS que estavam tão bem feitas que foram objecto de oito (!), repita-se oito(!), orçamentos rectificativos!!! Não se ouviu alarido algum! Que credibilidade tem essa gente?

O que os alarma é que nos celebrados mercados, a geringonça da financeira especulativa, os juros continuam a cair nos últimos dias. Confiam nas contas do OE2016? Confiavam nas políticas de austeridade e nas contas dos OE’s dos governos PSD-CDS e por isso os juros foram baixando paulatinamente?  Nada disso! Baixaram porque o BCE interviu, continua a intervir, anuncia que vai continuar a intervir nos mercados financeiros para ajudar os países endividados a financiarem-se. Será bom lembrar que mesmo o FMI, o BCE, mesmo alguns membros das comissões e instituições europeias e governos europeus colocam em causa o quadro de forte austeridade imposto à periferia, que o Governo PSD-CDS, por convicção ideológica, abraçou ultrapassando mesmo exigências da troika que já eram desproporcionadsa e despropositadas. Acabaram por conduzir Portugal ao estado miserável actual sem resolver nenhum dos problemas ditos estruturais. Aumentaram a dívida soberana em relação ao PIB, era 91% em 2010, hoje é 137%. Encheram os cofres de dívidas e passivos,empurrando para os anos seguintes a resolução de uma dívida cada vez mais impagável. Aumentaram o desemprego para taxas obscenas mesmo disfarçadas com malabarismos estatísticos. Alargaram drasticamente o fosso entre os mais ricos, cada vez menos e mais ricos, e os pobres cada vez mais e mais pobres, até Portugal ser o país mais desigual da UE. Empobreceram o país, revogaram direitos sociais, económicos e políticos, venderam privatizando empresas ao desbarato, destruiram parte substancial do tecido económico de Portugal maioritaramente composto por pequenas e médias empresas, cortaram salários, pensões e reformas a esmo, asfixiaram a maioria dos portuguese com uma carga fiscal brutal enquanto concediam benefícios fiscais às grandes empresas e bancos, tudo para se vangloriarem de uma saída limpa que é uma ficção feita com buracos financeiros que se vão descobrindo, a procissão ainda está no adro. As malfeitorias são mais que muitas tudo em nome dessa coisa viscosa e falacciosa que é o não haver alternativa.

Agora, comunicação social e partidos da oposição ao XXI Governo Cosntucional andam em grande grita por todos os cantos e recantos atirando achas para a fogueira dos que cosem em lume vivo o OE2016, recorrendo ao argumentário das tecnicidades, uma rede onde se colocam todas as dúvidas sobre a validade das variáveis em que se fundamenta o OE2016. Um trabalho de que se encarregam quatro agências de rating, comissões técnicas da Comissão Europeia,conselheiros do Conselho Económico e Social, do organismo da Assembleia da República para analisar a construção do orçamento, UTAO, Conselho de Finanças Públicas, o organismo cuja missão é avaliar a consistência das políticas económicas e financeiras, como se esses ilustres técnicos estivessem esterilizados por uma dedicação exclusiva à ciência económica, como se a ciência económica fosse uma ciência exacta. Como se não visassem objectivos políticos. Um farisaismo sem fronteiras nem limites.

O que essa gente não diz e oculta é que as expectativas económicas em parte alguma são credíveis  As expectativas dos orçamentos de Estado, dos mercados de matérias primas, das bolsas são o resultado, são criadas pelas agências de notação financeira, pela comunidade de peritos técnicos e pela comunicação social. Tudo isso está sob o controle dos grandes bancos e do grande capital especulativo e financeiro. São os.grandes bancos e o grande capital especulativo e financeiro que encomendam as expectativas “necessárias”.para sacarem lucro. Desde a crise dos subprime à actual crise do mercado petrolífero isso é uma evidência indesmentível. A credibilidade técnica é nula. Trabalham para interesses financeiros específico imediatos e políticos a médio e longo prazo..

Fazer depender um OE das notações das  agências de rating, das avaliações dos tecno-burocratas de Bruxelas, politicamente em linha com as políticas conservadoras e neo-liberais, sem qualquer legitimidade e escrutínio democrático, é querer impor uma diatadura a Portugal. É alinhar com o terrorismo financeiro vigente! É travestir a realidade de o debate sobre o OE2016 ser um debate político, que é o que o governo trava com Bruxelas. É fingir que as análises das agências de rating e as outras comissões técnicas são meramente técnicas e não são também políticas! Um gato que se anda a vender com pertinácia por lebre na comunicação social.

Os partidos da oposição e os media andam deliberadamente a procurar espalhar o pânico. Procuram com afinco provocar efeitos externos pressionando fortemente tanto a margem negocial do governo com Bruxelas como a enviar sinais alarmistas para as famigeradas agências de notação. Há um medo generalizado que explode no meio dessa gente como uma bomba atómica. Receiam que haja por parte da UE alguma flexibilidade que prove ser possível fazer melhor do que eles fizeram, e fizeram sempre mal, e que os sacríficios exigidos durante quatro anos aos portugueses foram excessivos e desnecessários. Foram uma fraude política-económica sem resultados palpáveis, além dos já referidos.

Essa a verdadeira razão que aduba a algazarra dos partidos na oposição e os seus sustentáculos nos media. Gritaria que aumenta o volume quando assistem ao marimbanço de França, Espanha e Itália aos avisos de Bruxelas. Quando os tecno-burocratas de Bruxelas se inquietam com o que possa suceder nos tempos mais próximos em Espanha onde o PP submeteu o país a um resgate, que pudicamente não foi classificado como tal, e eventualmente poderá vir a ter um governo que se oponha, como o nosso, às mais brutais medidas austeritárias. A grande questão é a dimensão da economia espanhola que fará subir e trazer para outro patamar a discusão sobre um atabalhoado Tratado Orçamental, onde se impôs o conceito de défice estrutural, um conceito abstracto e artificial,  que se adicionou ao Pacto de Estabilidade e Crescimento em tempo e favorecendo a desrelugação dos mercados, em benefício da especulação financeira, submetendo as políticas públicas aos interesses privados, esmagando as políticas económicas do sul com a ortodoxia económica do norte.

Portugal é uma economia fraca e com menos peso político. Mas tem os mesmos direitos de qualquer outro país da UE. É um país soberano e a sua dignidade não pode ser enxovalhada. Foi isso que os governos do PSD-CDS nunca fizeram no debate político com as instituições europeias em todos os níveis. Ir e vir com a bandeira na lapela não tem significado algum quando não se defende o país e se passa a vida de cerviz pelo chão, garantindo lá fora o que negavam cá dentro, caso das medidas económicas que eram temporárias ou definitivas conforme os cenários e os interlocutores, gabarolando-se de fazer mais do que lhe exigiam, quando o que lhe exigiam já era bárbaro

O terrorismo verbal em curso arranca de uma vigarice intelectual. Nada que os constranga. O país tem que pagar o que deve arengam, como se as dívidas dos países não fossem renogociáveis e resstruturáveis. Basta olhar para os EUA, a sua gigantesca dívida, o modo, até muito pouco ortodoxo, como a negoceiam e financiam desde que, em 1971, Nixon rompeu o acordo de Bretton Woods, recusando resgatar dólares por ouro, porque não tinha ouro suficiente para entregar e num golpe contabilistico reduziu em 35% a dívida pública dos EUA. Claro que os EUA, são um gigante económico-financeiro, mas abriram um precedente seguido por muitos outros países. As nossas cassandras querem nos fazer acreditar que as dívidas dos países são equivalentes às dívidas domésticas, não distinguindo também entre credores. Pouco lhes importa se esses credores são usurários e especuladores navegando nas ondas dos mercados. É a jacobinice em estado quase puro.

O terrorismo verbal em curso, do não estraguem o que fizemos às tiradas telenoveiras da Cristas, do que se lê, ouve e vê na comunicação social tem que ser activamente combatido. Portugal não pode estar à mercê desses  doutores fonsecas &burnay jihadistas de fato às riscas que fazem atentados com bombas virtuais que tiveram e podem vir a ter consequências devastadoras. Tentam dinamitar o diálogo do governo de centro-esquerda, que procura melhorar razoavelmente a vida dos portugueses no quadro dos tratados europeus, com uma Comissão Europeia, dominada por uma ortodoxia de centro-direita, num momento em que está em curso na Europa, ainda que de forma não muito assertiva, a discussão  sobre essa ortodoxia e os efeitos nefastos da estrita aplicação do Tratado Orçamental.

Não se pode ceder a essa chantagem! É Portugal, são os portugueses que estão em causa. É o nosso futuro colectivo que não pode ser uma miragem.

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EMBUSTES

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Por causa das próximas eleições e da organização dos debates na comunicação social, na ordem do dia os critérios editoriais. Paralelamente há lances ridículos como o argumentário do CDS preocupadíssimo com o eclipse do seu querido líder que, sendo número dois de uma coligação, fica afastado das pantalhas. Uma injustiça para quem, apesar das rugas que se acumulam nos tiques e tornam mais evidentes e penosos os vícios, todos os dias se olha ao espelho e pergunta: espelho meu, espelho meu, há político mais esperto que eu? Há político que salte melhor ao eixo sobre a verdade que eu?

Pormenores que empurram para zonas de sombra os debates sobre os formatos dos debates na comunicação social entre partidos políticos, debates  dominados pelos critérios editoriais, o grande embuste dos media ditos independentes e de referência. Qualquer quadro superior de uma empresa é da total confiança dos accionistas principais, dos donos das empresas. Pela mão não se sabe de que deus menor, os directores e editores dos meios de comunicação social consideram-se possuidores de um poder que os torna imunes aos interesses económicos dos seus patrões. Estão a mentir, Mentem, com a convicção dos grandes mentirosos capazes de negar tudo, mesmo as próprias evidências. A Negação de Pedro é uma história infantil comparada com as negações da realidade feita por essa gente. Por tudo e por nada brandem a bandeira dos critérios editoriais que são critérios única e exclusivamente orientados pela caça ao mercado e pela subserviência mais contumaz às directivas do capital.

Se dúvidas existissem basta fazer uma estatística cega das notícias, tempos e dimensão que cada um dos órgãos de comunicação social concede aos partidos, aos líderes partidários. Analisados os conteúdos a miséria ética dos campeões dos critérios editoriais é guilhotinada sem dó nem piedade. Assim se percebe o incómodo causado pelo último livro de Umberto Eco Número Zero, sobre o mau jornalismo “Escolhi o pior caso. Quis dar uma imagem grotesca do mundo, ainda que o mecanismo da máquina para sujar, de lançar insinuações, já fosse usado durante a Inquisição“. O pano de fundo desse mau jornalismo, no livro levado aos limites mais grotescos, é o do jornalismo mercenário generalizado que corre mundo, não dando a imagem real desse mundo. Constroem uma imagem que o procura perpetuar justificando as suas acções, das mais bárbaras às mais persuasivas. Procuram demonstrar que o motor que o faz funcionar pode ter defeitos, falhas mas é o único motor possível. As críticas, as denúncias, por vezes inflamadas, dos escândalos políticos, económicos, sociais são instrumentais. Fazem parte de um jogo em que se compra credibilidade para continuar a generalizada intoxicação. Tal como ainda são necessários e indispensáveis jornalistas e comentadores de estatura e seriedade intelectual. Compulsar o seu desaparecimento progressivo dos órgãos de comunicação social nas últimas décadas elucida como a degradação alastra.

Grécia, Ucrânia, Médio Oriente, Europa, os desastres humanitários, as crises económica mundial, as artes e as letras, o desporto, a chamada Lifestyle, tudo o mais que flutua nesse caldo de cultura, são temas passados pelo crivo dos critérios editoriais que os trata e maltrata, banaliza como coisas naturais, passíveis de correcções de pormenor nunca de fundo. Que as tratam e maltratam na construção de um imaginário que quer impor uma visão  unilateral, uma visão pós-moderna do mundo, em que a ideia moderna de uma racionalidade global da vida social e pessoal se desintegrou numa miríade de mini-racionalidades ao serviço de uma inabarcável e incontrolável irracionalidade, como diz um dos seus próceres, só não concluindo como devia que essas mini-racionalidades ao serviço de uma inabarcável e incontrolável irracionalidade são a base de uma ideologia que tem uma fé avassaladora e totalitária no neoliberalismo económico.

O objectivo final é que o mundo seja um campo de concentração, rodeado de barreiras de arame farpado materiais e imateriais, onde se encerre a dimensão humana enquanto motor de transformação e emancipação. Os fornos crematórios sempre activos para reduzirem a cinzas mesmo pensar a possibilidade de se pensar qualquer transformação significativa da forna de organização da sociedade. Parte substancial dos rolos de arame farpado, do combustível dos fornos crematórios é fornecida pela comunicação social com uso intensivo dos seus meios tradicionais e modernos, decorados com os pendões dos critérios editoriais.

O mundo atola-se nesse pântano que Peter Sloterdijk classifica de cínico por sustentadas em acções descaradas e desonestas o que as distingue do cinismo antigo de Diógenes e seus seguidores, nos quais a crítica das convenções era inseparável de uma prática coerente de recusa de compromissos: (o cinismo) na antiguidade era uma conduta de liberdade e de autonomia individual; na pós-modernidade é um conformismo cúmplice das piores baixezas. O sentir pós-moderno parece ter ficado paralisado pela discrepância entre um conhecimento lúcido e penetrante e uma imoralidade deliberada, sem freio e sem pudor.

Denunciar, desvendar os mecanismos económicos e institucionais em que se funda e afunda esse mundo pós-moderno do capitalismo neoliberal não tem comprometido a sua credibilidade. Aliás, essas desmistificações por mais sérias e credenciadas que sejam são sistematicamente remetidas para buracos onde se espera fiquem sepultadas. Esquecem-se da história mitológica do criado do Rei Midas que contou um segredo terrível sobre o seu senhor a um buraco que fez na terra e que tapou cuidadosamente. Nesse lugar cresceu um zambujal por onde a brisa passava e os bambus transmitiam o segredo aos quatro ventos. As denúncias dificilmente ultrapassam os muros, mas acabam sempre por os saltar questionando a rede de interesses económicos que domina o mercado e impõe, com indisfarçável arrogância, fedorenta ou perfumada, os seus ditames. É o triunfo do economicismo puro e simples que para Ariel Kolnai, não é repugnante, quando procede segundo uma lógica abstracta da qual a vida está excluída. Passa a ser repugnante quando se entrincheira por detrás dos valores, da ideologia, ou seja, por detrás duma afectividade enganadora e hipócrita.

A comunicação social, entrincheirada nos critérios editoriais, é uma das grandes e principais rodas dentadas desse gigantesco mecanismo que tritura o mundo em benefício do grande capital. Proclama em alta grita uma independência em que ninguém acredita, que eles próprios sabem ser um cínico e repugnante conceito. Fazem-no com a impunidade de a vigarice intelectual não ser crime previsto em nenhum Código Civil. A lei é, sempre foi, o direito do mais forte à liberdade. Não será para todo o sempre porque só a verdade é revolucionaria. Há que lutar por ela com todas as armas ao seu alcance.  O mundo apodrece, não se espere que caia.

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