autarquias, Política

Captura do voto ou da cidadania?

AprisionadoO excesso faz do remédio veneno e da virtude vício.

O proibicionismo – recurso excessivo e demagógico a normas de interdição com natureza circunstancial – quase sempre é incongruente.

Até em família pouco adianta proibir se os pais não informarem e educarem os filhos. E derem exemplo alternativo.

O Zé Manel, na sua tasca coimbrã, gozava com a hipocrisia proibicionista, colocando no balcão do seu estabelecimento, repleto de enchidos e vinha-d’alhos, improvisado aviso: É proibido pousarem moscas!

No plano político e social somos inundados com variados exemplos de atos proibicionistas hipócritas. Mas, como são “politicamente corretos”, a malta gosta.

A Lei 46/2005, de 29 de agosto, estabeleceu que o “presidente de câmara municipal e o presidente de junta de freguesia só podem ser eleitos para três mandatos consecutivos” ficando, assim, impedidos de “assumir aquelas funções durante o quadriénio imediatamente subsequente”. Podem, portanto, voltar quatro anos depois. Ou, desde logo, num outro município.

Um mandato está associado a um determinado município e não a todos[1]. Portanto, é óbvio que a lei, tal como foi escrita, não impede que haja candidaturas num outro qualquer concelho. Mas, os fundamentalistas e as organizações que não têm expressão autárquica acham que os “dinossauros” deviam ser banidos para todo o sempre.

Imaginemos um jovem de 30, homem ou mulher, que se candidate a presidente de câmara, numa lista, partidária ou não, e ganhe. Faz sentido que, aos 42 anos de idade, esteja impedido de concorrer a funções políticas? Porquê?

Os extremistas do proibicionismo não o dizem, mas, no seu fundo, está a ideia de que quem exerce funções políticas autárquicas é, com grande probabilidade, um corrupto que enriquece à medida que o tempo passa. Invocam nesse sentido a máxima anarquista segundo a qual “o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente”.

Esquecem um ou dois pormenores: há mecanismos de controlo democrático, judicial e cidadão que põe sólidos travões a essa possibilidade. Principalmente nas autarquias. Aliás, é sintomático que, entre aqueles que agora clamam pelo impedimento legal dos autarcas, estejam precisamente os maiores opositores à figura legal de controlo de enriquecimento ilícito!

Os proibicionistas mais elaborados falam na possibilidade de, há medida que o tempo passa e os mandatos se renovam, se operar uma captura de voto dos eleitores que, segundo esta teoria, ficariam prisioneiros do “cacique” em funções.

Sabe-se que há algumas figuras autárquicas cujo estilo de atuação estimula a vontade de lhes dar umas valentes bordoadas ou, pelo menos, de os criticarmos com veemência.

Outros foram mesmo apanhados nas malhas da lei devido a atos de corrupção e tráfego de influências. Contudo, se houver rigor analítico não há como não reconhecer que se trata de uma minoria que mal chega à dúzia, isto em quase quarenta anos de poder local democrático.

Mas, o oportunismo populista responde pela via especulativa: são poucos porque a maioria não é apanhada!

Insistir em confundir a árvore e a floresta, estigmatizando, desta forma, o exercício de funções políticas a nível autárquico, é a melhor forma de dar cabo da democracia e, mais grave, deixar que os grandes corruptos e traficantes de influências continuem a agir.

Devido à referida Lei, cerca de 150 autarcas municipais estão impedidos de usarem, nas próximas eleições, o seu direito constitucional a serem eleitos (art.º 50º n.º 1 da CRP). Quanto aos presidentes de junta de freguesia serão largas centenas nessas circunstâncias.

O que motivou, formalmente, esta proibição que tanta celeuma suscita?

Na proposta que o XVII Governo enviou à AR, explicava-se: era necessária uma «modernização global do sistema político», e, daí, seria fundamental prever «a limitação de mandatos dos cargos executivos». Aliás, na última revisão constitucional ficou prevista a necessidade de renovação dos titulares de funções políticas

Sócrates, sempre muito preocupado com a transparência e modernização, acrescentava que a regra da limitação deveria incluir “cargos políticos executivos, seja no âmbito central, regional e local”.

Assim, na Proposta de Lei n.º 4/X, dizia-se: “A presente lei estabelece o regime de limitação de mandatos no exercício de funções do Primeiro-Ministro, dos presidentes dos governos regionais e do mandato dos presidentes dos órgãos executivos das autarquias locais”.

Isto foi à entrada na AR. Mas, à saída, em agosto 2005, três meses depois, só foram “apanhados” os autarcas.

É isto transparente?

Mesmo argumentando que quem impediu a inclusão na lei dos líderes do governo central e regional foi o PSD, uma lei deve ser um todo coerente e se, como aconteceu, é amputada de uma parte importante, deveria ter sido retirada pelos seus autores. Mas, não foi, porque, quem sabe, seria este o resultado final visado.

Não se faz aqui apologia de cargos vitalícios ou, sequer, de ilimitadas renovações em cargos públicos. Entende-se, até, que os partidos políticos deverão ter esse princípio presente nas suas decisões.

O importante princípio da renovação, que não deveria ser apenas etária, não se consegue à força de leis e regulamentos. Quantas renovações não há por aí, através das quais se substitui gente ativa com cinquenta anos de idade, por jovens de idade já velhos no pensamento e nos métodos de atuação?

Na ação política, um jovem que pense também pela sua cabeça deverá saber merecer o seu espaço. E, é natural que uma evolução feita de forma dialética comporte alguma tensão com as gerações anteriores. O que não significa que só haja renovação com ruturas ideológicas. Poderá havê-la um contexto de evolução dinâmica, mas, só se for criticado o paternalismo político e impedidas as substituições feitas “ao colo”.

Sobretudo, é necessário ter em consideração que uma função desempenhada em consequência de um ato eleitoral, e no âmbito do exercício de liberdades, direitos e garantias fundamentais, não é uma vulgar nomeação.

A via do proibicionismo demagógico, atingindo seletivamente os autarcas, não é um bom caminho!

Conhecem-se os verdadeiros motivos: o farisaísmo dominante gosta de pregar no madeiro quem é moda crucificar. Para que a populaça, alienada, vá permitindo que nada de essencial mude nos negros e calamitosos negócios públicos.

Dizem os líderes das organizações “brancas” que militam pela “transparência” que o “clientelismo e corrupção política verificada ao nível autárquico estão associados ao monopólio de poder e discricionariedade do presidente de Câmara”. Ah! Sim!? Mas há fundamento rigoroso para o dizer? Já cansa ver tantas afirmações pseudocientíficas neste domínio.

E o Nó Górdio da corrupção e do tráfico de influências está nas autarquias? Só quem seja muito ingénuo ou distraído o poderá supor. Será nas freguesias e municípios, a grande maioria minúsculos do ponto de vista económico, que se geram e gerem os negócios de milhares de milhões de euros em mais-valias, eventualmente legais, mas sempre criminosas na perspetiva social e política? E os fabulosos lucros dos bancos e das grandes empresas monopolistas privadas apesar da crise? E a fuga ao fisco e a lavagem de dinheiro sujo?

Até no domínio do imobiliário e da urbanização só por miopia não se entende que o problema está mais acima das autarquias. No legislador político e seus escritórios de juristas ao serviço dos grandes interesses económico-financeiros que, antes e depois de 25 de abril, sempre impediram que os municípios pudessem fazer uma efetiva e programada regulação da execução urbanística. E na banca, na bolsa e nos grandes especuladores fundiários e imobiliários.

Moral da história: os presidentes de câmara e das juntas de freguesia são maus porque capturam o voto de quem neles votam.

Vai daí, capturam-se-lhes os direitos de cidadania!

Nota: Este artigo foi publicado, numa versão reduzida, no semanário Sem Mais, no dia 9 de fevereio


[1] O deputado António Filipe, entretanto, e muito bem, falou sobre isto no parlamento.

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2 thoughts on “Captura do voto ou da cidadania?

  1. Guilherme Luis Faria Cancio Martins diz:

    Um distinto mestre de scienc po ensinou-me que a experiencia mostra que os gestores da coisa publica no primeiro ano prrseguem os objectivos da organizacao, no segundo ano surgem os objectivos pessosis, no trrceiro ano so ficam os pessoais, no quarto ano confundem-se contas. Boa regra, nao ha mandatos de mais de 4 anos

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  2. joaquim jose diz:

    Bom, na verdade pelo que está exposto, é caricato o que a dita lei restringe,mas tambem será verdade que a o chico espertismo dos que querem continuar a mandar em qualquer coisa é evidente,não interessa se fôr a 20 ou 200 e mesmo 20000 km querem é ter em mãos alguma coisa…mesmo que tenham deixado de rasto as finanças onde exerceram o poder.Para alguns deles, a gestão danosa que dinaussoricamente cultivaram, seria o suficiente para calçarem as pantufas
    bem recheadas da reforma que se calhar, ainda se vai prolongar como adm. executivo ou não numa associação municipal do Alto ou baixo quaquer coisa.
    Se fosse por mérito de uma boa gestão,talvez se ingerisse tal chico espertismo.

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