Media, Política

A “CAIXA”

O jornalismo tornou-se uma profissão deletéria. Correm atrás do supérfluo. A investigação é um território longínquo delimitado por interesses espúrios. Os jornalistas comissionados para o trabalho de mediar programas em que as realidades são sujeitas a uma suposta análise, entregam-se à missão de protegerem o pensamento dominante, armados de perguntas e ideias pequenas e formatadas, reduzindo-se a realçar o que é dito e redito pelas vesgas luminárias que andam a animar e enganar a malta, com invisíveis marcadores fluorescentes, não vá o diabo tecê-las e o dono não gostar da voz. Não o fazem por calaceira. Fazem-no por incapacidade que o espírito de sobrevivência acentuou. É um clima insalubre.

Há excepções? Claro que há excepções. O que inquieta é as excepções serem cada vez mais raras. Tão raras que estamos sempre à espera de as ver tragadas na próxima lauda, como vai paulatinamente acontecendo aos opinadores que não estão aprisionados nas celas mentais do neo-liberalismo.

O “zapping” pelas televisões no dia da assinatura do acordo político PSD-CSD é exemplar do estado da arte. Dezenas de jornalistas, empurrados pelas portas da sala, que tanto entreabriam como fechavam, iam fazendo notas de reportagem. O adjectivo histórico abanava a cada quinze segundos os ecrãs dos canais televisivos. O éter radiofónico. Advinhava-se nos textos dos jornais, quiçá mesmo nos títulos.O ridículo não mata! Como não há jornalismo substantivo nada como recorrer à adjectivação hiperbólica e oca. O nervosismo transmitia-se pelas ondas hertzianas ameaçando tornar-se um incontornável tsunami. Decepção total quando perceberam que não iam ver Passos e Portas a rabiscar a assinatura no acordo. Sobretudo não iriam ver, registar e noticiar urbi et orbi que Passos usava caneta de marca e Portas, sempre dado a encenações que fazem corar de inveja os las férias, sacava de esferográfica Bic (passe a publicidade), empunhando-a como o Rei Artur empunhava a Excalibur, para iluminar o acordo piscando o olho aos circunstantes para que não perdessem o número de o ver entrar a correr austeridade dentro. Negado o acesso a esse facto jornalístico relevante, de alma dilacerada, afinavam os neurónios para inferir, nas linhas e entrelinhas, se o desiderato de dez ministros nem mais um se cumpria, condecorando a lapela do Coelho. Coisa magna que os ocupava desde o dia das eleições.

Nos entremezes, não havendo nada ou havendo pouco para dizer, antes ou depois das trocas de galhardetes entre os capitães das equipas, um(a) jornalista saca nota de reportagem notável da evidência irrelevante de a sala estar decorada com 6 bandeiras portuguesas. Para mal dele ou dela, este jornalismo castrado é uni sexo, deixava escapar o que poderia ser a “caixa” do ano.

6 bandeiras portuguesas, por detrás de Passos e Portas de sorrisos estanhados trocando papéis, acolitados cada um por três puxa-sacos da sua maioria das mudanças, 3+3 = 6. Tinham-se esquecido de contar o número de vezes que as portas tinham ameaçado abrir para logo se fechar: 6 vezes!

666 o número da Besta! A Besta da Austeridade que a troika (3) estrangeira acertou com a troika (3) portuguesa. Outra vez o 6! A Besta anunciava-se e ninguém tinha dado por ela. Ninguém é uma maneira de dizer empunhando a rasoira dessa gente. Houve gente honrada que recusou a arena do circo.

Não houve um jornalista, um que agarrasse “caixa” à sua medida, à medida do jornalismo raso. “Caixa” ainda melhor que aquela notícia da reunião da CEE, em que participavam ministros da Administração Interna, em que o que seria discutido foi sepultado pelos comentários do ministro Rui Pereira sobre as gajas boas que iam no séquito Sarkozy.

Isto sim! Isto é que é jornalismo! Isto é que são jornalistas que não deixam escapar coisas significativas para as mastigar e transformar em notícia. Alguém se lembra do que foi tratado nessa reunião da CEE? Talvez um marado coca-bichinhos, mas todos se lembram das gajas boas, mesmo sem as terem visto!

Estão tão viciados a surfar pelos acontecimentos que já nem se apercebem do que está para lá das finas folhas de papel de cenário. Amarram-se a um pormenor do arbusto que tapa a floresta. Perderam tanta capacidade de discernimento que não viram a Besta passar à frente dos seus olhos. Lá se perdeu uma “caixa” e a oportunidade de ser besuntado pelo elogio dos patrões que exibiriam esse facto para abrilhantar a palha dos noticiários, ganhando uns pontos no “share”.

Apesar dessas falhas jornalísticas graves, Portugal, a maioria de Portugal, 80% de Portugal, vai continuar a fazer “zapping” pelas notícias para ficar tontamente embalado, enquanto continuam a meter mão nos bolsos para os esvaziar completamente.

A Besta anda à solta espalhando as receitas que perversamente continuam a arruinar o país e nos vão lixar a vida. É alimentada à tripa forra pelos velhos e novos-ricos que vivem à sua sombra, conduz à rédea curta uma classe política subserviente esvaziada de pensamento ou projecto, despeja ideias curtas num jornalismo estipendiado para divulgar as suas bulas, passeia-se entre sonâmbulos que se arrastam na letargia deixando-se cavalgar.

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4 thoughts on “A “CAIXA”

  1. Carlos Alberto SantosPinho diz:

    Que bem descreveste a triste situação do nosso “jornalismo”. Só não sei o que tem mais peso.: Se a necessidade de sobrevivência se a incapacidade. Ao fim e ao cabo, pouco importa.

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