O grupo parlamentar do CDS-PP respondeu a uma carta de um setubalense que se tem manifestado contra o alargamento do estacionamento tarifado na cidade de Setúbal proposto pela autarquia. O texto da carta foi partilhado pelo próprio num conhecido grupo do Facebook, o que nos permite perceber que a resposta dada ao munícipe é, toda ela, um refinado e falacioso exercício de oportunismo e hipocrisia.
Recorda o CDS-PP que até é a favor do estacionamento tarifado, mas só no centro da cidade, embora mais à frente se perceba que não é bem assim. O diabo está nos detalhes…
Não é de estranhar que seja a favor. Afinal foi o parceiro de coligação do CDS-PP na câmara Municipal, o PSD, que, com o PS, introduziu, há 22 anos, a obrigatoriedade de pagar pelo estacionamento em Setúbal.
Mas adiante…
O que é verdadeiramente interessante na resposta é o parágrafo respeitante ao estacionamento tarifado em novas zonas na cidade. Escreve um funcionário do grupo parlamentar do CDS-PP, mandatado pelo líder do grupo, o deputado Nuno Magalhães, que, por acaso, até foi eleito na Assembleia Municipal de Setúbal: “Tratando-se de bairros da cidade com mais de cinquenta anos, com estacionamento privativo muito diminuto e em que devem ser salvaguardados lugares para os moradores tendencialmente gratuitos para estes moradores (principalmente para a 1ª viatura), deveremos continuar a pugnar para que a câmara não leve avante a sua intenção.”
Lá está. São os detalhes que tramam tudo.
Aqui, o detalhe é a singela palavra “tendencialmente” que, no passado, já foi usada pelos partidos de direita para retirar da Constituição da República Portuguesa o direito à prestação gratuita de cuidados de saúde no Sistema Nacional de Saúde. A CRP, antes de 1989, defendia no seu artigo 36º que “o direito à protecção da saúde é realizado pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”. A partir de 1989, com a ajuda do CDS-PP, o texto mudou. A CRP passou a determinar que o direito à protecção da saúde seria realizado “através de um serviço nacional de saúde universal e geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos, tendencialmente gratuito“. E assim se abriu a porta à criação de taxas moderadoras, cujos valores atingiram, como é sabido, valores máximos no último governo em que o CDS-PP participou.
A resposta do CDS-PP é, pois, mais um gato escondido com o rabo de fora. Por um lado, garantem ser contra o estacionamento tarifado nas zonas residenciais, mas sempre vão escrevendo, para deixar ampla liberdade de escolha para futuras posições, que “devem ser salvaguardados lugares para os moradores tendencialmente gratuitos para (principalmente para a 1ª viatura)” pelo que o CDS-PP deverá “continuar a pugnar para que a câmara não leve avante a sua intenção”.
Há que reconhecer que não é fácil escrever algo tão contraditório e falacioso. Por um lado, o partido é contra — o CDS deverá “continuar a pugnar para que a câmara não leve avante a sua intenção” — mas por outro assume que até se pode vir a cobrar o estacionamento aos moradores, porque este apenas deve ser tendencialmente gratuito, ou seja, também pode ser pago. E acrescentam algo ainda mais interessante: é que esse estacionamento só deve ser tendencialmente (“principalmente“, como está no texto) gratuito para a primeira viatura, abrindo assim a porta à cobrança pelas restantes viaturas registadas na mesma habitação.
A falácia é óbvia e obscena. Mas, na verdade, não poderia o CDS-PP defender outra coisa, pois sabe que há câmaras municipais onde partilha o poder ou onde já exerceu a presidência da Câmara em que existem sistemas que cobram o estacionamento em várias zonas, nomeadamente zonas residenciais.
Melhor teria feito o CDS-PP se tivesse guardado tal carta na gaveta. Ficamos assim a saber que são contra, mas até acham que tendencialmente deve ser pago o estacionamento, excepto para a primeira viatura.
Se isto não é desonestidade…