Os portugueses procederam neste Natal, entre 21 e 26 de Dezembro, a levantamentos de dinheiro em máquinas multibanco num valor superior em 51 milhões de euros ao registado no Natal de 2009 (527 milhões). E os pagamentos efectuados por essa via foram 98 milhões de euros superiores aos do ano passado (684 milhões) – noticiava do DN de 28 de Dezembro.
Qual a relação dos portugueses com a crise? Olhando à superfície é, pelo menos, tema generalizado de conversa. É já quase tão habitual falar sobre a crise como sobre o tempo. Os media “bombardeiam” os seus públicos com inúmeras notícias, reportagens, análises, entrevistas e todos os outros ângulos de abordagem possíveis. Um filão inesgotável para esses órgãos de comunicação, com a novela das oscilações diárias das taxas de juro da dívida soberana a tudo bater aos pontos.
Todos sabemos pois que estamos em crise. Aliás, creio que desde o famoso “pântano” de António Guterres e do “país de tanga” (Durão Barroso), que lhe sucedeu, que nunca mais deixaram de nos falar em crise. Crises a que se somam crises. De vez em quando vozes bem situadas tentam contrariar a maré dominante, com isso tentando dar uns tons de azul à paisagem. O antigo ministro da economia Manuel Pinho, por exemplo, decretou em 2006 o fim da crise. Sócrates e Teixeira dos Santos decidiram em 2009 baixar o IVA em 1% e aumentar os funcionários públicos após vários anos de congelamento. Rapidamente se aperceberam que se tinham enganado, pois logo a Crise retomou o seu majestático lugar entre os portugueses.
Sabemos que o desemprego não parou de aumentar. Que continuam a encerrar empresas por todo o país. Que as prestações sociais estão a diminuir. Que pagamos mais impostos e contribuições. Que o comércio tradicional se queixa de vender menos e de estarem a encerrar numerosos estabelecimentos. Que se aproximam cortes salariais para centenas de milhar de portugueses.
O que quererá dizer esta aparente contradição?
Avance-se uma tentativa de explicação:
Um. De tanto discurso sobre a crise, os portugueses que tem dinheiro disponível ficaram imunes e já não levam o discurso a sério. Fala-se, fala-se, mas não se sente na pele. A crise mora na porta do lado e entra em casa pela televisão.
Dois. Como no naufrágio do Titanic (ver o filme) a orquestra continua a tocar e os músicos a dar o seu melhor. Claro que os músicos sabem que a embarcação está a afundar! Mas… um último acorde e uma última flute de champanhe…
Três. Sempre a fintar a crise, os portugueses decidiram antecipar as suas compras devido ao aumento do IVA a partir de Janeiro. Sempre poupam algum…
Quatro. Dinheiro de plástico. O que é custa pagar se se trata apenas de introduzir um cartão de plástico numa ranhura e digitar um código? Mais custa quando vemos as notas – muitas vezes velhas, gastas e quase a lembrarem o suor – saírem da nossa carteira e depois da nossa mão. Custa muito, muito mais. Para já não falar em “escudos barra euros” – o que é que custa(va) mais? Largar uma nota de 1000 escudos ou largar uma de 5 euros? Até mesmo entregar um cheque (escrevê-lo e assiná-lo) parece-me que custa muito mais.
Quinto. Apesar de vivermos no mesmo país, os portugueses vivem em mundos paralelos. Parte deles, mesmo trabalhando vivem perto da miséria – o que é um salário mínimo que não chega a 500 euros? Outra grande parte da população, a maioritária, a que se convencionou chamar “classes médias”, vai sobrevivendo, contando os cada vez mais escassos tostões de que dispõe, fazendo contas para pagar o empréstimo da casa e do carro e as outras despesas da família. Rezando para que a taxa de juro não suba e à espera de não ser despedido. E há ainda os portugueses que vivem bem, muito bem, que podem gastar hoje como gastavam ontem.
São os paradoxos da crise.