40 Anos do 25 de Abril, Artes, Casa Museu Jorge Vieira, Cultura, Desenho, Escultura, Gravura, Jorge Vieira

Arte como Forma de Intervenção Política na Obra de Jorge Vieira

Jorge Vieira

Dia 16 de Dezembro Jorge Vieira, se fosse vivo, faria 92 anos. A Casa Museu Jorge Vieira, em Beja, inaugura uma exposição que assinala essa data e, simultaneamente, encerra um ciclo de exposições comemoratyivas dos 40 anos do 25 de Abril. A exposição, organizada pela escultura Noémia Cruz, tem por tema A Arte como Forma de Intervenção Política na Obra de Jorge Vieira. Honrou-me com o pedido dfe um texto para o catálogo, em nome da nossa grande e extensa amizade. O prazer seria imenso e total se ao entrar na Casa Museu Jorge Vieira, lhe desse um abraço como tantas vezes aconteceu. Ao Jorge e à Noemia ergo o meu copo transbordante de boas memórias.

Monumento ao Preso Político Desconhecido, Jorge Vieira

JORGE VIEIRA
A ARTE SEM LEI DA GRAVIDADE

Nos anos 60, numa reunião da associação de curadores dos EUA, nas conclusões finais fizeram esta declaração: “Não compramos arte que se reporte a política, sexo e religião”. De uma penada, atiravam para o lixo uma interminável lista de séculos de obras primas da pintura e escultura.

Essa gente tinha e tem forte poder económico.. São mediadores de grandes compradores num dos maiores mercados de arte o que, nos tempos que correm, constrói o gosto dominante medido pela bitola das variáveis da bolsa

A consigna não tinha nada de inocente. Inscrevia-se na guerra fria cultural, com a organização, não declarada, de uma espécie de NATO das artes.(*) Procurava, procura firmar o axioma da absolutização e exclusividade da criatividade formal. Uma cruzada para restituir a arte à arte, liberta da ganga política, sexual e religiosa. O triunfo da pintura-pintura, da poesia-poesia,da música-música, do romance-romance, etc. Inscrevia-se, inscreve-se esse totalitarismo artístico e estético num princípio de fé burguesa que faz por esquecer, querendo-nos fazer-esquecer o que Georges Orwell escreveu: “Para sermos corrompidos pelo totalitarismo, não temos de viver num país totalitário.” .

Execravam todas as obras de fundo realista, sobretudo as que tivessem objectivos políticos e sociais, próximos ou longínquos. Colavam-lhe uma etiqueta com o aviso que, por aqueles trilhos não não seria possível produzir “arte boa”. Pois não, nem sempre seriam obras de arte maiores, tal como as obras detergentadas de qualquer carga política, religiosa ou sexual não são necessariamente “arte boa”.

Tudo isto se inscrevia e inscreve numa estratégia muitíssimo mais profunda do forte investimento do capitalismo nos bens imateriais, para travejar o estado pós-moderno. (**) O alvo é retirar à cultura a fulguração ideológica. Privatizar a utopia transformando-a numa sublime inutilidade. Oferecer à sociedade as ferramentas da alienação global, para que seja aceite voluntariamente, À arte dá-lhe a saída dos formalismos, do trabalho sobre a forma e o corpo, que, não por acaso, acaba sempre por cumprir o destino histórico: da utilização publicitária da forma.

A meta é integrar a arte no processo de imposição de uma nova ordem económica que tem por fim a conquista do mundo pelos mercados. Por mega-pólos do mercado que não estarão sujeitos a controlo algum, excepto os da lógica do investimento que comandam o mundo a partir de centros de poder abstractos. Uma nova ordem fanática e totalitária que está em marcha e nos ameaça, destruindo conquistas sociais,económicas e políticas

Para essa nova ordem são de importância equivalente o controlo da produção de bens materiais e o de bens imateriais. É central a construção de um imaginário global, com os meios da cultura mediática de massas e uma arte em que mesmo a forma pode ser substituída por uma ideia, a personalidade do artista transformada numa marca garante do valor da mercadoria. Arte que não conhece fronteiras e é progressivamente empurrada para o nicho de mercado dos bens de luxo.

Que têm estes considerandos a ver com Jorge Vieira? Têm tudo!

Se procurarmos um artista em Portugal que se distanciou de qualquer lógica de mercado, que lia com ironia inteligente a crítica de arte e que provocava, sem ter isso por objectivo, os olhares e as cabeças, abrindo-as para absorverem a lucidez de que as suas obras estão impregnadas, Jorge Vieira é obviamente o artista que nos surge na linha da frente. Muitas vezes solitário por, em toda a sua vida ter sido de uma coerência e de uma persistência ímpares.

Esta exposição mostra a sua obra a que se pode intitular de política por ter sido feita com esse propósito, por encomenda do seu Partido (oh! Maldição obra por encomenda? Que perversão! Onde já se viu análogo desaforo? Sei lá, talvez Michelangelo, Rafael, Bernini, a pintarem frescos na Capela Sistina ou Giotto em Assis ou Picasso a Guernica, Rembrandt a Ronda da Noite ou…) ou encomenda que fazia a si-próprio para oferecer ao PCP e não só, com finalidades diversas.

Em que se distinguem essas obras de outras do Jorge Vieira? No tema claramente político, que como o sexo ou a religião, uma religião sem deus mas com deuses da sua mitologia muito pessoal, são temas sempre presentes na sua obra.

Tem que se sublinhar a liberdade formal que Jorge Vieira imprime em toda a sua obra o que aqui continua obviamente bem visível. Olhe-se para as foices e martelos, que se entrecruzam numa composição tão abstracta como o é “O Monumento ao Prisioneiro Político Desconhecido”. Não passaram do papel, o Jorge tem uma extensa galeria de esculturas em papel o que faz lembrar o destino da arquitectura de Piranesi que igualmente se desenrola em magnificas gravuras e desenhos que nunca foram construidos.

Ao que se apurou esta tinha dois objectivos, ser construida com uma dimensão assinalável e replicada em pequenos objectos. Imaginemos que o desenho ganhava expressão volumétrica. Seria um objecto escultórico abstracto, mesmo sendo reconhecíveis os seus elementos construtivos.

Que dizer da escultura em Almada, para comemorar os 25 anos do 25 de Abril. Três mãos saem poderosas da terra para festejar, agarrar a liberdade. Escultura pública tão significante como o Homem Sol na no Parque das Nações. Ou da pequena cabeça que é segmentada por três cortes verticais que permitem múltiplas quase infinitas composições, que fez na oportunidade da 1ª Assembleia de Artes e Letras da ORL do PCP, em 1977,

E as figuras humanas? Vão da figuração mais agarrada à realidade a toda uma outra que mergulha na inteligência estética, no sopro artístico de que estava possuído.

O que se pode extrair e concluir desta exposição é que, para Jorge Vieira, o assunto, o tema torna-se subsidiário, incorpora-se no seu trabalho com a naturalidade que só os artistas maiores conseguem, tornando fácil e óbvio o que é transcendente. Artistas maiores também por não se submeterem à férula dos axiomas, criando em liberdade e pela liberdade. Conscientes que a autonomia e liberdade artísticas inscrevem as suas leis nas leis mais gerais e universais da sociedade.

Jorge Vieira foi, pela sua vida e obra, um paradigma do artista de vanguarda que, de forma directa ou oblíqua em unidade ou conflito, estava empenhado em transformar a vida e a arte. Demonstra como a arte apesar de ser sempre intemporal e de ultrapassar os circunstancialismos em que foi criada, nega a ficção da arte pela arte, porque a arte não é pensada e concebida num satélite livre de qualquer lei, uma lua sem terra, ou medra numa ilha impossível,, porque nenhuma ilha existe se não existir um continente em relação ao qual se define.

O Jorge, este Jorge é o mesmo Jorge de sempre, a questionar e a criar com os pés bem firmados na terra.

No entanto, os seus voos escapavam, continuam a escapar às leis da gravidade.

(*)Who Paid the Piper?The CIA and the Cultural Cool War, Frances Stonor Saunders,, Granta Books, 1999

(**)Postmodernism or The Cultural Logic of Late Capitalism,Francis jameson, New Left Review 146,Jul-Ago 1984

Standard