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A Persistência da Cassete

acasseteFrancisco Seixas da Costa mantém um blogue, genérico nos temas que versa, que se lê com interesse.

Cruzamo-nos algumas vezes. Amigos meus, muito próximos, alguns desaparecidos, entre outros Bartolomeu Cid dos Santos, Fernanda Paixão dos Santos, Pedro Pedreira, incluem-se na sua vastíssima roda de amizades.

Frequento, com bastante irregularidade, o seu blogue em acordo variável com as opiniões que emite. Em franco desacordo com o que escreve quando se refere ao meu partido, o Partido Comunista Português, onde somos todos desumanos no dizer de um dos seus seguidores, o que não mereceu contradita do autor do “post” pelo que, com propriedade, deduzo que considera ajustado tal epíteto, em linha com o conteúdo do texto que provocou a dita observação. Um “post” em que a pretexto da morte de Francisco Canais Rocha, declara: “Nunca na minha vida consegui condenar alguém que, sob tortura, tivesse “falado”. Sei lá como me portaria se tivesse de suportar idênticas circunstâncias! Tenho amigos que “falaram” e outros que “não falaram” na cadeia. Não tenho menor ou mais apreço por eles, por essa razão. Acho assim miserável que o PCP nunca tivesse reabilitado este seu antigo militante. Um partido também se mede pela sua humanidade.”

Também eu nunca condenei ninguém por ter “falado” na cadeia. Quem está submetido a selváticas torturas só se estiver disposto a morrer as pode suportar até ao extremo limite. São muitos os camaradas que heroicamente ultrapassaram as violências inomináveis a que foram sujeitos. Sem essa determinação, num exemplo abstracto mas real, quem suporte a ferocidade de dez dias de tortura de sono, estátua, agressões físicas e psicológicas, chegue ao fim desse tempo resistindo, até aos verdugos desistirem, fica sem saber se na hora seguinte, na meia hora seguinte, no quarto de hora seguinte, a sua resistência não seria quebrada. Iria, numa fracção de segundo, do Capitólio para a Rocha Trapeia. Por isso, nunca condenei ninguém que “falou”, para usar a gíria em uso. Os limites da resistência humana são infinitos mas sempre desconhecidos. Honra para quem, em nenhuma circunstância, falou ou falaria, por terem a determinação que referi.

Esclarecido este ponto considero que Seixas da Costa deveria cuidar melhor do que afirma. São muitos os militantes do PCP que “falaram” e que, depois do 25 de Abril, voltaram a militar activamente no seu Partido. São muitos os militantes do PCP que “falaram”, e estão hoje no PCP, de militantes de base a dirigentes, mesmo no Comité Central, ou que foram deputados tanto na Assembleia da República como no Parlamento Europeu. São hoje bastante menos do que foram depois do 25 de Abril. Menos, unicamente pela lei da vida. Estas evidências arrasam a acusação de o PCP ter “ausência de humanidade”. O PCP diferencia-se de outros partidos onde o rancor mesquinho, de alguns dos seus mais altos dirigentes, atira à mínima divergência sem hesitações para o inferno alguns dos seus companheiros, mesmo os mais próximos, até íntimos. Seixas da Costa deveria informar-se melhor antes de incorrer em erros e emitir juízos que põem em causa a sua credibilidade.

Ao ler outros “posts” poderemos concluir que há um objectivo, mais geral. O de demonstrar, por fás e nefas, a impossibilidade de um acordo de esquerda por culpa do PCP.

Num “post” mais recente, a pretexto de um artigo do Avante! sobre a queda do Muro de Berlim, é delicioso assistir ao alinhamento do texto que vai de um paternalismo à beira da abjecção que embrulha em ternura por uns supostos saudosos de um passado próximo e por um “ PCP (que é) hoje um museu de si próprio, que deve ser conservado com todo o cuidado que sempre deve ser concedido às espécies em extinção” para concluir “que (é) um partido a quem tenho, como muitos portugueses, uma eterna dívida de gratidão pela sua inigualável e sacrificada luta para derrubar a ditadura”.

O PCP travou uma “inigualável e sacrificada luta para derrubar a ditadura” por convicção ideológica e sentido patriótico, não para os portugueses ficarem com uma dívida de gratidão. Fê-lo sabendo que muitos dos portugueses que iriam alcançar a liberdade e a democracia, beneficiando, directa e indirectamente, com essa luta o iriam vilipendiar, mesmo vilipendiar essa luta. Que muitos outros iriam trair os ideais abertos pela Revolução do 25 de Abril. Mesmo antes do 25 de Abril, por alturas da primavera marcelista, assistiu a que companheiros de estrada no combate pela liberdade e democracia, lhe virassem as costas, forma eufemística e delicada de classificar tal procedimento, para terem conversas em família com o ditador sorridente, negociando a sua participação na primavera que nunca aconteceu. Nem isso demoveu o PCP de porfiar numa linha política de procura de alianças contra o fascismo. A verdade histórica é um enorme incómodo.

Nos dias de hoje, a chatice é que o PCP, “peça de museu” ”espécie em vias de extinção”, piadolas inconsequentes a piscar o olho à claque, tem uma implantação social sólida que enfrenta há quase quarenta anos os desmandos da direita e de um PS, em que o Dinossauro Excelentíssimo, depois de já o já ter metido, anunciou, urbi et orbi, que o socialismo estava no fundo da gaveta. Assim, finalmente iluminava o caminho até aí trilhado por atalhos e no lusco-fusco, na senda, ainda que nem sempre assumida, da terceira via, numa das suas versões, tendo por referência Tony Blair, figura de proa do thatcherismo trabalhista. O PCP faz frente, desde o primeiro dia, à submissão mais execrável do PSD/CDS aos ditames do neoliberalismo mais extremado, depois de conseguirem concretizar a trave mestra do anoréxico pensamento político de Sá Carneiro, um partido, um governo, um presidente, com os resultados que se conhecem. O PS, a esse descalabro faz uma oposição balbuciante. Por vezes tonitruante na forma e frágil na prática. Deve ser o “mainstream do bom senso”, já lá iremos.

Seixas da Costa rebobina com contumácia a cassete do “PCP aliado objectivo da direita”, que empurra o bem-aventurado PS a enveredar por políticas de direita, o destino que escolheu, sem conseguir que o PCP seja a sua muleta. Conclui que isso faz o PCP “autoexcluir-se do “mainstream” do bom senso” o que para lá do lustro cosmopolita, estrangeirado do “mainstream”, significa pouco ou nada. É uma inanidade.

Interrogo-me o que será o “mainstream de bom senso”? Será, no passado próximo, não ter alinhado com o “bom senso” do eurocomunismo e dos seus émulos, Berlinguer, Marchais, Carrillo que veio animar um congresso do PS, em que Soares, o oportunismo está sempre pronto a desembestar, se gabava de estar à esquerda do PCP? Bom senso que deu no que deu em Itália, França e Espanha? Hoje, só um beócio, pode duvidar que esses países e a Europa estariam muito melhor se esses partidos não tivessem traído em toda a linha os seus princípios. Se Seixas da Costa leu “Começar pelos fins- A nova questão comunista” de Lucien Sève, que se espalhou diatopicamente para alegria de regeneradores e renovadores de todos os calibres, mais o que restava das escanzeladas alas esquerdas dos partidos socialistas, deve ter-se apercebido que, depois de lido e espremido, se conclui que o título correcto seria “Começar pelos Fins, Acabar com os Princípios”. O seu teor é o exemplo acabado do “mainstream do bom senso”. Um chorrilho de banalidades pronto-a-vestir para marxólogos que abriu as comportas à direita, desorientou muitos partidos comunistas, fortaleceu o revisionismo dos partidos socialistas e sociais-democratas.

Claro que “o mainstream do bom senso” desagua no axioma do PCP ser “o grande e principal aliado (objetivo, como a doutrina marxista classifica) da direita portuguesa”. Passando por cima do marxismo de vulgata que dá alguma cor de ciência política ao dogma, a aliança objectiva com a direita deve ser não pactuar com as sucessivas viragens à direita do PS que foram destruindo as conquistas de Abril. Deve ser não sustentar um PS que, no passado próximo, foi de PEC em PEC, com o apoio da direita, sem nunca os negociar com o PCP, e quando essa direita, antevendo a possibilidade de chegar ao poder, anuncia que vai votar contra o PEC IV, vem denunciar o PCP por não votar a favor do PEC IV. É extraordinário como se poderia esperar que o PCP que sempre votou contra os PEC’s, que nunca foi ouvido ou achado pelo PS que sempre fez orelhas moucas às propostas do PCP, votasse a favor do PEC IV e, se calhar em continuidade, fosse assinar o pacto com a troika. Quem abriu a porta e colocou a passadeira para a direita entrar foi o PS, que faz, em simultâneo, uma política aliada ou com a complacência da direita, enquanto chantageia de forma efectiva a esquerda para aceitar essa política. O que nos devemos questionar é que que sociedade, que cidadania, que ética é proposta por essa política dúplice cuja face esquerda se ancora na permanente chantagem. Que política é essa que cola o labéu de “aliado objectivo da direita” a quem não passa um cheque em branco à sua política de direita. Este argumentário, sublinhamos a traço grosso, é uma falácia bordão para apaziguar as almas que ainda se inquietam com o descaminho das políticas do PS. Uma almofada para o PS poder dormir sem sobressalto sobre as inúmeras traições que faz aos seus princípios, aos seus militantes, a todos os cidadãos que nele votam. É um emaranhado de equívocos de um oportunismo desbragado.

A sequência é a esperada e há que dizê-lo com todas as letras, é grossa vigarice intelectual e política: “na sua (do PCP) lógica imutável do “quanto pior, melhor”.

Outra cassete, velha e relha, usada por todos os que se situam à direita do PCP.

O PCP, já o demonstrou na sua longa história, não é um partido desavisado. Só um partido longe da realidade e de vistas curtas é que pode pensar que as crises abrem necessariamente mais espaço à esquerda. As lutas pelos direitos políticos e sociais não se reforçam com as crises, que alargam sempre o fosso entre ricos e pobres. Quem se reforça são os populismos de todos os matizes. Quando as crises rebentam as pessoas humanamente interrogam-se sobre o dia de amanhã. A reacção mais imediata e espontânea é o receio pelo seu futuro. Se num primeiro impacto os princípios da sociedade podem e devem ser postos em causa, a seguir regressam em força, pela mão dos agentes mais violentos do capitalismo. É o que se observa na Europa, em França, com os avanços da Frente Nacional, em Inglaterra, com os eurocépticos do UKIP, em Itália, com o Movimento 5 Estrelas, na Grécia com o Aurora Dourada. Há um recrudescimento da direita, da extrema-direita, do fascismo que floresce adubado pelo quanto pior melhor. A esquerda, em particular os comunistas, são os mais visados por essa política de choque que tem a intenção deliberada de aterrorizar os cidadãos e preparar activamente o terreno para a liberalização radical do mercado.

Só uma esquerda de fachada radical, perigosamente curta de vistas, é que pode achar que uma crise, “quanto pior melhor”, reforçará uma emancipação funda, um corte que dê uma salto em frente. Numa situação dessas até poderão estar reunidas as condições objectivas. Dificilmente estarão as subjectivas. Sem a confluência das duas nenhuma revolução é possível. O efeito é o contrário, promove populismos, xenofobias. Se Seixas da Costa tivesse lido com alguma atenção Álvaro Cunhal, talvez percebesse a enormidade da sua afirmação. Talvez, talvez, porque os muros que não se derrubam são os que estão implantados dentro das cabeças.

O que há que perceber é porque o PCP luta contra a precarização do trabalho, contra a perca de direitos políticos e sociais. Luta, porque a precarização do trabalho, dos direitos dos trabalhadores, dos direitos sociais é, também, um factor de limitação da sua capacidade de luta. Um trabalhador precário tem a sua capacidade reivindicativa fragilizada. O trabalho precário é a procura de impor uma atemorizada servidão voluntária. Um desempregado fica progressivamente desmunido e luta em primeiro lugar pela sobrevivência. O “quanto pior, melhor” serve em primeiro lugar a direita e em segunda linha o PS. O PS que, ao longo destes anos, tem estado na linha da frente da redução dos direitos dos trabalhadores. Fez sempre no governo o que, muitas vezes, a direita ainda não se tinha atrevido a fazer. Faz sabendo bem que essas políticas têm por objectivo reduzir a capacidade reivindicativa dos trabalhadores e do PCP. Mesmo agora, este governo de direita ultraliberal conta inúmeras vezes com a cumplicidade clara ou encapotada do PS, na fragilização e liquidação dos direitos dos trabalhadores. As lições de Reagan e Thacther para quebrar a espinha aos sindicatos não foram esquecidas. Não se venha com a balela de se estar a confundir o PS com o PSD ou o CDS. Não os confundo, confundimos, mas verifico, verificamos, que as políticas socialistas inúmeras vezes, confundem-se, coincidem com as políticas desses partidos. É a dura, duríssima realidade que não pode ser desmentida, nem disfarçada com embrulhos retóricos de práticas efectivas de políticas que não procuram soluções fora de uma economia de exploração e que acabam, inevitavelmente, por se degradar com ela. Com essas políticas, os valores de esquerda, de cidadania, de solidariedade acabam por ser para o PS uma farfalhada.

O “quanto pior, melhor” tem servido para a direita e a extrema-direita, colocando a vida das pessoas no fio da navalha, construírem uma narrativa de menos mas mais eficaz Estado, a engordar os mais ricos e oferecer à arraia-miúda, mesmo à classe média a mão da caridadezinha assistencialista, que se segue à terapia de choque da liberalização total do mercado, da destruição do Estado social e de todos os instrumentos económicos que lhe permitem intervir na sociedade. Estão ao serviço de um sistema parasitário assente numa burocracia financeira de práticas usurárias. Para o PS o “quanto pior, melhor” é o modo de se apresentar como um salvador dos restos. O gerente de uma gigantesca sucataria irrecuperável. A gravidade é que o PS, enquanto autor e espectador, tem participado paulatinamente na destruição do Estado político, social, económico, dando um contributo não despiciendo para o aumento do ferro-velho. Para se autojustificar diaboliza os partidos à sua esquerda, colando-lhes essa bandeira para desculpar a impossibilidade de fazer uma aliança que não desejam. Não podem querer que a esquerda se entregue nos seus braços a legitimar a sua deriva de direita.

A grande questão, a questão de fundo, é que esses partidos, PS, PSD, CDS e outros emergentes, estão cada vez mais próximos e cada vez mais esvaziados de ideologia. O percurso que tem tido o sistema democrático representativo em Portugal e na Europa, é o de uma crescente indiferenciação ideológica e programática entre os partidos ditos de esquerda e os de direita. Fazem a apologia da democracia tanto mais quanto menos a realidade partidária corresponde ao ideal democrático. Partidos que reduzem a sua acção à caça ao voto. É ver as promessas eleitorais e compará-las com as práticas governativas. Não são instrumentos ao serviço nem sequer dos seus eleitores. São braços do aparelho de Estado onde representam interesses económicos que lhes dão apoio variável. A enorme e despudorada promiscuidade entre os políticos desses partidos e os grupos económicos são a demonstração mais veraz e cabal desse facto. São organizações eleitorais que medem a sua representatividade pelos resultados da competição eleitoral. Para os actuais partidos socialistas e sociais-democratas, a democracia representativa deixou de ser o lugar da luta de classes por via pacífica, como os revisionistas fundadores proclamavam.

Podem dar-se as cambalhotas que se quiser, fazer jogos malabares de palavras e conceitos, um exercício que entretém, satisfaz os seus cultores que não conseguem sair dessa teia. O PS arranja sempre subterfúgios para não fazer alianças à sua esquerda, erguendo o punho, fazendo declarações grandiloquentes, vitimizando-se por esbarrarem com uma esquerda que exige o que eles não são, serem de esquerda, fazerem políticas de esquerda. De esquerda só nas declarações, na farandola dos discursos. Quando chega a hora da verdade, de por em prática políticas o que se tem visto e o que se vê, aqui e por essa Europa fora, é um permanente deslizar para a direita. Todos nos lembramos dos discursos de Hollande. Muito de esquerda até escolher para primeiro-ministro um militante socialista que quer adrede retirar o Socialista do nome do partido. Deve ser o resultado lógico do “mainstream de bom senso.”

Na Miséria da Filosofia, Marx escreveu que “a ideologia burguesa historiza qualquer forma social, religiosa ou cultural. Tudo é história contingente e relativa. Qualquer forma menos a sua própria existência.

Os economistas têm um singular modo de proceder. Para eles não há senão dois tipos de instituições, as artificiais e as naturais. As instituições do feudalismo são instituições artificiais, as da burguesia, são instituições naturais. Parecem-se com os teólogos que do mesmo modo definem dois géneros de religião. Qualquer religião que não seja a deles é uma invenção dos homens, ao passo que a deles tem procedência divina. Quando os economistas dizem que as relações actuais– as relações de produção burguesas – são naturais, pressupõem que são relações em que a riqueza é criada e as forças produtivas se desenvolvem de acordo com as leis da natureza. Tais relações são portanto naturais em si mesmas, independentes da influência do tempo e da história. São leis eternas pelas quais a sociedade deverá ser sempre governada. Assim a História existiu mas deixou já de existir. Houve História, uma vez que as relações feudais existiram e que nessas instituições do feudalismo encontramos relações de produção muito diferentes das da sociedade burguesa, que o economista quer fazer passar por naturais, por isso eternas”. (pág. 427 K.Marx: Misère de la Philosophie/Proudhon: Philosophie de la misère; Le monde en 10|18,1964 Union Générale d’Editions.)

Substitua Seixas da Costa, feudalismo por socialismo e este texto aplica-se aos corifeus socialistas, sociais-democratas e neoliberais que se integram nas políticas capitalistas, onde praticam o “quanto pior, melhor” Se essa não será uma boa descrição que legitima o “mainstream” de bom senso”, de que nós, comunistas, evidentemente nos excluímos sem nos excluirmos de continuar a lutar por alcançar acordos políticos, mesmo mínimos, que defendam e contribuam para políticas patrióticas e de esquerda. Colar o “quanto pior, melhor” ao PCP é de quem já não tem argumentos ou é irreversivelmente míope como aquele socialista que diz olhar para a sua esquerda e não ver nenhuma esquerda.

A extrema gravidade da situação actual é que a principal vítima da profunda crise que se vive, tudo indica se irá agravar, não ser a direita que sobre ela cavalgou para impor num curto espaço de tempo uma profunda viragem neoliberal que tem por último beneficiário essa entidade abstracta denominada mercados, trincheira onde se albergam os megapolos financeiros que querem, subtraindo-se a qualquer escrutínio, dominar o mundo impondo uma nova ordem totalitária e fanática. A principal vítima pode ser mesmo a própria esquerda se tiver a incapacidade de apresentar uma alternativa real, viável. Enquanto o PS não perceber isso, enquanto o PS, perante um cenário de crise catastrófica, insista em receitas semelhantes às da direita, mesmo que diluídas, mitigadas, travestidas, porque considera que não existem opções ao actual estado de coisas, não haverá uma política de esquerda e as alianças à sua esquerda são uma impossibilidade que ele próprio cria. Há razões para acreditar que essa é a sua convicção e que procura até mantê-las dentro do actual quadro democrático. As propostas de alteração das leis eleitorais, por mais voltas que lhes deem, procuram perpetuar a bipolarização entre os dois maiores partidos. Seria a consagração de um modelo que é um grave retrocesso político-ideológico em que a actividade partidária se reduziria completamente à conquista do voto.

A equação que Francisco Seixas da Costa, com ele socialistas das mais variegadas tendências, não consegue resolver é que as receitas socialistas ancoradas num chamado bom senso, num pragmatismo de pacotilha, são em si-mesmas um reflexo do Portugal de hoje, em ruínas pelas políticas neoliberais. O que impossibilita reconstruir a sociedade nessa base é que esse reflexo é uma sombra filigranada por esse receituário que se estende sobre a realidade. Quando essa sombra se começar a dissipar, fica à vista de todos que o corpo até aí oculto, em vez de se ter transformado, regenerado e ganho vida, como se deseja, continua a ser o corpo actual moribundo. Isto tem sido, é e será o resultado das políticas do PS, enquanto não se decidir por tomar um caminho à esquerda. Caminho efectivo, real. Não ser como aquele jogador de polo aquático da Palombella Rossa de Nanna Moreti. Olhar à esquerda, olhar à esquerda, rematar à direita. Não dizer coisas de esquerda para fazer políticas objectivamente de direita. É um ciclo vicioso e nada, mesmo nada virtuoso. Labirinto como o do rei árabe do conto de Borges “Os dois reis e os dois labirintos”. Um labirinto onde nem são precisas escadas para subir, nem portas a forçar, nem cansativas galerias a percorrer, mas onde não se encontram nem há saídas. A única saída é enveredar por uma política de esquerda. E lutar, mesmo contra todas as evidências, por uma política de alianças à esquerda, sem nenhuma exclusão.

Meu caro Francisco Seixas da Costa, hesitei muito antes de escrever este “post”. Se o meu amigo e camarada José Casanova fosse vivo ou estivesse em condições de saúde quando li o seu “post”, discutiria com ele se valeria gastar cera. Infelizmente já não posso recorrer ao seu conselho avisado. Lembrei-me de outro, também de um camarada e amigo já falecido, o Carlos Aboim Inglês que depois de uma discussão longa, muitíssimo acesa com alguém que, na sequência das turbulências e ambiguidades gerados pela queda do muro de Berlim, se demitiu do Partido, não o demovendo rematou a conversa: “Nunca, mas nunca deixes de dizer o que pensas”, repetiu com a veemência que lhe era característica.

E escrevi.

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3 thoughts on “A Persistência da Cassete

  1. Manuel Augusto Araujo diz:

    Meu caro Francisco Seixas da Costa
    Agradeço a atenção que este meu “popst” lhe mereceu. È um post longo em que não fugi ao meu estilo, Camilo lido muito cedo dizia sorrindo o Carlos Aboim Inglês no decorrer de muitas reuniões em que nos encontrámos e ao discutir alguns textos que ia, como hoje, publicando desordenadamente. Também lhe digo que, por paradoxal que pareça, como me pauto sempre por hipótese provisórias e certezas relativas, sem deixar de estar bem ancorado, acho que duas linhas só são irreversivelmente paralelas na geometria euclidiana. Estarei atento ao seu blogue que é dos poucos que, com Raposas a Sul de António Cabrita e blogOperatório do José Teófilo Duarte, leio com regularidade.
    Com um abraço de estima e consideração
    Manuel Augusto Araújo

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