Cultura, Geral

A genialidade de Jorge de Sena

Ontem. em Setúbal onde não acontece nada de nada ( aleixo dixit ) na Biblioteca Municipal realizou-se uma sessão de cinema com Sinais de Fogo um filme de Luís Filipe Rocha, sobre o romance de Jorge de Sena, um dos maiores romances da literatura portuguesa. No fim Luís Filipe Rocha dialogou com os assistentes, bastante menos dos que poderiam estar. Se calhar andavam com o aleixo à caça de acontecimentos culturais. Vidas…

Foi uma conversa interessantíssima sobre cinema, escritores, o filme que tinha sido exibido, a vida que é o que acaba por estar sempre presente.

Vim de boleia com o Luís, e do muito que falámos Jorge de Sena  e da relação que com ele, o Luís Filipe Rocha tinha iniciado e mantido há muitos anos, muito antes de fazer o filme, que o Jorge de Sena nunca viu. Admirando toda a sua extensa obra, a excelência da poesia, qualquer que seja o tema ou a métrica usada, foi amplamente referida.

Em volta dessa conversa, não resisti,  fui buscar um dos livros do Jorge de Sena, Poesia I, edição da Morais, que desde 1960 (como o tempo passa!) que sempre me tem acompanhado. Vai-se desconjuntando sem perder uma folha.

Seis poemas das “Evidências” ( propositadamente sem selecção, seguem a sequência numérica) são a evidência da genialidade de Sena, escrevendo dos melhores poemas de amor e eróticos em língua portuguesa.

V

Na antiga e fácil pátria da amargura / com qual quais chegam vossas vozes vão /

quebrando as ondas minha voz mais pura / só de ter visto o mesmo coração //

que como exílio fora não perdura, / eis-me silêncio arrebatado e não /

nenhuma ausência ou extrema formosura / de um Deus que volta em pompa e escuridão. // Desnudo e em sangue, ai que não volta: existe / suspenso a vosso lado, e o duplo sexo / goteja embora no pudor perplexo / com que O não vedes na paisagem triste. //

Eis-me que apenas me roubais quem sois: / se Deus deseja é desejar por dois.

20-2-1954

VI

Ambígua identidade, incauto amor / que o vento esculpe em pedras do deserto /

como as que, vagas, pelo mar incerto / o mesmo vento aos areais conduz; //

serena insaciedade, ausente ardor, / limiar a que a não-vida a descoberto /

assoma viva qual se fora perto / a fímbria clara exposta a contra-luz; //

marcado e repetido, ou imperceptível / e como que perene, o suceder /

das coisas, cujo ser é noutras ser / a forma contornada e previsível; //

— demoram-se as estátuas, / e quebradas serão tristeza de outras não talhadas.

21-2-1954

vn

Atentos sobre a terra ao que sem nós / connosco é o movimento em que levados /

vamos criando qual somos criados / na recessão dos mundos fugitivos, //

é nossa a luz que vemos, nossa a voz / com que a dizemos de astros apagados,/

é nossa a carne com que estamos vivos, / e é dela a só ternura que abraçados //

connosco esquece a distinção das cousas. / Humano escutarás, único vais //

na numerosa multidão esquecida. / ímpio de ti, as juras e não ousas/

que teus vivos desejos se ergam tais / como em ti próprio aguarda uma outra vida.

22-2-1954

VIII

Amo-te muito, meu amor, e tanto /  que, ao ter-te, amo-te mais, e mais ainda

depois de ter-te, meu amor. Não finda / com o próprio amor o amor do teu encanto.

Que encanto é o teu? Se continua enquanto / sofro a traição dos que, viscosos, prendem / por uma paz da guerra a que se vendem, / a pura liberdade do meu canto, //

um cântico da terra e do seu povo, / nesta invenção da humanidade inteira /

que a cada instante há que inventar de novo,//

tão quase é coisa ou sucessão que passa… / Que encanto é o teu? Deitado à tua beira, /

sei que se rasga, eterno, o véu da Graça.

22-2-1954

IX

Com a mão brincando asm virtude ou vicio, / o sexo antes do sexo pressentindo, /

conhecem-se as crianças, que, dormindo, / irão morrendo em sexo e juventude. //

Da vã cidade o pálido bulício / em sonhos se dilui. Sombras sorrindo /

afastam-se, crianças conduzindo / à virgindade ansiosa, austera e rude.//

Pelas esquinas, no limiar da terra, / lá onde os sóis os prados ainda rasam /

e as ervas vibram num tremor obscuro, / /

nocturno o espaço os milhares de olhos cerra, / sombras serão as crianças que se atrasam, / e a Graça, alheada, é o gesto ainda futuro.

26-2-1954

X 

Rígidos seios de redondas, brancas,  / frágeis e frescas inserções macias,/

cinturas, coxas rodeando as ancas / em que se esconde o corredor dos dias;//

torsos de finas, penugentas, frias, / enxutas linhas que nos rins se prendem,/

sexos, testículos, que inertes pendem / de hirsutas liras, longas e vazias //

da crepitante música tangida, / húmida e tersa, na sangrenta lida /

que a inflada ponta penetrante trila; //

dedos e nádegas, e pernas, dentes. / Assim, no jeito infiel de adolescentes, /

a carne espera, inorarta, mas tranquila.

27-2-1954

in EVIDÊNCIAS

Jorge de Sena era também um poeta atento ao seu tempo e á sua pátria, mesmo vivendo contra vontade, fora de Portugal. Há mais de trinta anos escreveu um poema que mantém uma enorme actualidade. Ouçam-no dito, muito bem dito, por Mário Viegas

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12 thoughts on “A genialidade de Jorge de Sena

  1. Manuel Augusto Araujo diz:

    Oh! Fernando Casaca sentas-te a pensar um pouco e o que sai é:
    Ora vejamos. Que culpa têm Freud, Jung, Piaget, Einstein de terem nascido e, por conseguinte, vivido depois de Marx? Não ancoraram as suas ideias e descobertas nas ideias e descobertas de Marx. Bem, estou a chegar a algum lado. Vou rotulá-los e riscá-los do meu universo, apenas, para ser marxista e/ou marxiano? Não acredito que o faças! Mas ser “anti”-idealista é uma “ideia” com a qual não viveria sossegado.
    Claro que não o faço, porque se o fizesse estaria a aplainar o pensamento até ficar fininho e linear como o que escreveste. Nasceram depois? E os que nasceram antes? Achas que, só para dar um exemplo, as Cartas Lucílio do Séneca algum dia irão abandonar a minha cabeceira? Assim não chegas a lado nenhum, mesmo com os rótulos metidos na gaveta. O que dizes é tão redutor que se poderia concluir que o pensamento de Marx surgiu como um big-bang e que a seguir se reduz ao que Marx escreveu. É não perceber de todo que o pensamento filosófico se desenvolve transversalmente e verticalmente, que há momentos fortes e fortemente irradiantes que influenciam todo o pensamento, mesmo se esse pensamento não se inscreva na sua matriz. Mais, as suas ideias centrais são tão válidas que continuam válidas mesmo quando as circunstâncias políticas, económicas e sociais se alteram substancialmente. A actualidade do pensamento de Marx ou de outros, também é construída pelo pensamento que se produz subsequentemente, dentro ou fora da sua matriz e até lateralmente. Daí o ter referido marxistas e marxianos, para usar linguagem normalizada.
    È por isso que me sinto confortável e sossegado a combater as correntes idealistas e não só. É mesmo uma exigência na procura de rigor de pensamento. A não ser que quando falamos de idealismo estejamos a falar de coisas completamente diversas, que tenhas entendido idealista na acepção vulgar, comum, do género o rapaz é um idealista e deu com os burrinhos na água atropelado pelo pragmatismo.
    Saltando ao eixo sobre o resto de teu texto, não adianta nem atrasa ao que foi dito, não posso deixar de fazer um reparo aos períodos iniciais.
    Discutir coisas “reais” é o caminho mais rápido para não se definir uma política cultural consistente e andar à caça do que apelidei de sacações.
    Quanto ao perceber os meus constrangimentos. Muito apreciei o teu gesto, nada de considerar que seria da tua parte “ deselegante e desonesto”. Tinha-o entendido com um gesto cavalheiresco retribuindo o meu de não emitir juízos sobre o teu trabalho artístico, reconhecido ou não pela DGA.

    ADENDA para a MISÉRIA INTELECTUAL VIGENTE
    Sobre o Jorge de Sena o que tens a dizer é aquilo é pouco, muito poucochinho e lá iremos, mas antes vou-te relatar dois acontecimentos, o primeiro já foi referido por um dos intervenientes numa crónica que tinha no Mil Folhas.
    1- Sessão no Teatro Viriato, Viseu. Viagem pelas ruelas de Viseu histórica. Noite de lua cheia. Uma colorida comitiva. Na frente, entre outros, o Jorge Silva Melo que de repente e teatralmente grita: aqui e com esta luz se percebem os amores de Teresa e Simão. A comitiva foi atravessada pela perplexidade. Ficámos aterrorizados, a gente que nos seguia era maioritariamente constituída por mestrandos e doutorandos em literatura. Não tinham percebido nada da exaltação do Silva Melo. Camilo Castelo Branco conheciam-no de nome. na melhor das hipóteses já o tinham citado sem o ler, Simão e Teresa eram personagens sem território. Um horror!
    2- Como sabes Helena Serôdio, professora da Faculdade de Letras muito dedicada ao teatro, é minha amiga. Por via dessa amizade veio a Setúbal nas Comemorações do Dia Mundial do Teatro. Ouvindo em várias ocasiões e lugares intervenções de protagonistas da actividade teatral, alguns com créditos universitários, interroguei-a sobre a miséria intelectual de detentores de mestrados e doutoramentos. A resposta foi devastadora, a maior parte daquelas resmas de papel não valiam nada, havia notações que ultrapassavam o rigor intelectual, por isso, digo eu, assim se legitima a mediocridade.
    Ainda no outro dia assisti, fui convidado a assistir, a um doutoramento na Faculdade de Arquitectura. A tese era estarrecedora. Nota final Muito Bom. Conhecia três membros do júri que se limitaram a sorrir, com as questões que lhes coloquei.
    Não estou fora deste mundo. tenho feito parte de um júri de atribuição de bolsas com a duração de uma ano. ainda me inquieto com injustiças que terei cometido nos últimos seis anos que talvez não cometesse se fosse mais peremptório e, por vezes, não me tivesse limitado a uma declaração de voto para acalmar os meus sobressaltos.

    ADENDA EM LOUVOR DE JORGE DE SENA
    Se calhar, alguns leitores do blogue, teriam a mesma atitude pequena e contemporizadora que tiveste ao escrever sobre o Jorge de Sena “Quanto ao Jorge de Sena, recordo o seu sentimento de tristeza por ter de viver longe do seu país – que não soube acolhê-lo como merecia.” Para que nos leitores do blogue não fiquem equívocos sobre o Jorge de Sena e a sua relação com Portugal aqui vai um poema que desfaz a imagem miserabilista que poderia ser percepcionada no que escreveste.

    Camões dirige-se aos seus contemporâneos

    Podereis roubar-me tudo:
    as ideias, as palavras, as imagens,
    e também as metáforas, os temas, os motivos,
    os símbolos, e a primazia
    nas dores sofridas de uma língua nova,
    no entendimento de outros, na coragem
    de combater, julgar, de penetrar
    em recessos de amor para que sois castrados.
    E podereis depois não me citar,
    suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
    outros ladrões mais felizes.
    Não importa nada: que o castigo
    será terrível. Não só quando
    vossos netos não souberem já quem sois
    terão de me saber melhor ainda
    do que fingis que não sabeis,
    como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
    reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
    tido por meu, contado como meu,
    até mesmo aquele pouco e miserável
    que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
    Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
    Que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
    Para passar por meu. E para os outros ladrões,
    Iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo

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  2. manuel augusto diz:

    Meu caro Fernando Casaca
    O meu silêncio até agora tem um motivo de sentido único: desabou-me uma série de trabalhos que me obrigam a uma velocidade e diversidade de temáticas, uma ocupação de tempo que eram bons quando tinha menos vinte anos. Agora pesa-me, enterra-me os pés em terra para me lembrar da idade que já percorri. Apesar disso, numa curta aberta, escrevi aquele “post” sobre o Jorge de Sena, cujo objectivo central era referir o Jorge de Sena que está na primeira linha do meu panteão de poetas contemporâneos (séc. XX), já agora acompanhado pelo Pessoa (não todo e nem todos os heterónimos) – sem Cesário Verde e Camilo Pessanha provavelmente o Pessoa seria outro Pessoa – Cesariny, Sophia, Luiza Neto Jorge, Carlos Oliveira, Herberto Helder e Manuel Gusmão. Depois há muitos, muitos outros.
    Aproveitei isso com o balanço dado com a exibição do filme Sinais de Fogo, do Luís Filipe Rocha. A história está sintetizada no “post”, o núcleo foi o Jorge de Sena. De passagem não resisti a dar uma bicada no Aleixo que, dedicando-se ao cinema e tendo escrito aquele texto no Sul, estava duplamente ausente: por estar ligado ao cinema e por ter escrito o que escreveu. Se a breve referência tu consideras um contra-ataque “ a opiniões sem qualquer interesse e/ou impacto na vida e na acção cultural da cidade” embora mais ´frente digas “ que não estou de acordo com aquela opinião e. contudo, estou absolutamente solidário com o seu autor”. Não vês nenhum paradoxo porque “ a referida opinião é, apenas, mais um comentário à acção dos responsáveis políticos da nossa praça”. Isto é que não vou, nem irei comentar, mas em que devias reflectir.
    Tens razão numa coisa que acabas por não expressar completamente: há uma ausência de política cultural. Mas esse é um mal nacional e mesmo internacional no contexto pós-moderno e vivendo-se a cultura como um contínuo de sacações, umas mais conseguidas outras completamente falhadas. Em Portugal há um problema geral, do Estado às Autarquias, a falta de meios económicos. Já o disse repetidamente em textos e noutros fóruns, não pode existir uma política cultural coerente sem um suporte económico considerável e sustentado. Fazem-se coisas, não se prossegue uma política cultural que não é uma política de apoio às artes. Esse outro tremendo equívoco. Na produção cultural de uma política cultural, algumas das obras serão arte. Do muito que se diz e escreve este axioma está ausente e os criadores artísticos, independentemente do que produzem e da sua qualidade, esquecem-no contumazmente.
    O objectivo de uma política cultural é criar hábitos de fruição cultural regular com a consequência óbvia e natural de ampliar públicos, originar uma maior capacidade crítica, tanto quantitativa como qualitativa, aumentar os padrões de exigência tanto de produtores como de consumidores, contrariar os efeitos nefastos da generalizada oferta de entretenimento que não exige reflexão, nem sintoniza sentimentos e se afunda num perverso gosto homogeneizado e acéfalo que atira para a fornalha da iliteracia global um maior número de pessoas que por via da exclusão cultural, fenómeno inquietantemente crescente, ficam cada vez mais incapacitadas e afastadas da possibilidade de possuírem ferramentas para exercerem os seus direitos de cidadania. Situação que nos preocupa por consideramos que a cultura não é um empilhamento cego de conhecimentos, nem um exercício elitista de distinção social, nem a lapidação de um suposto gosto. A cultura é parcela importante e activa do exercício democrático da participação cidadã, contribuindo para a consolidação dos instrumentos que ensinam a perceber e a intervir no mundo.
    Teremos muito que pedalar para conseguir estabelecer o travejamento de uma política cultural com um largo e claro horizonte.
    Um interessante debate? Interessantíssimo sem dúvida, mas que não se faz com muitas destas conversas da varanda para a rua, de que fui involuntariamente espoleta, mas culpado por não resistir a arrancar o ferrão. Pequeno, miserabilista, vulgar, mas ferrão.
    Deixa-me que te diga que subscrevo inteiramente o que o Paulo Anjos escreveu e que reforce a ideia de aqui na Praça do Bocage não somos porta-voz de ninguém, pelo que não deixo de acrescentar uma nota. Se tens lido a Praça do Bocage o teu desafio pra sairmos de vez em quando da Praça Bocage não faz qualquer sentido. Pelo contrário, poderias era acusar-nos de excesso de cosmopolitismo e de viajarmos por demais fora das ruas setubalenses, o que me parece muito saudável.
    A propósito, no meio disto tudo o Jorge de Sena foi atirado para a condição de absoluto fantasma. Terá existido? Passou por Setúbal?

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    • Fernando Casaca diz:

      Pois é, Manuel Araújo, quando temos demasiado trabalho não conseguimos ler correctamente, não há tempo nem paciência. Mas eu sou insistente. Sou-o,sobretudo, pelo respeito intelectual que nutro por ti. Não vou, no entanto, comentar (nem tentar desmentir) a “salada” que fazes com as minhas palavras – ao fazê-lo arriscava-me a cometer erros de avaliação como aqueles que li no teu comentário. Não te tenho em tão má conta… Mas devo dizer-te que justificar as nossas (insisto mesmo neste ponto: as nossas) falhas com o contexto nacional (ou internacional, como outros fazem) não basta. Lembra-me mesmo certo “socratismo”, na sua estratégia de se desculpar e de auto-vitimização. Referes a ausência de política cultural e a escassez dos meios económicos disponíveis. Estás melhor colocado que eu para dizer se há ou não política cultural, na iniciativa da autarquia onde desempenhas funções de assessor – exactamente, na área da Cultura. Eu não vou tão longe… Creio que, ao nível local, existe falta de investimento concertado no sector – em tempo para pensar e discutir com os agentes, os animadores e os dirigentes, em recursos técnicos e financeiros, numa mais eficiente optimização dos recursos humanos. Quanto aos meios económicos, creio que o problema está sobretudo na distribuição da riqueza e não em ideias fascizantes de pobreza estrutural. Já desenvolvi uma boa parte desta ideia noutro comentário, pelo que não vou repetir-me. Julgo, contudo, que devo referir uma das iniciativas que não consigo justificar, a não ser por via da necessidade de “entreter” populações e garantir (?) entradas de tesouraria: a “Golfinhoparade”. Trata-se de uma iniciativa no âmbito da arte pública. Interessante!? Mas ao que parece trata-se de uma opção (que se apresenta em que plano, estratégico ou pontual?), ao que tudo indica, feita em detrimento de projectos que obtiveram claro reconhecimento público (esses, sim, constantes em planos de desenvolvimento local, e de dimensão nacional). Desinteressante! Esta “política” corresponde certamente aos “sacações” de que falas, mas não deixa de ser política porque tem consequências nas nossas vidas. Ou talvez corresponda ao teu conceito de política cultural, cujo objectivo “é criar hábitos de fruição cultural…”. A esta ideia eu digo não, porque ela é redutora. As políticas culturais visam proporcionar o progresso, que passa pela ampliação qualitativa e quantitativa dos públicos, mas não pode esquecer a criação artística. Esta é o sangue que dá vida e alimenta os públicos, um corpo essencial ao progresso – que não se confina ao universo das artes (como parece poder depreender-se das tuas palavras), mas sim a toda a dimensão cultural dos homens e mulheres. Ocupar-se apenas da promoção e formação dos públicos seria, para qualquer política cultural, o mesmo que construir estádios de futebol (ou teatros) sem equipas, jogos (ou sem espectáculos, sem a arte que os anima). Por fim, também não entendeste o desafio que vos faço: é apenas um exercício de descentração. Não basta passear pelas ruas da cidade/concelho, é necessário “entrar” na pele do Outro. Não para “representar”, mas para “ver” por dentro. Sentir como sente o Outro. Ser artista, ser espectador, ser jovem, ser velho, para além de técnico camarário ou assessor ou, para lá, ainda, do desempenho de outra função na “Praça de Bocage”. Quanto ao Jorge de Sena, recordo o seu sentimento de tristeza por ter de viver longe do seu país – que não soube acolhê-lo como merecia. Afinal, talvez não tenhas saído tanto das questões essenciais.

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      • Manuel Augusto Araujo diz:

        Meu caro Fernando Casaca
        O que me parece mais importante é discutir a ideia de cultura. como deduzo e não erro que não percebeste o que eu quis dizer com uma aproximação ao que penso que deve ser uma política cultural, passo por cima das citações setubalenses não alienando responsabilidades pelo cargo que desempenho, mas também escusando-me a fazer avaliações ao que os agentes culturais e similares produzem, as minhas opções estéticas e artísticas não podem contaminar a avaliação dos projectos, estou em desacordo contigo quanto às tangências e secâncias entre cultura e arte. Apesar do muito e variado trabalho que me submerge de momento, continuo a ler correctamente. Por facilidade e, por falta de tempo, para ver se me entendes (a salada que dizes eu ter feito foi toda colhida na tua horta!) decidi ir buscar um texto que fiz há uns anos para uma encontro sobre culturas. Claro que se percebe que a minha filiação é anti-idealista, mergulha nos marxistas e nos marxianos, ai vai a parte inicial que penso ser a que interessa para agora.

        Cultura é, provavelmente, uma das mais complexas palavras de qualquer língua, com uma raiz que significando uma actividade é também uma entidade. Originalmente descrevia um concreto processo material de trabalho que o homem introduziu no crescimento espontâneo da natureza para a conformar às suas necessidades, alterando-a, dominando-a, inventando-a e inventando uma nova disciplina, a agricultura, que o foi agarrando à terra diversificando as culturas e desenhando novos habitats, desenvolvendo agregados populacionais e uma vida colectiva onde a cultura começou a ser metaforicamente transposta para os assuntos ditos do espírito.
        As sementeiras passaram a ser materiais e imateriais tal como os seus frutos enquanto, paradoxalmente, os que adubam a terra para a tornar mais fértil, mais propícia a produzir culturas, começaram a ser considerados incultos por falta de tempo para se cultivarem, em contraponto com os citadinos progressivamente mais interessados na cultura e com mais tempo para produzirem cultura não só enquanto progresso da humanidade, mas como instrumento que marca distancias e distinções.
        O labirinto semântico da palavra cultura descreve sempre uma transição entre o que existe e o que se transforma, seja na natureza ou no espírito dos homens. Transição constante, variável entre regulação e crescimento espontâneo por força do trabalho que a diversifica e aprofunda. Cultura é ainda um instrumento de dominação da natureza e/ ou da humanidade numa sociedade que se apropria dos frutos do trabalho, de todos os frutos do trabalho, do mais banal cordel ao mais complexo poema, para deles fazer mercadorias. Apropriação que é trave mestra do sistema de produção capitalista que aprofunda o divórcio entre o homem e a natureza, o homem e seus semelhantes, entre o homem individual e a sua individualidade. Onde a alienação corta transversalmente toda a actividade humana.
        Cresce a cultura como uma floresta de equívocos não inocentes e que progressivamente são usados para a desacreditar enquanto soma dinâmica e activa das sabedorias da vida e dos conhecimentos do fazer, da prática colectiva de grupos e indivíduos. Equívocos que, no limite, a encerram no circulo restritivo da criação artística. Seria assim a cultura uma ilha limitada às artes e às letras onde alegremente a criatividade se expandiria, longe do ruído trivial do trabalho ou das outras actividades quotidianas, sejam as das ciências e das tecnologias sejam as da política ou da vida doméstica.
        Essa ideia reducionista da cultura esquece-se e não lhe interessa entender, que uma ilha se define sempre em relação a um continente e que as artes, embora se desenvolvam com um relativa autonomia, são também de alguma forma condicionadas pela evolução socio-económica.
        Essa ideia minoritária de cultura esquece deliberadamente que só alguns, mesmo que sejam muitos, dos produtos culturais são arte, e quando o esquece é porque está deliberadamente a limitar a possibilidade do conhecimento e do reconhecimento dos objectos artísticos a alguns eleitos. Objectos de que, nas sociedades posteriores à Revolução Francesa a burguesia, num gesto liberal e moscovita, possibilitou a sua visão e/ou audição ao povo. Os objectos, não o saber que suporta e serve para os legitimar, quer dizer pra lhes atribuir valor de mercado. A alienação atinge aqui o seu clímax e não é iludida pela dádiva das doses de ópio às massas populares. As artes podem até representar a excelência da vida, mas se a isso se restringem ficam amputadas do seu poder transformador. Tornam-se num luxo amarrado à deriva da moda.

        Continuava, sem baralhações nem equívocos, defendendo a produção artística no contexto da política cultural, em confronto com um pensamento dominante da sociedade em que vivemos.
        Um confronto longo e de longo alcance e que se faz hoje, incorrendo mesmo em inúmeras ziguezagues, ir atrás, dar um salto em frente. A luta por uma política cultural é essencialmente uma luta política pela emancipação da humanidade.
        No teu texto as contradições são evidentes. Vai relê-lo até porque leste mal, não percebeste e por isso tiras conclusões completamente invertidas do que anteriormente eu tinha escrito. com derivas um tanto ou quanto despropositadas.Contra isso nada posso fazer. Por aqui me fico.

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      • Fernando Casaca diz:

        Lamento que não possamos discutir coisas “reais”. Estava disposto a manter o diálogo num plano mais pragmático e (na minha opinião) construtivo, mas percebo os constrangimentos da tua parte e seria deselegante e desonesto tentar tirar partido disso. Vou, por conseguinte, limitar-me ao esclarecimento/debate de algumas premissas mais conceptuais. Penso que, quer admitamos quer não, “somos” todos mais pós-modernos do que julgamos – pelo menos, ao nível das nossas práticas do quotidiano. Não podemos negar a experiência diária, as necessidades, as relações que estabelecemos com a sociedade, de um modo geral, as ideologias e os seus modos de produção dominantes. Claro que não sou neo-liberal só porque estou vivo neste século, mas sou absolutamente condicionado por essa ideologia dominante. Luto contra isso, em pequenos gestos – e quem me dera ter um pouco mais de David… Quanto ao que interessa realmente penso que a ancoragem das nossas ideias, ideais e conduta prática representa para mim algo que admiro (e invejo!?) nos outros. Não consigo, no entanto, deixar de pensar que a História é um devir permanente, e que aos sábios de ontem se juntam as descobertas do presente e a construção do futuro. Isto, que mais parece um chorrilho de chavões sem sentido, gera em mim uma enorme angústia e desespero quando me sento para pensar um pouco. Ora vejamos. Que culpa têm Freud, Jung, Piaget, Einstein de terem nascido e, por conseguinte, vivido depois de Marx? Não ancoraram as suas ideias e descobertas nas ideias e descobertas de Marx. Bem, estou a chegar a algum lado. Vou rotulá-los e riscá-los do meu universo, apenas, para ser marxista e/ou marxiano? Não acredito que o faças! Mas ser “anti”-idealista é uma “ideia” com a qual não viveria sossegado. Relativamente ao conceito de cultura, estamos de acordo que as condições materiais determinam a produção intelectual e, por consequência, a criação artística. Estamos igualmente de acordo que nem tudo o que é cultural é do domínio da arte – os “hamburgueres” são, sem dúvida, parte integrante da cultura ocidental anglosaxónica (e nasceram em Hamburgo?!…). Não nego, nem aqui nem na minha prática profissional, a necessidade de termos uma visão global-holística da cultura – traçar pontes, estimular cooperação, fundir diferentes modos de expressão, etc. -, olhar para a animação, para o turismo, para a natureza, a inclusão social… Mas não posso admitir o tratamento deste assunto diluindo-o no vasto campo da emancipação da humanidade. E apesar disto, afirmei no comentário anterior (que já reli, para estar seguro da correcção desta nota) que o objectivo da política cultural é o progresso, i.é, em suma, a democracia (acrescento, agora). A actividade artística não é um mero exercício idealista, de busca do belo ou da forma perfeita. A actividade artística caracteriza-se há muito tempo (pensa em Brecht, por exemplo) por ser uma reflexão sobre a polis – isto é assim desde os gregos antigos. É por esta razão que deve estar no centro das políticas culturais. Porque está comprometida com a sua cidade-polis. Porque contribui para a participação cidadã. Porque nela se integram as preocupações democráticas – nas suas diversas representações ao longo da História das sociedades e civilizações. Independentemenete de se dirigir à nobreza, à burguesia ou ao povo, em geral. Não dilui a diferenças, mas é um meio privilegiado para as questionar.

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  3. Casaca
    Não conheço outro espaço público onde estas questões tenham sido tão abordadas como aqui. Por isso, não acolho de forma alguma acusação de que fujo ao debate. Pelo contrário: eu, o Manuel Araújo e o Carlos Anjos (mas não quero falar em nome deles) fomos dos poucos (ou mesmo os únicos) que deram a cara na defesa de posições que, reafirmo, deviam mais ser de outros do que nossas. Talvez o silêncio desses outros perante as acusações que lhes são dirigidas seja também um profundo sinal de que se deixaram envolver numa intensa crise de auto estima. Problema deles. Mas continuo a ser de opinião que é triste, ainda que as acusações tenham reduzida relevância pública, que ninguém do TAS, do Festroia ou mesmo do Teatro do Elefante, só para dar três exemplos, reaja publicamente ao que são ataques disparatados. No fundo, talvez estejam de acordo com esses ataques, mas colocam-se de fora pensando que não é nada com eles. É a estratégia da avestruz, que permite que se vulgarize a narrativa, que conheces, de que em Setúbal quase nada se faz, e o que se faz não presta…
    Quanto à ideia, um tanto ao quanto desfazada do que temos vindo a defender, de que se ignoram os agentes e promotores culturais que cá ficaram para se valorizar os que se foram embora, entendeste mal. O que se defende é que essas pessoas são resultado de instituições que são até capazes formar excelentes actores, por exemplo. O que se valoriza são as instituições autónomas e independentes por via das pessoas que formaram e brilham hoje noutros firmamentos. O que equivale a dizer que temos gente sólida em instituições sólidas a fazer excelentes coisas e ainda a formar gente.
    A discussão das políticas culturais da cidade dura desde que éramos miúdos. Lembras-te? Mas a verdade é que se continuaram a fazer coisas, muitas coisas. Tu até formaste uma companhia de teatro que, este ano, é apoiada pela DG Artes. Infelizmente outras não o foram, com base em critérios estranhos e injustos, que penalizam bastante a cidade.
    Não tenho responsabilidades na definição das políticas culturais da cidade. Julgo que o sabes. Mas sempre posso dizer que o exercício do poder é, em larga escala, o exercício da escolha. Escolher é difícil e nem sempre todas as escolhas são acertadas. Mas, no caso concreto que discutimos, o que apontas como uma opção errada no investimento num “pretenso património cultural”, e julgo que é das salas da cidade que estás a falar e de novos espaços, é de facto uma questão de políticas. Ou melhor, de aplicação de políticas que favorecem a criação e a fruição cultural. A Casa da Cultura, o Charlot renovado, o Fórum Luisa Todi acabado, esperemos que em agosto de 2012, a Casa da Baía, novos espaços do Quartel do Onze são, de facto, resultados de uma política, concorde-se com ela ou não. Claro que só saberemos se estas foram as escolhas correctas daqui a dez ou vinte anos, mas as coisas são mesmo assim.
    Faz falta mais discussão sobre o assunto? Claro que faz, mas com quem de facto pode propor caminhos, e não com quem acha que o mundo só começou hoje e que tudo o que se fez nos últimos trinta anos nesta cidade nada vale.
    Temos deficiências? Claro que as temos e não são poucas, a começar na voragem do trabalho e da escassez de tempo que nos impede de discutir mais e melhor as opções. Concordo que pode haver mais discussão. Mas não há e não será por isso que a vida pára. A deficiência primordial é, contudo, exactamente aquela em que estamos de acordo: a falta de públicos. Mas esse é um problema estrutural cujas ramificações vão muito para além das nossas fronteiras locais.

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    • Fernando Casaca diz:

      Na verdade, creio que este não é o melhor meio para debater estas questões. Esta “praça pública” exige que a mensagem seja curta (diferente de sintética), alguma contenção nas palavras (não que seja um risco tornar públicas dúvidas, críticas e divergências, mas porque nem todos aqueles que têm acesso estão na posse de toda a informação, nem nos conhecem nem ao que pensamos, e isso pode gerar equívocos e deturpação) e, ainda, alguma gestão do modo como utilizamos essas mesmas palavras. Mas deixa-me tentar esclarecer alguns pontos para que possas também perceber o que pretendo dizer. Quando me refiro a “pretenso património”, falo de “património” humano. Quanto ao material está quase tudo dito, e estou plenamente de acordo contigo. Está a acontecer (com um atraso de décadas) aquilo que Setúbal precisa. Mas para ir um pouco mais “directo” ao assunto quero dizer-te que me incomoda ver emergir jovens, da idade do autor dos comentários, sem qualificações e sem interesse artístico (embora isto só se possa aferir realmente daqui a alguns anos… pra já é apenas a evidência de um potencial). Em contrapartida, um rapaz (que, na verdade, desabafou em nome de um grupo de gente nova, competente e qualificada!), talvez muito jovem, ou demasiado jovem até, é transformado num representante das tais “narrativas”… ora essas são velhas, são as velhas de muito má memória. Essas escolheram deixar tudo como estava, e não procuraram formação, qualificação nos lugares certos, acomodando-se ao seu canto do passado. Repetindo e repetindo a mesma “narrativa”. Avestruzes podem ser aqueles que não querem ver o que está à sua frente: preferindo “ver” apenas o que acontece longe, ou por efeito das (ir)responsabilidades de outros. O que acontece a nível nacional, também se passa por cá – e não só a falta de participação em actividades culturais (se é que isto é mesmo verdade!?…). Passa-se que os jovens têm mais formação e qualificação que muitos dos artistas do mainstream. Passa-se que os apoios são “substancialnmente” diferentes quando se está inserido numa instituição/estrutura que começou a sua actividade nos anos em torno de 1974, independentemente de critérios de incentivo, de enriquecimento curricular e até de necessidade de investimento inicial – para poderem “provar” aquilo de que são capazes. Dito assim, quase tudo parece apontar para um problema geracional, mas não o é – e isso sabêmo-lo os dois. É um problema gerado e alimentado pela fraca cultura artística de que o país sofre, a nível nacional e local. É um problema “caseiro”, o de garantir que as coisas se desenvolvem sob controle. Nada disto reduz a importância do que está a ser realizado, mas ainda não percebemos que os esforços devem ser feitos em conjunto. Ainda não percebemos que de 1975 a 1997 só havia uma companhia profissional, que nesse último ano se afirmou o projecto do Teatro do Elefante, como alternativa – de carácter profissional – e que, pouco tempo mais tarde, aparece o Fontenova também no círculo das estruturas profissionais. O mundo mudou, desde então. O que permitiu esta verdadeira revolução foi a formação/qualificação profissional dos seus elementos fundadores. Este é um critério que deve constar na apreciação e definição de apoios locais para o sector. E não apenas a “tradição” e a antiguidade. Afinal, os apoios foram todos definidos a partir de critérios meramente assistencalistas: cortes em outros apoios ou a falta de “casa” e o respectivo pagamento de rendas. (Falo do teatro porque é o campo onde estou à vontade – se me atirarem pedras já tenho defesas suficientemente amadurecidas – mas seguramente noutras áreas acontece o mesmo.) Na minha leitura, é disto que “fala” o autor dos comentários, que foram confundidos com as “narrativas” de que, de facto, estamos fartos – mas a que, em igual medida, estamos imunes. E que, principalmente, contrariamos diariamente com a nossa intervenção.

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      • Coincidimos em algumas opiniões. Mas não coincidimos na opinião que formaste a partir da leitura dos tais comentários. Quem escreve publicamente, como nós aqui fazemos, sujeita-se ao escrutínio alheio. O António Aleixo, que referes sem nomear (mas o Manuel Araújo nomeou no seu post e deu origem a esta nossa troca de opiniões), tem uma mais valia como autor e realizador de cinema que nem me atrevo a questionar. Gostava de ter visto mais coisas dele, mas não vi, e por isso me penalizo, mas sei que é alguém com futuro. Discordo da leitura que ele faz da realidade setubalense e por isso fui o único (ainda que não seja o único a discordar) que o escreveu em comentários a um texto que ele, muito bem, publicou, no jornal “Sul” e no facebook.
        Ele apontou uma série de deficiências que considera relevantes. Eu limitei-me a discordar e, por isso, de imediato se insinuou que as minhas opiniões seriam o eco da “voz do dono”, isto é, da presidente da câmara e dos vereadores, de quem sou assessor de imprensa. Isso não aceito. Só assino o meu nome no que quero e no que me apetece. Desde miúdo… Mas como já te disse, eu estou de um lado. Não estou nem no meio nem na posição de observador. Defendo um ponto de vista que partilho com outros. Quando o deixar de defender, calo-me. Este é um dos problemas do poder e das organizações partidárias (de algumas)…
        Como já escrevi, ao Aleixo até, o que mais me chocou foi o cenário negro que se traçou da cidade e das suas instituições, em especial porque veio de quem veio, alguém com uma família inteiramente ligada à produção e promoção culturais na cidade desde há décadas. Admito perfeitamente que todo o pensamento dele não coubesse, ou melhor, não pudesse ser vertido num texto. Mas, se assim é, o melhor é procurar, até à exaustão, a melhor forma de expressar o que se quer dizer, para que não se criem dúvidas que, como sabes, são também alimentadas por outras questões laterais.
        Por mim – mas só por mim – tenho toda a disponibilidade para discutir estes assuntos, mas não com toda a gente, claro. Contigo discutirei sempre e com o Aleixo também. Por razões práticas, históricas e até sentimentais, seja lá o que isso for…

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  4. O Manuel Araújo comentará o teu comentário, se o entender; contudo, como me parece que, de alguma forma, também estou envolvido nesta discussão, julgo que é importante dizer duas ou três coisas. A primeira, óbvia para mim, é que falhas o alvo quando escreves que precisamos sair mais da Praça do Bocage (pois é, enfiei a carapuça…). A nossa Praça do Bocage, ao contrário do que me parece que querias significar, não é o espaço físico ocupado pelo Poder Local do concelho. Esta nossa praça é um espaço destituído dessas dependências, no qual escrevemos, com total liberdade, o que queremos (“o que nos dá na real gana” como está escrito lá em cima). Esta é a nossa praça pública. Não serei ingénuo ao ponto de negar que o facto de ocuparmos lugares na Praça que referes tenha influência no que pensamos e escrevemos. Obviamente que tem. Afinal de contas, estamos (eu estou) num lado e não noutro, assim como tu também estás. Julgo eu.
    Percebo que queiras desvalorizar e que lamentes o “contra-ataque a opiniões sem qualquer interesse” ou impacto. Não concordo. As opiniões que referes têm impacto público e refletem uma narrativa que faz caminho na cidade há muitos anos que sempre achei necessário contrariar. Nem noutros tempos defendi opiniões dessas. Mas o que lamento,uma vez mais, é que nem um, repito, nem um dos protagonistas e promotores culturais da cidade se tenha insurgido publicamente contra ataques de que que foram e são alvo. E repara que o problema nem está no potencial de ataque que essas opiniões contém em relação à autarquia, mas sim no ataque directo aos promotores de cultura, como tu, Fernando Casaca. Bem sei que os autores dos ataques podem merecer pouca atenção, mas a verdade é que foram ataques públicos. Por isso, devem sempre ter resposta. De preferência dos visados.
    Quanto aos problemas elencados, julgo que fazemos quase o mesmo diagnóstico. Com uma diferença: eu sei, e quem quiser também saberá, que se está a trabalhar para resolver alguns desses problemas, em particular o dos espaços e respectiva programação. Já quanto à participação dos públicos, esse é, de facto, o problema central. Mas, como poderás concordar, esse é um problema estrutural cuja resolução vai muito para além das nossas possibilidades locais.
    E já agora, “sair da família”, como tu dizes, sempre foi o que mais fiz… Mas nunca me divorciei.
    Abraço e manda mais, que a malta gosta de conversar e transformar os vários contributos em coisas palpáveis, sempre que possível.

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    • Fernando Casaca diz:

      Paulo, somos nós que atribuímos maior ou menor importância às coisas e às situações. Lamento que, a pretexto de desempenhares funções de responsabilidade na “Praça…”, não queiras participar num debate mais sério sobre as questões verdadeiramente importantes. A reflexão e a crítica não conduzem ao “divórcio” quando as convicções são bem fundadas. A opinião a que o Manuel Araújo se referiu (já referida, aliás, noutro dos vossos artigos) não releva absolutamente nada para a actividade artística-cultural desenvolvida na cidade. Não estou de acordo com aquela opinião e, contudo, estou absolutamente solidário com com o seu autor. E não há nenhum tipo de paradoxo nisto. A referida opinião é, apenas, mais um comentário à acção dos responsáveis políticos da nossa praça. E, vista nessa perspectiva, merece uma resposta de teor meramente político. Essa já a deram. Não quero, nem me compete, dá-la. Estou interessado em debater as políticas culturais e não em seguir o caminho estafado e estéril da “guerra” política – sobretudo, porque quando julgamos estar no mesmo lado a decepção ainda é maior. Estou motivado para olhar um pouco mais fundo. Para o lugar onde vivo. Para a comunidade q

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      • Fernando Casaca diz:

        (cont.) Para uma comunidade que nada valoriza a criação artística, a inovação e a qualificação dos seus jovens, investindo apenas num pretenso património cultural – muitas vezes, em detrimento do verdadeiro património que lhe foge das mãos, que não sabe nem quer preservar – apenas porque para o preservar tinha de o conhecer, familiarizar-se, fazer parte dele e integrá-lo no seu quotidiano. Uma comunidade que nada faz para acolher e apoiar os jovens com qualificação para um mais eficiente desempenho profissional, próprio do século e dos tempos em que vivemos, contrariando o amadorismo ainda reinante, em diversas áreas. Ao invés, para “mostrar” que também tem “valores” na área da cultura e das artes, faz continuamente referência a pessoas que (ironicamente) a abandonaram para poderem desenvolver as suas carreiras. E ignora continuamente que aqueles que escolhem cá ficar têm a importância que lhes atribuímos…

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  5. Fernando Casaca diz:

    Caro Manuel Augusto e companheiros,
    sou leitor relativamente assíduo destes vossos artigos, não tendo nunca comentado directamente o que neles escrevem por razões várias. Estou, de qualquer modo, de consciência tranquila pois nunca li nem ouvi qualquer comentário vosso a artigos da minha autoria, nem sequer a espectáculos públicos que apresento. Trabalho, agora, reconhecido (após 13 anos de actividade initerrupta) pelo júri do Programa de Apoio às Artes e pela DGArtes. Estamos quites, neste aspecto. Acompanho, por conseguinte, de forma irregular o que aqui se divulga, mantendo no entanto, a curiosidade e o interesse por posts, por vezes, com meses de atraso. Revejo-me na preocupação em valorizar o que por cá se cria e produz em termos artísticos-culturais, mas lamento que se gaste tanto tempo no “contra-ataque” a opiniões sem qualquer interesse e/ou impacto na vida e acção cultural da cidade e nunca (ou poucas vezes, para dar o benefício da dúvida) se ter desenvolvido um diálogo-debate aberto sobre o programa cultural que pretendemos para Setúbal. Permitam-me sugerir, ainda, que façam um pequeno exercício: uma vez por outra é preciso sair da “família”, ver, ouvir e escutar à volta. Não para “ver passar os comboios”, mas para alargar os horizontes (e os intervenientes) do debate, da crítica, da reflexão. Daqui desafio-vos a, pelo menos, de vez em quando, sair da “Praça de Bocage”. É que não se conhecem os objectivos, nem as estratégias definidas para “resolver” os problemas diagnosticados e conhecidos do sector cultural, como são a) a pouca participação, b) a inexistência de espaços ou as dificuldades de gestão-programação dos poucos e frágeis recursos e equipamentos, tanto os públicos como aqueles que são geridos pelas estruturas artísticas-culturais, c) a comunicação e visibilidade da actividade, d) a “parolice” dominante, que leva a “falar mal” por falar, e) as responsabilidades de governos locais anteriores, f) a pouca vontade ou falta de coragem, actual, para alterar situações díspares de investimento público local no sector, que gera desigualdades de oportunidades…

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